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Manuel da Correia Mendes: “O IVA a 23 por cento é uma BOMBA ATÓMICA para a RESTAURAÇÃO! É um completo disparate!”

 

Manuel da Correia Mendes. É o nome do nosso convidado. Tem 62 anos. È natural de Arouca, e se calhar, pelo seu nome completo poucos o conhecerão. Mas, se dissermos que ele é o proprietário de “A Cozinha do Manel” – restaurante de referência na cidade do Porto, situado na emblemática rua do Heroísmo, a dois passos da estação do Metro – já não faltará, por certo, quem o conheça.

Instituição nobre da gastronomia regional, “A Cozinha do Manel” é local de referência para muita gente, incluindo certas individualidades. Manuel conquistou-a com muito sacrifício, fez das tripas-coração para chegar onde chegou. Mas, mesmo com a “casa feita” e com todo o trabalhinho a que ela obriga, não desiste de outras lutas.

 

O IVA para a restauração a 23 por cento é, hoje, uma das suas batalhas. Está contra e apresenta as suas razões. Só que o nosso jornal foi mais longe, e dá-lhe a conhecer, ao pormenor, numa longa mas interessante entrevista, um homem de espírito aberto, solidário, amigo do amigo e que ama a sua profissão de uma forma muito peculiar.

 

O senhor Manuel sabe receber bem, é bom falante e conhece, como poucos, os bastidores do sucesso. Com trabalho – muito trabalho! –, conquistou o seu “espaço”, soube-o consolidar projetando-o. A qualidade do serviço que oferece fala por si e pela sua equipa, mas, por si, falam também as palavras que se seguem. Histórias na primeira pessoa do singular que identificam um homem de sucesso, a quem o dinheiro, pelos vistos, não lhe subiu à cabeça.

 

Sendo natural de Arouca, quando é que chega ao Porto para desenvolver esta carreira de sucesso?

“Em 1965. Comecei numa casa, também aqui na rua do Heroísmo, chamada “A Vicentina”, isto por intermédio dos meus padrinhos, que abriram essa casa. Entretanto, eles, que eram cozinheiros, emigraram para Bruxelas para trabalhar na conhecida “Casa Manuel” no centro da capital belga. Eu fiquei! Não quis ir com eles.

Assim sendo, fui trabalhar para outras casas na cidade do Porto, entra as quais no restaurante S. Pedro, e, por último no Ginjal do Porto, onde paravam os jornalistas do “Jornal de Notícias”. Ainda sou do tempo do “JN” junto ao Rivoli, só depois é que fizeram o novo edifício, em Gonçalo Cristóvão, precisamente, junto ao… Ginjal. Conheci todos os jornalistas da altura”.

 

E logo a malta dos jornais que gosta de comer e beber bem…

“Eles tinham mesas reservadas, e saiam de lá pelas três ou quatro horas da madrugada”.

 

Os tempos eram diferentes porque as edições fechavam mais tarde do que acontece agora.

“Saía a primeira edição, por volta das duas da madrugada, e, às vezes, uma segunda, pelas quatro horas. Muitas eram as alturas que, manhã cedo, levava maços de jornais – porque me pediam -para entregar em Campanhã de modo a serem encaminhados para o comboio”.

 

 

Buraquinho do Freixo: o “salto” para o sucesso!

 

 E depois?

“Depois vim para a rua Justino Teixeira, também junto à estação de Campanhã, trabalhei numa casinha, já na companhia da minha mulher. Entretanto, veio o serviço militar, em 1971. Então, o patrão, que tinha chegado do Brasil – trazendo quatro ou cinco filhos com ele – em agradecimento por tudo o que eu e a minha mulher fizemos, “ofereceu-nos”, por assim dizer, uma casa: o “Buraquinho do Freixo”… na rua do Freixo. Ele comprou a casa, a qual fui pagando conforme podia. Aquilo era mesmo um buraquinho, mas eu transformei aquilo, ao ponto de ficar, depois, com uma clientela de elite.

Por exemplo, cantores como Zeca Afonso, o Janita, o Vitorino, o Pedro Abrunhosa… toda essa nobre gente conheci-a lá.”

 

Mas, como é que eles e outros lá foram parar? Aquilo foi publicitado por passa-palavra?

“Exatamente, por passa-palavra! Os sindicalistas, por exemplo, como o doutor Carvalho da Silva, da CGTP-IN, também lá ia e, com ele, todos os outros. E isto tudo, porque nós tínhamos uns petiscos muito bons a partir das quatro até às sete horas da tarde, e depois dessa hora servia jantares. As pessoas habituaram-se a lá lanchar porque sabiam que encontravam sempre um bom petisco.”

 

Mas o local não tinha grande acessibilidade.

“É verdade. Mas, havia o caminho-de-ferro ali à beira, e também a antiga Companhia Geral de Transportes. Aos sábados e aos domingos havia jogos de futebol no Rui Navega, principalmente dos amadores: quando se juntavam duas equipas dos amadores… deus me livre! Havia os Leões Valboenses, os Passarinhos da Ribeira, o S. Vítor, aquilo, bem, aquilo era terrível no bom sentido do termo!

Uma altura, criei lá uma especialidade: Sopa de Pedra à moda de Almeirim, que não era muito habitual na cidade do Porto, mas sabendo as pessoas o que aquilo era, foi de um impacto brutal! Nós começámos a fazer a sopa para cinquenta pessoas e, rapidamente, passou para cem”.

 

Foi uma luta intensa!

“Sim, é verdade. Foi uma luta dramática, porque nós, os hoteleiros, não tínhamos, como não temos quase tempo para dormir. Por exemplo, aqui, nesta casa, eu fecho às 22 horas, mas às vezes é uma hora em que ainda há pessoal cá dentro e não os posso. nem devo. por lá fora.”

 

O regresso à terra com uma peixaria

 

Precisa de tempo para pensar – como é óbvio – no dia a seguir?!

“Nós temos, agora, tudo mais ou menos programado, mas há que fazer as compras logo de manhã cedo”.

 

E é o Manuel quem as faz?

“Sim. Sou eu quem escolhe todos produtos. Passa tudo pela minha mão. Não gosto de ser enganado. Saiba que a própria luz trai os nossos olhos!”

 

E ficou pelo Freixo quantos anos?

“Dezasseis anos! Depois apareceu alguém que me ofereceu dinheiro pela casa, passei-a, e regressei à minha terra (Arouca) e abri, no centro da vila, uma peixaria. Em Arouca não havia, na altura, uma peixaria! Só havia uma loja de produtos congelados da antiga SAPEC. Então, abri a tal peixaria, tendo que me levantar todos os dias – exceto às segundas-feiras – às três da madrugada para ir buscar peixe fresco a Matosinhos.”

 

Estamos a falar em cerca de cem quilómetros… ida e volta?

“Cento e tal…todos dos dias, menos aos domingos e às segundas. Com essa peixaria entrei em triunfo, e, depois, saí pela “porta do cavalo”. E por quê? Porque, como na vila não havia nenhuma peixaria a não ser a minha, os clientes das 21 freguesias que pertencem ao concelho vinham comprar-me o peixe. Um indivíduo, entretanto,, que lá tinha um supermercado, lembrou-se de fazer uma peixaria e criar concorrência, vendendo o produto a preço mais baixo ao que eu praticava. Não tive hipóteses! Quando comecei a perder clientela, e antes que fosse tarde, vim por aí acima… ”

 

 

De volta à Invicta

 

Rumou, retornando, ao Porto?

Sim. Fechei a peixaria. Entreguei as chaves ao senhorio, peguei na maquinaria – uns milhares de contos – e coloquei-as num armazém. Tempos depois, fui, já no Porto, ver jogar o Desportivo de Portugal, e perto de onde agora é a estação de Metro do Heroísmo – antigamente ali existia a garagem Grijó – estacionei ali e vi um senhor com um tacho na mão a dirigir-se para o que é hoje esta casa, e a abrir este estabelecimento que sabia estar fechado.

Então, fui ter com ele. Convidou-me a entrar, referindo ser profissional de uma agência de trespasses, tendo colocado cá (neste estabelecimento) o seu irmão.

Só que o tal irmão, pelos vistos, não gostava de trabalhar, e, utilizou este espaço para a criação de cães de caça. Ele tinha tantos cães, tantos cães, que acabou por ser apanhado pelas autoridades sanitárias, e o estabelecimento foi encerrado.

Ele deu, então, este espaço a uma agência dessas. Eles compraram a casa. Casa que acabei por comprar.”

 

Isto em que ano?

“1989. No dia 29 de junho fiz a escritura, abrindo-a a 04 de setembro do mesmo ano.”

 

Do “Xavai” à “A Cozinha do Manel”

 

Antes disso houve um historial, ou uma correnteza de pessoas que por aqui passaram? Eu, ainda miúdo, conheci o senhor Almeida.

“Sim. O senhor Manuel Almeida passou esta casa ao senhor Manuel Alves, que tinha um restaurante na avenida de Fernão de Magalhães. Ainda antes, o senhor Manuel Almeida comprou este sítio ao “Xavai”. “

 

“Xavai”?

“Sim. Esta casa era conhecida por “Xavai”! O proprietário era um galego. Quando as pessoas pediam qualquer coisa ele dizia: “xavai… xavai”. (risos) E ficou assim, popularmente, conhecida. Sabe que, na altura, a cidade do Porto foi invadida por galegos que, por cá, montaram tabernas, casas de comidas e etc e tal. Atenção que a Xavai data de 1917! O senhor Manuel Almeida comprou depois esta casa por volta de1940, passando de seguida – como já disse – ao senhor Manuel Alves, e ele, por seu turno, ao senhor Henrique Pereira, atual proprietário do restaurante “Cheirinho”, também sediado aqui na rua do Heroísmo. Depois foi a minha vez. Tomei conta da casa, e aqui estamos hoje!”

 

Cá estamos hoje, e, hoje, numa casa de referência da gastronomia regional, e por onde passaram e ainda passam personalidades de relevo da vida política, económica e artística do país?

“Sim. Ainda, recentemente  passou por cá o ministro Miguel Relvas. Veio cá almoçar.”

 

Referia-me a individualidades. Já passaram por aqui individualidades de relevo nacional e internacional?

“ Sim. O doutor Mário Soares: o ex-primeiro-ministro José Sócrates. Já tive aqui o governo em peso!”

 

Qual?

“O governo de José Sócrates.”

 

 Ah!

“Mas também pessoas do meio artístico; os maiores árbitros de futebol do mundo e das outras modalidades também…

 

… e, por certo, outros desportistas?

“Jogadores – principalmente do FC Porto-, mas também diretores do Sporting e do Benfica.”

 

 

“Não podemos dar pancada e, ao mesmo tempo, beijos aos clientes”

 

Como é que conseguiu conquistar tudo isto, criando, incontestavelmente, um espaço nobre – atrevo-me a considera-la “instituição gastronómica” -, na cidade do Porto?

“Com humildade, porque nós não podemos dar pancada e ao mesmo tempo beijos aos clientes. O cliente que vem cá é tratado com muito carinho e amizade. Eles, levando isso com eles, regressam! Nós damos bons artigos e boas comidas, mas, além disso, temos que lhes dar um pouco de mimo. Caso contrário, não há hipótese. Este de negócio é tipo um castelo criado em areia movediça… de um momento para o outro pode desmoronar-se!

Para se fazer uma casa é sempre debaixo para cima, e para se mantê-la de pé é preciso ter muito, mas muito, juízo!”

 

Teve consigo sempre esta ideia para o negócio, e, neste caso concreto, para a restauração?

“Eu fui atirado para isto, como se atira qualquer coisa às feras! Por quê? Porque eu vim da aldeia, de Canelas-Arouca.

 

Canelas-Arouca?!

“Sim, a aldeia das trilobites (visitar em www.canelas.com. pt). Terra das ardósias. Em Portugal só há a verdadeira ardósia em Valongo e em Canelas-Arouca. E lá, na minha freguesia, os fundadores da “louseira” encontraram fósseis com milhares e milhares de anos, mas eles, na altura, não sabiam bem, o que aquilo era. Vá lá que guardaram sempre aquelas peças!

Até que, os que estão lá – são já da quarta ou quinta geração dos fundadores -, um dia, chamaram, entendidos na matéria, e, estes, observando e estudando o que lhes apresentaram, ficaram mais do que surpreendidos com o que viram. Disseram eles: isso são trilobites! Havia por lá mais de mil peças.

Foram, então, a Arouca mais de 600 delegados de todo o mundo que confirmaram a importância do achado, obrigando, por assim dizer, à construção do “Museu das Trilobites”.

 

“Quando esta casa abriu ao público foi um sucesso!”

 

Mas, quando chegou aqui, a esta casa, ela encontrava-se abandonada?

“Sim. Esteve abandonada durante dois ou três anos em termos de restauração. Tiramos camiões de lixo de entulheira. Tivemos que fizer um grande investimento para restaurar este espaço, pintando-o, desinfetando-o, e por aí fora. Durante os primeiros dias tive de trabalhar com o pessoal da casa e convidar pessoas amigas para fazer um teste: teste ao qual eles teriam de responder, com toda a sinceridade, sobre a qualidade do nosso serviço.

Isso aconteceu durante quinze dias até à altura em que abrimos, definitivamente, a casa ao público. Foi uma coisa tremenda. Foi um sucesso”.

 

Ao ponto de ter de selecionar, mais tarde, os seus clientes.

“Era muita a clientela, e havia, no meio deles, umas “ovelhas ranhosas”, não em termos de almoço ou jantar, mas, principalmente, aos lanche…”

 

Havia uns copitos a mais?!

“Pois. E eles estavam a estragar-me a casa. Isso baralhava o sistema! Então, decidi acabar com os lanches e trabalhar, somente, com almoços e jantares”.

 

A esposa de Manuel: Piedade Mendes e a filha: Isabel Santos.

 

De fazer crescer água na boca (I)

 

E foi, por certo, com essa seleção, que criou uma instituição gastronómica de referência na cidade do Porto. São muitos os pratos especiais que por cá se confecionam, como, por exemplo, a vitelinha assada em forno a lenha.

“A vitela é prato especial para todos os dias. Depois, a pescada, o polvo com arroz e filetes do mesmo. Mas, quem não quiser só o arroz de polvo povo escolher outra coisa para acompanhar. Há pessoas, por exemplo, que gostam de o fazer com esparregado. E faz-se! É uma delícia! Nós fazemos o esparregado, com espinafres que vêm fresquinhos dos Açores, duas ou três vezes por semana, e acompanha bem com qualquer coisa.

Por exemplo, um prato que, nem toda a gente gosta, mas que é extraordinário, é a faneca!

 

O problema são as espinhas.

“É preciso saber abrir a faneca. É como acontece com o linguado. E, depois, tem de ser, extraordinariamente, fresco! Estes peixes não suportam variações de temperatura. Outro peixe fantástico, que tem uma clientela muito própria, é a raia…

 

Frita? Ah!?

“Com uma saladinha ou com uma batatinha cozida, por exemplo. Mas, a raia tem de ser muito fresca, porque se a raia tiver já uma cor acastanhada… não dá!”

 

De fazer crescer água na boca (II)

 

Começou, definitivamente, a abrir o apetite aos nossos leitores. Mas, para além da qualidade desses pratos, o facto de serem cozinhados a lenha, isso dá-lhes, por certo, um sabor especial?

“É! Além dos pratos que referi também temos vários de bacalhau – por exemplo, à quinta-feira, fazemos Bacalhau à Gomes de Sá -, à segunda, bolinhos de bacalhau acompanhados com arroz do mesmo. À terça-feira… um arroz de pato à moda antiga…”

 

Pois!!!

“Com o pato esfiadinho, que leva pinhões e um arroz agulha especial, o qual vai ao forno para gratinar, sendo depois acompanhado com coxinhas de pato. Temos clientes especiais para este prato: o Vítor Baía é um deles. Ele vem cá todas as semanas!”

 

O Vítor tem, decididamente, bom gosto!

“E temos, por aí laboratórios, ou empresas que vendem fármacos, que, quando marcam um jantar para vinte, trinta ou quarenta pessoas, o que querem é o arroz de pato.

Tive o caso, há dois anos, de um responsável por um colégio de crianças, por detrás do Hospital de Santo António, me pedir para arranjar um arroz de pato para… cem pessoas!”

 

Ena!

“E ainda me pediu para fazer uma sopa especial para as crianças. E pronto, à hora, peguei no meu carro e lá fui levar tudo direitinho. Isto foi entregue ao meio-dia. Às cinco horas, estava o senhor aqui a entregar-me a loiça toda. Perguntei-lhe se estava tudo nos conformes, pois caso contrário não aceitaria o dinheiro, e a resposta foi esta: “Estava do outro mundo! Tanto assim que o pessoal gostou e quer repetir!”

 

De fazer crescer água na boca (III)

 

Mas, parece-me que há mais pratos especiais…

“Sim. Às quartas-feiras temos as Tripas à Moda do Porto. À sexta entram uns Rojões à moda do Minho, isto quando estamos nesta altura de Inverno. Ao sábado, voltamos a ter as tripas e o cabritinho assado no forno…

 

O tal cabritinho! Pois!!!

“Que vem da serra do Montejunto. Vem na ordem dos três quilos! É o chamado cabritinho da mama, que já tens uns três mezinhos e já comeu um pouco de erva… Se tiver um cabritinho mais velho, já há clientes que não comem. Tem de ser uma coisa tenrinha! Comem as costelinhas e tudo!”

 

E o Cozido à Portuguesa?

“Mais de inverno, às quintas-feiras, e só ao almoço! Tudo com um bom chouriço, um bom salpicão, uma boa linguiça com as moiras, as morcelas, os nabos, as batatas, a chamada “pinca” de Barcelos de asa larga, e depois um arrozinho a acompanhar feito com a água do próprio cozido e preparado nosso forno.”

 

De fazer crescer água na boca (IV)

 

E depois temos as sobremesas.

“Temos rabanadas todos os dias. Não esquecendo a nossa aletria, o leite-creme, o toucinho-do-céu… “

 

No “céu” começo a ficar eu!

(risos)“Temos ainda os Jerimú! Pouca gente sabe fazê-los.”

 

Os “Jerimú”?

“São docinhos feitos de abóbora-menina. Fazemos também o requeijão de ovelha com doce de abóbora. As pessoas gostam à brava disso!”

 

Ora, vamos lá a contas. Quanto custa, em média, uma refeição por pessoa?

“Com tudo: 25 euros. Já com um excelente vinho a acompanhar. Sobremesa, cafezinho e tudo! Tudo: 25 euros!”

 

 

“O IVA a 23 para a restauração é um suicídio total!”

 

Vinte e cinco euros que daqui a uns tempos passarão à história isto caso o governo mantenha o IVA a 23 por cento para a restauração?!

“Os 23 por cento são uma Bomba Atómica para a restauração. Trinta e mil empresas correm o risco de fechar, deixando cerca de cem mil pessoas no desemprego. Não há qualquer hipótese! Não há equidade! Ou seja, o senhor vai a um hotel e paga pelo seu alojamento uma taxa de seis por cento de IVA. Mas, depois, se for para a sala de jantar desse mesmo hotel, já tem de pagar a taxa de 23 por cento sobre o serviço que lhe prestarem. Isto é um completo disparate! Não faz qualquer sentido!”

 

É um problema grave…

“É um suicídio total! Os restaurantes estão a aguentar ao máximo. Algumas pessoas que tinham algum dinheiro em saco guardado, ou no banco ou em qualquer lado, foram-no buscar, porque além do IVA ser muito alto, há uma perda tremenda de clientes, uma vez que eles deixaram de ter fundo de maneio. E falo em clientes da classe média ou média baixa, que já não têm dinheiro, porque o Estado também lhes foi ao bolso! Eles não têm dinheiro para tomar um café, quanto mais para ir a um restaurante?!”

 

E a um restaurante de referência… pior ainda!?

“Pior ainda! Para irmos a um restaurante de referência, nós já sabemos onde vamos comer. Sabemos que vamos encontrar algo que o nosso estômago, ao sair de lá, agradecerá a dádiva…”

 

Mas, quem lá for, terá de ir com a bolsa recheada?

“Pois. Eles servem-nos um galo recheado, ou uns rojões, ou um bacalhau, entre outras coisas deliciosas, e temos que os pagar!”

 

“Há pessoas que estou a borrifar-se para isto”

 

Na manifestação realizada, recentemente, em Lisboa, pelos proprietários da restauração contra o IVA a 23 por cento, e na qual participou, contava com mais gente?

“Sim. Contávamos ter à volta de cinquenta mil pessoas, o que não era difícil, tendo em conta um universo de empresas que dão trabalho a 200 ou 250 mil pessoas, mas o número de pessoas presentes não foi o esperado.

Andamos de porta em porta, quase a mendigar para irem a essa ação de protesto. A verdade é que parte deles não apareceram! Há pessoas que têm pouco interesse, é o “estou a borrifar-me para isso!” Eles sentem na pele as dificuldades, mas deixam a coisa andar. Depois, houve ainda alguns que disseram não ter dinheiro para ir no autocarro!”

 

Um empresário de um restaurante não ter dinheiro para ir no autocarro, não é normal. A coisa está mesmo muito preta?!

“É muito complicado. Eram só doze euros e meio por cabeça. O movimento associativo da restauração foi espontâneo. Criou-se em dois meses e meio e está estendido a todo o país – incluindo as ilhas. E não era obrigatório o proprietário ir à manifestação, bastava que o mesmo arranja-se um cliente que representasse a casa, pagando-lhe, obviamente, o preço da viagem.

Contávamos com tanta gente, que sugerimos a quem fosse que levasse um farnel. E fomos com um farnel.”

 

Foi, acima de tudo, um convívio?

“Foi! No local onde ficaram estacionadas as camionetas – na avenida 24 de julho – pusemos no passeio os nossos farnéis. Foi uma festa. Os alentejanos e os algarvios nem perguntavam se podiam comer… foi um “toca a petiscar” , em convívio salutar,  que uniu a classe.”

 

 

“Já estamos com a água a chegar aos lábios!”

 

Entretanto, toda a posição apresentou na Assembleia da República propostas para que o IVA passasse para o valor intermédio de 13 pontos percentuais.

“Se assim fosse, as coisas já se equilibrariam um bocadinho mais, mas, mesmo assim, não seria fácil. Mas, já seriam menos 87 por cento de diferença. De 13 para 23 por cento é um disparate, mas não o seria, há dez ou doze anos, porque, nessa altura, havia muita clientela e clientela com dinheiro.”

 

Mas, passando para os 13 por cento, a coisa aliviava?

“Dava-nos um certo alívio! Olhe: na Espanha a taxa para a restauração, de oito, passou para dez por cento. Na República da Irlanda e no Luxemburgo a taxa é de três; na Holanda e na Inglaterra é de seis; e na Alemanha, que é um país rico e que está a mandar em toda a Europa, é de19 por cento.

Estes 23 por cento cortam-nos as pernas. Nós já estamos com a água a chegar aos lábios. Assim não há hipótese para sobreviver!”

 

“Fazer a gestão disto é… terrível!”

 

Entretanto, os proprietários da restauração fizeram também um dia de luta contra os cartões de débito e de crédito pela taxa que têm de pagar…

“…exatamente! Com o “American Card” e com o “American Express” são cinco por cento, o que é uma exorbitância. Nos outros é de três e meio por cento. Quanto ao “Multibanco”, que leva coisa de meio por cento, poucos são os que o utilizam quando vêm ao restaurante.

 

Portanto, com a taxa de IVA a 23 por cento, mais o que têm de descontar para os cartões, mas essencialmente, o facto de terem de pagar a funcionários e todo o montante inerente à manutenção da casa, as coisas, verdade se diga, não devem ser fáceis de gerir?

“Aos funcionários temos que lhes dar Segurança Social, Seguro, e todos os anos têm de ir, obrigatoriamente, ao médico para fazer análises. Eles às vezes não querem, mas têm de ir! Os primeiros a ir, sou eu e a minha mulher.”

 

Depois há uma vigilância da ASAE – não sei se constante –, vendo se cumprem, ou não, com as rigorosas normas de higiene…

“Nós temos que praticar o HCCP, é algo que faz parte de um plano de limpezas. Tem de haver um controlo registado de quem faz a limpeza nesta ou naquela sala. Tem de se identificar o local da casa, os produtos e os materiais utilizados para a limpeza, os quais têm de ser referenciados pelo HCCP.

Quando, por exemplo, vou comprar um líquido para a loiça… trago, obviamente, o referido líquido, mas a empresa que mo vende tem de me passar um certificado daquele produto. Imaginemos que a funcionária é alérgica àquele produto, já não o podemos utiizar!

Isto, independentemente da nossa casa oferecer aos seus funcionários roupas, toucas, luvas, calçado e etc e tal. Tudo isso é pago por nós!”

 

Exigências que se pagam e que saem caras, mas que também garantem a qualidade do serviço?!

“Claro! Masfazer a gestão disto é terrível! A HCCP ainda nos obriga ao controle de temperaturas de expositores de produtos e arcas congeladoras. Se não cumprirmos estamos à pega. Por exemplo, temos uma máquina – que compramos e nos custosuquase mil euros -, a qual introduzimos dentro do óleo para saber se ele está em condições. Caso não esteja, tem de ir imediatamente para os “oleões”. Tudo isso é registado secção por secção!”

 

 

“Ainda bem que estão a aparecer novos chef de cozinha”

 

Retomando a questão relacionada, diretamente, com o IVA a 23 por cento, e, consequentemente, a vossa luta quanto à sobrevivência da indústria hoteleira posicionada nos seis ou 13 por cento. Isso pode afetar – casos as coisas corram mal – empresas que convosco colaboraram. Haverá, por certo, danos colaterais!

“Claro! Quem é que promove os vinhos, os queijos, os legumes, os peixes, as carnes e os azeites do país? É a restauração! Mas, os produtores, ainda não se perceberam dos danos colaterais que sofrerão aquando do encerramento de dois, três, cem ou mil restaurantes! Eles ainda não têm estado ao nosso lado porque não perceberam a real dimensão do problema.”

 

Com tal crise, onde é que serão empregados os novos chef de cozinha, que, hoje aparecem como “cogumelos” em tudo quanto é sítio? Há espaço para eles no mercado de trabalho?

“Acho que sim, porque os atuais já estão a ficar velhos. Há muita gente jovem – e ainda bem! – interessada na restauração. Interessada e com fino gosto! Há pouco tempo, alguns deles estiveram na Alfândega do Porto para aquele Festival dos Sabores e vieram cá jantar! Foi uma noite de festa!

Eles entraram anónimos. Depois, já à porta do nosso restaurante, tiraram fotografias e mais fotografias, e eu só dei por eles no fim! Fomos às lágrimas. A própria Justa Nobre – natural de Macedo de Cavaleiros – saiu às lágrimas. Ela é uma excelente senhora e uma excelente cozinheira! Trabalha para as televisões… trabalha para tudo quanto é sítio…

 

Fez parte do júri de um concurso da RTP?

“Sim. Portanto ainda bem que estão a aparecer muitos chef novos. O chef Hélio Loureio foi um dos dinamizadores de tudo isto, como o Rui Paula e outros nobres senhores da cozinha.”

“Nós, por cá, não somos de desistir!”

 

Você admira os seus colegas, ou seja, alguém ligado ao ramo não vendo a concorrência por simples concorrência…

“Não tenho esse complexo. Há vários colegas que são um bocado de nariz torcido, mas sempre me relacionei bem com a gente toda! Não foi fácil! Durante muitos anos, os hoteleiros da rua do Heroísmo, onde se encontra a minha casa, passavam por mim e viravam a cara para o lado. Eu lá tive de ir dizendo, de quando em vez, um “bom dia”, um “boa tarde” ou uma “boa noite”, até que, hoje, não há um que passe por mim e não me estenda a mão para me cumprimentar!”

 

Se tudo fosse assim, o IVA ia para os seis por cento?!

“Com certeza! Se todos estivessem unidos… conseguíamos. Mas, faltou união! Principalmente dos de Lisboa. Mas, o nosso movimento tem agendada uma grande reunião, caso a coisa não se resolva.”

 

Está confiante no futuro?

“Ah (risos)! Já foi feita uma comissão e pedida a um ministro, penso eu que o Miguel Relvas, que pediu para fazermos um estudo. Vamos lá ver! Nós, por cá, não somos de desistir”

 

Já algum, dos muitos políticos que frequentam “A Cozinha do Manel” se engasgou durante um almoço ou um jantar? Não pela vossa excelente comida, mas pela conversa acalorada que estavam a ter à mesa?

“Não!” (risos)”

 

 

Texto: José Gonçalves

Fotos: António Amen

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