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Daehan Minguk – Viagem ao País do Sul

Luís Reina

 

Capítulo V

Chuva, chuva e mais chuva…

 

14 de Setembro

Seul

(continuação)

A chuva parou. Contudo, o céu continua carregado de nuvens. O vento teima em não nos deixar, mas a luminosidade é forte. Tão forte que fere os meus olhos. O chão está coberto de poças de água que reflectem movimentos coloridos de vidas que correm apressadamente rumo a um qualquer lugar.

Encontro-me parado como uma estaca enraizada na terra. Olho atentamente o horizonte que se espraia à minha frente. Sinto-me momentaneamente indiferente ao movimento que se faz sentir em meu redor. Sinto-me um homem estátua no centro de um mundo que não é o meu e onde ninguém pára para me atirar uma moeda, fazendo-me assim mudar de posição.

Estou completamente sozinho no centro de um mundo que não conheço. Todos os meus companheiros de viagem desapareceram, como se uma fenda repentina se abrisse no chão e os engolisse.

Pela segunda vez na minha vida, de viajante do mundo, fico com o meu rumo desorientado e perdido. Não sei onde estou nem para onde me devo dirigir. E agora que faço?!

Estou só. Tento raciocinar.

Uma luz intensa desce sobre mim cegando-me. Nesta altura, o meu olho esquerdo, é invadido sem permissão por dezenas de pequenas moscas. O que se está a passar comigo?! Suspeitei de imediato ser uma ruptura da retina (confirmada posteriormente em Portugal, felizmente sem graves consequências). Com este inesperado acontecimento, o nervosismo duplicou. Uma brisa forte ecoa nos meus ouvidos “não estás só, eu sou a tua companhia, e vou ajudar-te a reencontrar o teu rumo”.

À minha frente, sobe silenciosamente em direcção ao céu, um intenso fumo branco de um cigarro aceso naquele instante. Verifico tratar-se de uma mulher baixa, com um corte de cabelo e corpo másculo.

É Brigitte, para meu contentamento. Também, por causa da fotografia ficou de repente isolada e perdida do restante grupo. Decidimos avançar um pouco mais para a frente, sem contudo passarmos o limite da zona de restauração. Mais tarde ou mais cedo iriam dar pela nossa falta e viriam à nossa procura. Brigitte tenta acalmar-me. Senti nas suas palavras algum carinho e ternura que me surpreenderam. Até fiquei a gostar mais desta mulher. Mais do que nunca sentia-me desfalecer. Não só pela situação em que nos encontrávamos, mas também pela fome que sentia há já algum tempo. Passados uns bons minutos, eis que Brigitte dá um longo suspiro de alívio. Vemos o guia Étienne a caminhar lentamente na nossa direcção com cara de poucos amigos.

Pedimos desculpa. Não surtiu qualquer efeito e nem tivemos oportunidade de dar uma explicação. Nem sequer se ouve a sua voz. Segue agora a um passo mais rápido. Tentamos andar ao seu ritmo, sem nos perdermos de novo, já que o movimento da rua aumentou. Entramos num pequeno beco, cuja saída é o pequeno restaurante onde almoçamos.

Um restaurante que tem tanto de pequeno como de escuro. Escuros são também os seus bancos e mesas corridas, que me fazem lembrar as tavernas do sul da Europa. Não havia toalhas nem tão pouco guardanapos. Ninguém parece ter dado pela nossa falta. Todos continuam nas suas conversas indiferentes à nossa chegada. Nenhuma pergunta nos é feita. Ninguém se interessa pelo que aconteceu. Podíamos pura e simplesmente ter desaparecido que a vida continuava alegre e despreocupada. Sentamo-nos nos dois lugares disponíveis onde já se encontrava um prato com um peixe grelhado já frio, muito parecido com a dourada, e uma pequena caçarola de inox com arroz branco cozido, ainda fumegante. Os legumes e demais entradas já tinham sido consumidos pelas diversas bocas famintas que nem se lembraram de que havia mais duas pessoas no grupo. Engolimos o repasto que nos estava destinado, “pali, pali”, enquanto as restantes pessoas saíam do restaurante.

Já no exterior, somos informados que temos uma hora para passear nesta aprazível área da cidade. Uma grande parte do comércio tradicional de qualidade de Seul encontra-se aqui sediado. De referir que é um quarteirão de ruas pedonais, onde se pode caminhar tranquilamente, sem sermos importunados pelo trânsito caótico desta urbe.

Passeio vagarosamente pela rua. Tempo para entrar numa típica papelaria coreana e numa loja/galeria de porcelanas desenhadas por artistas contemporâneos da Coreia. Numa esquina, encontro uma pequena gelataria. Chama-me a atenção os cones feitos em massa de milho, prontos a serem cheios de gelado de nata. Não resisto à tentação depois de ver a felicidade estampada no rosto das pessoas da excursão a deliciarem-se com esta iguaria depois de um insípido almoço de pescado. Dizer que adorei, estaria a mentir. Também não detestei. Achei diferente. Por um lado o cone de milho, de uma consistência que parecia esferovite. Uma massa quente. Por outro, um gelado de nata pouco cremoso e ultra congelado de uma doçura in extremis. Mas o pecado da gula iria sair-me caro.

A primeira visita do dia seria ao santuário Jongmyo. É neste local, Património Mundial da Humanidade, que se encontram sepultados as rainhas e os reis da dinastia Joseon. Encontra-se rodeado de uma densa e refrescante floresta de verdura.

Num pátio exterior ao santuário preparava-se a cerimónia da procissão imperial, feita por crianças de tenra idade, vestidas com bonitos trajes bordados a fio de seda. Esta procissão entraria no recinto sagrado, onde se encontra o maior edifício de madeira do país e onde se diz descansarem os espíritos reais entre lápides de madeira.

Para ser sincero, nada disto apreciei. Não porque o local não mereça, mas porque a bomba chamada gelado começava a fazer efeito nos meus intestinos e só precisava de um Water Closet o mais rapidamente possível. Felizmente que encontrei um à saída. Fico aliviado por uns instantes…

Segue-se, aquela que foi a mais importante visita do dia, o Palácio Changdeokgung, o Palácio da Ilustre Virtude, também ele um tesouro cultural do mundo. Destaca-se a apoteótica visita ao Huwon que é o mesmo que dizer Jardim Secreto.

Foi enquanto esperávamos para penetrarmos no mais secreto dos jardins coreanos, que o fogo voltou aos meus intestinos, provocando-me fortes dores abdominais e espasmos constantes que me deixaram sem saber o que fazer. Que agonia. Só pedia a Deus e a todos os santos que me aguentasse até ao toilette que sabia existir nos jardins. Mesmo contorcendo-me todo não deixei de apreciar o que os meus olhos estavam vendo. Um jardim construído para ocultar os amores proibidos de gerações de monarcas, que aqui se refugiavam em prazeres ilícitos de adúltero amor. Foi aqui que dei por mim a fazer uma pintura a que poderia dar o nome de “O Jardim das Delícias” em homenagem ao grande pintor alemão do século XVI – Hieronymus Bosch e que me deixou mais sorridente e pronto para continuar a ouvir as histórias que este jardim encerra.

Edificado sobre várias colinas de verdura, este jardim é constituído por lagos gigantescos de purificação em frente a templos privados de redenção, pântanos de arrozais plantados ao pé de pavilhões de madeira ricamente pintados e até um riacho com cascatas digno de um qualquer éden. Uma envolvência canora de aves exóticas que aqui se mantêm prontas para desvendar os mistérios reais de tempos passados.

Saímos. Rumámos para sul para vermos o reconstruído Tesouro Nacional número um – Namdaemun que quer dizer Porta do Sul, uma das entradas da antiga fortificação de Daehan Minguk (abro um parêntese nesta narrativa para explicar que na Coreia do Sul tudo o que é relevante para a cultura histórica do país e do seu povo, é considerado Tesouro Nacional. Assim, desde edifícios históricos civis, militares e religiosos, a objectos de arte como peças de cerâmica, escultura, joalharia e pintura, passando por simples escritos a livros manuscritos, é grande a variedade material considerada Tesouro da Coreia).

O céu começava a escurecer novamente.

Observo atentamente o monumento que se encontra à minha frente. Uma palavra para o definir – Imponente. Penso, como tirar uma foto que consiga captar toda esta imponência! A profundidade de campo aqui é necessária. Só há uma maneira para o fazer que é deitar-me no chão. Se melhor pensei, melhor o executei. Erro crasso.

Ainda não tinha tirado qualquer fotografia quando sinto o peso compacto da Anne a saltar para cima de mim como se eu fosse um pouf. Não disse nada mas o meu olhar deve ter dito tudo, pois levantou-se num ápice pedindo desculpa.

Disparo um primeiro shot. Ouço um apito de dois polícias que por ali se encontravam, mas continuo. Segundo shot. Sinto então um calor humano a rodear-me. Poucos segundos depois e sem me dar tempo para pensar, dois braços fortes levantam-me com o intuito de me levar para interrogações. Fiquei sem pinga de sangue. Vejo Étienne a correr em direcção ao grupo que se formava então à minha volta. Étienne tenta explicar a situação às referidas autoridades. Sou um fotógrafo e turista português que viaja com um grupo francês de quem ele é o guia. Pretendem ver as fotografias que tirei. Informei que não podem ver pois eu faço fotografia analógica, ou seja utilizo película. Foi difícil compreenderem, mas lá resolveram deixar-nos em paz.

Étienne aproveita para explicar que é proibido deitar ou sentar na rua neste país. Pensei que se essa lei fosse implementada neste canto europeu a polícia teria muito trabalho para fazer.

Realmente este monumento é impressionante. O telhado em madeira preto, as pinturas de dragões e fénix coloridas que lhe servem de decoração, a simetria de quem o arquitectou e sobretudo o espaço de relva verde, bem tratada, que o cerca. Tudo isto numa praça bem no centro de uma avenida de arranha-céus majestosos edificados em vidro.

Depois do susto que apanhei e que me serviu de lição para não me armar em fotógrafo, somos encaminhados para o popular mercado Namdaemun. É um mercado de rua, bem animado e colorido que ocupa todo um quarteirão e onde tudo é vendido. Desde comida a roupas, de brinquedos a electrodomésticos até ao pequeno mobiliário e refeições take away, que são de fugir… só de pensar no que ali se cozinha…, Apesar de nada comprar entretenho-me a fazer alguma fotografia de rua. As pessoas são simpáticas e não causam qualquer problema. Já estão habituadas ao povo estrangeiro.

De repente o céu começa a ficar cada vez mais escuro. Só temos tempo de chegar ao autocarro. A chuva cai torrencialmente e sem qualquer indício de que vá parar. A última visita à Torre de Seul, fica assim cancelada ou, conforme informações dos guias, adiada para o dia em que voltarmos a Seul para regresso a casa. A mesma será substituída por uma visita panorâmica da cidade até ao jantar.

Como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe recebemos a notícia de que o bom tempo regressa a partir do dia de amanhã e vai continuar ao longo de todo o circuito conforme previsões da meteorologia. Mas chega de emoções fortes. É hora de jantar, para depois descansar.

Quando regressamos ao hotel, relativamente tarde para os horários coreanos, só se ouve um barulho, o da chuva. Chego ao meu quarto e aproximo-me da janela para visualizar uma vez mais a zona norte de Seul, desta vez iluminada. Nada se vê, a não ser chuva, chuva e mais chuva

 

Para verem as fotografias relativas a este capítulo por favor consultem o meu blog http://photoluisreina.blogspot.pt/

 

Obs:A pedido do autor, e ao abrigo do 5.º ponto do Estatuto Editorial do “Etc e Tal Jornal”, este artigo foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

01-ago-14

 

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