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Sinais de Libertação Revisitados: É preciso acreditar

José Manuel Tavares Rebelo

 

 

“O Homem que nunca existiu” é uma peça de teatro, de Ivo Machado, cuja acção decorre em Lisboa, entre 1943 e 1945. Foi editada no Porto em 1997 (edição de autor). Na altura, fiz a sua apresentação em Coimbra e em Lisboa.

O seu tema está mais actual do que nunca. Por isso, sem tabus, resolvi revisitá-la. 

É um texto literário bem concebido e bem escrito. Agita uma bandeira de livre pensamento e de humanismo fraterno. Numa época em que se escreve a metro, quase a quilómetro… de papel a peso e em que somos bombardeados com “escritores” e “escritoras” que não sabem alinhavar uma letra à frente de outra, sabe bem revisitar um texto escrito em língua portuguesa.

Daí que, sem complexos, o traga aos leitores do “Etc e Tal”, após o ter revisto.

Ivo Machado

A acção passa-se no Café Luso, ao Bairro Alto, ponto de encontro de personagens que exprimem as suas emoções, angústias, medos e ideias, num ambiente denso e tenso, longe do teatro da guerra, mas palco de uma guerra de intriga, mentira, ódio e ambiguidades, que se vivia na Lisboa da altura. Uma Lisboa recheada também de sinais de esperança escondida e de sonhos secretos de libertação.

Para escrever o texto, o autor recorreu a testemunhos e a livros e jornais desses anos, permitindo assim dar um carácter de verosimilhança à teia romanesca e policial que se vai desenrolando.

Não que a verosimilhança seja um factor relevante em qualquer obra literária, mas, neste caso, numa época em que os atropelos à dignidade do ser humano eram acontecimentos diários de prepotência, intolerância, brutalidade, tortura e assassínio, ser verosímil constitui um importante aspecto de denúncia de um período da história que não convém esquecer, para que as forças libertadoras do espírito dos homens impeçam a sua repetição.

 

Foram anos de barbárie, de racismo e xenofobia, em que as pessoas viviam amedrontadas, quer lá fora, sob ameaça das bombas, quer cá dentro, debaixo do nariz inquisidor e persecutório daqueles que, sob a capa de uma neutralidade ambígua, vigiavam e prendiam os opositores do ditador.

No início, a Alemanha falava com voz forte, ao som ritmado de botas atravessando fronteiras, impondo regras. A regra, por exemplo, do extermínio de um povo, representado na peça por Anne, a judia, povo expulso de suas casas, despojado de vida própria, vivendo dias de angústia e sofrimento.

Mais tarde, quando as luzes da liberdade irromperam por uma Europa destroçada, Portugal continuava na escuridão do autoritarismo obscurantista.

Machado faz avivar a memória daqueles anos negros, com esta sua história posta em teatro, em que só os nomes e a trama são fictícios. Todo o resto é real. É bom que a peça seja lida e, sobretudo representada, como um contributo para precaver as pessoas contra cenários como o que se está a desenhar paulatinamente em alguns países europeus, com a direita racista, xenófoba e militarista a afirmar-se a pouco e pouco.

 

Através da leitura de “O Homem que nunca existiu”, assistimos ao cruzamento de sinais contraditórios no céu carregado da Lisboa de 40.

Aquela Lisboa de que falava Antoine de Saint-Exupéry quando, em Dezembro de 1940, atravessou Portugal a caminho dos Estados Unidos: “Lisboa surgiu-me como uma espécie de paraíso claro e triste”. A bordo do paquete “Siboney” (onde também seguia Jean Renoir), Saint-Exupéry ia acompanhado por centenas de refugiados “plantas sem raízes”, no dizer do escritor-aviador que “brincavam ser alguém”, agarrando-se com todas as suas forças a um significado qualquer. “Sabe? Eu sou fulano – diziam eles – sou de tal cidade… amigo de sicrano… Conhece?”.

“Tal como Lisboa brincava à felicidade, eles brincavam a crer que iam regressar em breve”.

Por isso, ele sentiu vontade de combater: “Combaterei um pouco por ti..  tenho necessidade de te ajudar a viver. Vejo-te tão fraco, tão ameaçado, a ti, tão francês, sinto-te duas vezes em perigo de morte, porque francês e porque judeu… Para nós, Franceses do exterior, trata-se, nesta guerra, de desbloquear a provisão de semente gelada pela neve da presença alemã”.[i]

Iniciando a sua leitura, verificamos que o texto vai oscilando entre uma linguagem poética e uma linguagem coloquial: “Há dor nos versos. E sente-se a dor na voz. Ela sai do silêncio e da agitação das nossas almas”, começa Lucien, ao ouvir a fadista que cantava no Luso. A linguagem poética ocorre inicialmente quase sempre que Lucien fala, num diálogo quase retórico, longe da verdadeira personalidade de Lucien, que só descobrimos no fim, mas rico em teatralidade.

 

Maria do Carmo – a fadista – é uma personagem secundária sempre presente, mesmo quando ausente. Ela cativa todos pela simplicidade popular, pela pureza da alma e da voz. Esta personagem – recriação de Amália Rodrigues – reflecte a admiração que o autor sentia pela fadista portuguesa, que iniciou a sua carreira precisamente no Café Luso.

Nesta primeira parte, observamos um professor Gonçalinho, figura típica do regime salazarista, que idealiza um mundo novo, que sonha, que conspira, mas, homem de saúde frágil, refugia-se nos aromas do absinto (como outros se refugiavam nos clamores dos estádios, para esquecer ou nos silêncios das igrejas, para rezar) e “purifica-se” com a voz do fado dessa Maria do Carmo/Amália “que dá alegria aos outros… sedentos de emoção, perdidos com a mentira”, segundo as suas próprias palavras. A sua fragilidade leva-o à morte, que ele próprio pressentia: “Amanhã não sei se estarei vivo”.

Perante nós, avulta a figura trágica da bela judia Anne, para a qual Lisboa tinha devolvido a tranquilidade e a segurança, mas não a paz. “Como posso ter paz, como posso adormecer, se nada sei dos meus? Se vivem, se morrem?”. A sua missão em Lisboa manter-se-á secreta até ao fim: ajudar os judeus a fugir para a América ou a Palestina. Missão equivalente à de outra figura também evocada por Ivo Machado: a de Aristides de Sousa Mendes, nosso cônsul em Bordéus, que ajudou à fuga de 30 000 refugiados, dos quais mais de 10 000 eram judeus, da França para Portugal, em 1944.

 

Também Sousa Mendes escreve: “A aflição desta gente é indescritível: uns tinham perdido os seus conjugues, outros não tinham notícias dos seus filhos extraviados”.

A tristeza de Anne era suavizada, porém, por Armando, que resistia, que não desistia, que animava: “A libertação há-de chegar!”, afirmava ele com convicção. A palavra “libertação” assumia para o poeta uma certeza luminosa e muito próxima, plena de imaginário e de sonhos de fraternidade.

Mais de 60 anos depois, as democracias europeias estão doentes, alvos fáceis de demagogos ou de dirigentes que esmagam as populações, arrebatando-lhes direitos adquiridos, em contraste com os sonhos de libertação de Armando.

Olhando para o mundo dos nossos dias, digo que a democracia é posta em causa quando figuras públicas desprezam ou desdenham quem se opõe às suas ideias, dentro ou fora do Parlamento. Porém, nunca é demais insistir que não é possível encontrar melhor forma de gerir as sociedades do que a democracia representativa parlamentar. Os regimes democráticos têm, dentro de si, forças suficientemente poderosas e renovadoras para encontrarem a verdadeira libertação, que passa pela renovação das mentalidades.

 

 

Mas – voltando a “O Homem que nunca existiu” e aos anos 40 –  a personagem Anne quer viver a sua beleza e a sua juventude, o seu coração forte não quer desistir: “Quero viver estes momentos que Lisboa me dá!”. Mesmo no túnel escuro e quase sem passado, pensámos que Anne, gostaria de cantar o Poema do Amor que nos falaria mais tarde António Gedeão: “do amor de ir, e voltar, e tornar a ir, e ninguém ter nada com isso.

Do amor de tudo quanto é livre, de tudo quanto mexe e esbraceja, que salta, que voa, que vibra e lateja”.

A acção tem momentos de grande intensidade dramática, como, por exemplo, o que se passa com a leitura, por Armando, da pungente carta do “poeta francês”:

“Em Janeiro de 1944, os plátanos de Paris choram”. Na mesma altura, Lisboa vivia, amordaçada, um silêncio de revolta, mas em que a esperança não morria. “Conseguiremos nós fazer com que o acordeon volte um dia a ouvir-se em liberdade? Quando poderemos voltar às esplanadas sem o receio de que ao nosso lado possa estar o delator ou o carrasco, o judas…?”.

A voz de Armando disparava, quase num grito: “Acreditemos!”, enquanto Maria do Carmo/Amália cantava:

“A Deus peço em oração outro destino, não este”.

“O Homem que nunca existiu” acaba por ser uma profissão de fé na capacidade do homem para se libertar de grilhetas, sempre temporárias, como temporários são todos os impérios terrestres.

 

E essa capacidade passa pela voz dos poetas, dos músicos, dos sonhadores, dos idealistas, dos amantes, dos que crêem nas utopias, dos que acreditam na paz, na beleza e no bem – forças do espírito sempre presentes, que subvertem os reinos das sombras.

É Anne quem o diz: “Armando (o poeta) deu-me o que me negavam. Devolveu-me a capacidade de acreditar no Homem. Ajudou-me a entender o mundo e os homens”.

Até o fado, diz o poeta, pode ser um veículo de transmissão dessa força harmoniosa e poderosa que é a poesia: “Os meus versos estavam perdidos e tu soubeste encontrá-los. A tua voz deu-lhes alma e é a tua força que lhes dá vida”, diz ele a Maria do Carmo/Amália.

Do mesmo modo podemos concluir que textos como este, sejam ou não teatrais, podem ser extraordinários meios de combate dos anos maus da história da humanidade.

O homem das décadas vindouras, o homem do século XXI, deveria

ser um profundo amante da liberdade e da poesia (e não só da liberdade, como, por vezes, dizem por aí), livre-pensador, sensível ao amor, ao humor e à cultura, sob o império da fraternidade – talvez o quinto…

 

Revisto e alterado em Abril de 2012

 

 

 

Por vontade do autor, o texto está escrito de acordo com a ortografia tradicional portuguesa

 

 

 

Nota da Direção: O título “Praça da Liberdade” já existe, neste jornal, desde setembro de 2011, pelo que qualquer rubrica, em outro órgão de comunicação social que tenha utilizado, posteriormente, o mesmo título, é somente fruto do(s) seu(s) “criativo(s)” autor(es).

 

 


[i] Antoine de Saint-Exupéry, Carta a um Refém, Grifo, Lisboa, 1995, pp. 7, 15, 16, 57, 58.

 

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