Menu Fechar

Miséria de filosofia

 António Pedro Dores

Comemora-se este ano cinquenta anos sobre os acontecimentos de Maio de 68, em Paris. O presidente Sarkozy concorreu a umas eleições recentes a dizer que Maio de 68 tinha acabado. Macron, seu sucessor, veio dizer que continua vivo. É como a revolução dos cravos: para uns está viva e para outros está ultrapassada. Discute-se se foi uma revolução ou uma revolta ou um episódio na evolução natural da história. Foi um episódio memorável da luta anti-imperial.

Há quem diga que as ciências sociais (economia, ciência política, sociologia, psicologia) são um desastre para a humanidade. Ao fim de quarenta anos de prática, concordo com o geral do diagnóstico.

Kuhn (2016) alega que as lutas anti imperialistas organizadas pelos povos colonizados e emergentes na sequência das políticas expansionistas das grandes superpotências, no pós-guerra, foram recuperadas para o império através da corrupção intelectual dos seus dirigentes pelas ciências sociais, que aprenderam nas universidades. Todos dirigiram a sua acção para a construção, no local, de sucursais imperiais, através da organização de estados-nação com as suas elites imitadoras e reprodutoras do modo imperial de viver. Para desgraça dos povos apanhados no processo, e da humanidade no seu todo, o resultado prático que o império precisa para expandir a sua acção, a expansão do capitalismo a todo o mundo, a globalização (Varoufakis, 2015), está a antecipar as condições ambientais para a extinção da espécie humana.

A história realista não pode ser compreendida por quem alimenta a falta de memória, como as teorias modernistas que fazem tábua rasa do ontem, para inventarem um amanhã imaginário (tipo comboio em que as carruagens competem entre si para trocar de lugar na fila. Que ideia mais absurda!). A história do império não é muito antiga, mas terá mais de três mil anos (Fara, 2009; Graeber, 2011; Morris, 2013). O filósofo Karl Jasper percebeu estarmos a viver uma revolução axial: a humanidade produziu, primeiro localmente e depois de maneira cada vez mais geral, a percepção de ter poder para determinar o seu próprio destino, em vez de vagar à deriva dos elementos. Para o efeito, o modo imperial de organização tornou-se um instrumento, o mais bem sucedido. Sobretudo porque conseguiu elevar a brutalidade humana a níveis que os militares e outras forças sinicamente apelidadas de segurança sabem reproduzir, controlar e aumentar.

Esta capacidade bélica nunca vista é a vanguarda do progresso tecnológico e político – a conquista em nome da Fé e do Império – e tem por base social um modo de organização misógino, elitista e dissimulado.

praca de s. pedro - vaticano (00)

A arquitectura eminentemente fálica do Vaticano construída para representar o espírito ecuménico do império revela-nos, através da simples chamada de atenção, o que é a consciência das elites sobre a natureza da sua unidade: a excitante capacidade de enganar as pessoas, mostrando-lhes de forma exotérica aquilo que devem ao mesmo interiorizar e esquecer.

Que visitante do Vaticano imagina o falo que representam a praça com a sua avenida, os candeeiros da avenida, o obelisco, o cimo triangular do obelisco, testemunhados por todos os santos em pedra no cimo da catedral, todos homens e adoradores oficiais do triângulo divino? Triângulo ao mesmo tempo fálico e símbolo de organização. Perante esse cenário pede-se aos visitantes que adoptem uma postura de adoração alegre e ingénuo, como a das crianças abusadas pelos jogos de dissimulação. Tais jogos são milenarmente organizados para obter a neutralidade dos povos perante o império. São usados também para produzir o fanatismo elitista (misógino, não é preciso insistir) de entrega das vidas dos mais entusiasmados à sua causa civilizacional: a Fé e o Império dos negócios que seguiram as forças militares e os missionários, seus protectores.

praca de s. pedro - vaticano (01)

Revelado o evidente, passa a ser muito simples interpretar o Maio de 68, aliás como a revolução dos cravos e a onda democrática que se lhe seguiu. Foi uma revolta global contra o império, na sequência dos desvios imperiais assumidos pelos movimentos anti-coloniais, praticamente “vitoriosos” como sequelas neo-coloniais.

No pós-guerra, os EUA e a URSS construíram os seus impérios no vazio das potenciais europeias e, após a reconstrução da Europa, os europeus perceberam estar subordinados a um império, porque eles próprios o criaram. A revolta anti-imperial (contra as guerras, contra a misoginia, contra as vigarices da política) teve vários episódios, não só na Europa mas em todo o mundo (os hippies e os pacifistas nos EUA, a revolução cultural na China, as guerrilhas nas Américas, os movimentos dos direitos cívicos nos EUA, as lutas por direitos dos povos primeiros, a libertação das mulheres, a revolta contra as escolas, as guerras de gerações que opuseram pais e filhos, etc.). Essa revolta continuou nos movimentos anti-globalização emergentes na mudança do milénio. Tentaram, sem êxito, opor-se ao desastre das políticas ocidentais que, a pretexto do ataque às Torres Gémeas, criaram o terrorismo e a escalada bélica com que nos debatemos hoje.

Esta revolta continua hoje nos movimentos de coordenação de acções contra o império, na internet e fora dela, como a Primavera Árabe, os Indignados, Occupy Wall Street, reprimidos com presos políticos em Espanha, a brutalidade policial recorrente nos EUA e a guerra no Médio Oriente, que destruiu alguns dos países com melhores índices de desenvolvimento humano como a Líbia ou a Síria. E está a destruir a União Europeia, os direitos humanos, o estado de direito, a democracia.

Maio de 68 é um dos símbolos inolvidáveis da vitalidade das lutas anti-imperiais, cuja memória é dissimulada, substituída por lutas de classificações em que uns se opõem aos outros em nome de palavras, como revolução, revolta, evolução. A tarefa cognitiva principal, porém, é libertarmo-nos das ciências sociais, libertarmo-nos da miséria da redução da filosofia censurada. Olhar os grandes espaços-tempo e ver o que está escrito na arquitectura e nas práticas miseráveis do império. Imaginação (realista, científica) ao poder!

Fotos: pesquisa Google

Referências:Fara, P. (2009). Science: a Four Thousand Years History. Oxford: Oxford University Press. Graeber, D. (2011). Debt – the First 5000 Years. NY: Melville House Publishing.

Kuhn, M. (2016). How the Social Sciences Think about the World´s Social – Outline of a Critique. Stuttgard: Ibidem. Retrieved from Morris, I. (2013). O Domínio do Ocidente (1a ed. 201). Lisboa: Bertrand. Varoufakis, Y. (2015). O Minotauro Global. Lisboa: Bertrand.

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

01jun18

 

Partilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.