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Entre a Ciência e as Praxes

António Pedro Dores

Sou tanto pela abolição das praxes como contra a sua proibição. As praxes são um sintoma. Há que compreender a doença social que as faz emergir e reforçarem-se. Quando começaram, praticavam-se dentro das universidades e duravam poucas semanas. Hoje foram expulsas das universidades e duram todo o ano. São um contraponto expressivo à pasteurização instrumental das associações de estudantes para capturar jotas para a política, treinando-os a organizar bebedeiras colectivas – dentro das universidades. Qual dos sintomas, as praxes ou as jotas, é pior?

Nos tempos revolucionários em que fui estudante universitário nem se ouvia falar das praxes. Eram coisas do passado, que os estudantes afectos ao regime fascista (na verdade, estudantes que aceitavam a legitimidade política do Estado Novo) usavam para fazer a tropa, a obediência cega e hierárquica, dentro da universidade. Eram tempos em que o CDS, esperança política dos portugueses mais ligados ao regime deposto, se proponha acompanhar a marcha para o socialismo. Hoje, ao inverso, o Partido Comunista defende um capitalismo de mercado, contra os monopólios. Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades. Os prazeres de ser igual a todos os outros e indiferente às ideologias, à política, à solidariedade, têm sido usados pelo regime actual com o objectivo de tornar Portugal numa sociedade normal, indiferente aos destinos do país e do mundo.

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Quando era jovem assisti repetidas vezes a gente a gritar “agarra que é ladrão!”, pois qualquer transeunte suficientemente sólido ajudaria a parar a fuga para esclarecer se se tratava de um meliante ou não, ali. Olhávamos para a televisão, espantados, com a indiferença dos nova-iorquinos que passavam de lado perante alguém caído no chão: não se atreviam a perguntar se precisava da ajuda. Hoje em dia somos todos nova-iorquinos. Não foi um resultado que não desejássemos.

Foi uma cultura que transmitimos às novas gerações: trata da vidinha, que os nossos políticos tratam da nossa e da deles, à sombra de uma Europa connosco, como a tia do Brasil do tempo da comédia do cinema português. Transmitimos isso através das escolas e das universidades. Nomeadamente através da luta para dividir os educadores (assoberbados de trabalho, tempos de deslocação para o trabalho e burocracias) dos professores (postos a correr o país, numa instabilidade provocada, sujeitos a espartilhos programáticos e à impossibilidade prática de cumprirem com os requisitos da profissão, como ensinados nos estágios, em particular no que tange ao acompanhamento das vidas comunitárias dos alunos e a experiência da democracia).

praxe 2

Através da subordinação da investigação científica a projectos orientados politicamente, por gestores científicos organizados pelo Estado. Através da esterilização da reacção das crianças e dos jovens à injustiça social e à incoerência das ideias: os estudantes de sociologia dizem-me, a sério, que os pobres são perigosos e a causa da pobreza é não saberem poupar. Os estudantes de economia aceitam que as técnicas de gestão são uma ciência, sobretudo no que tange ao despedimento de pessoal para emagrecimento das organizações.

Não é, evidentemente, um problema exclusivamente português. A nossa vacina anti-totalitária ainda parece ter efeitos no espectro partidário: mas a dos húngaros, dos gregos, dos franceses ou estava estragada ou já está fora de validade. A política de convergência europeia, sabemo-lo hoje, era converseta de ocasião, para satisfazer os vendedores dos produtos europeus em mercados controlados.

Na primeira crise, a austeridade selectiva rouba ao Sul para dar ao Norte, segundo um sistema colonial já muito experimentado. E tal como os povos colonizados, os nossos dirigentes estão encantados com a sua vidinha de exploração dos compatriotas, enquanto estes cumprem a praxe. Chateados, é verdade. Mas incrédulos como o sistema tão bonito que os dispensava de pensar na vida colectiva pode estar a funcionar contra si, continuam a fazer o costume, esperançados na volta da tia rica.

É preciso deixar claro: só um povo crítico e informado é soberano. A prática nas praxes (e das jotas de todas as idades), bem como a dificuldade em criticá-las, são sintomas do mesmo mal que leva as reitorias a sentirem-se mais preocupadas em lidar com as praxes do que com a destruição da ciência levada a cabo por este governo.

Fotos: Pesquisa Google

Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

01fev14

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