José Lopes/Tribuna Livre
Sob gestão familiar até finais dos anos 90, a empresa F. Ramada, atualmente de capital dominado pelo grupo Cofina, era a maior empregadora de Ovar e foi durante vários anos, após o 25 de Abril de 1974, um interessante exemplo de exercício de democracia na luta operária por reivindicações económicas e sociais, sustentadas no animado debate político promovido por ativistas e sindicalistas que reclamavam uma “corrente sindical de classe” antirreformista.
Entre as memórias da democracia da luta operária no F. Ramada como conquistas de Abril vividas e experimentadas. Ficaria gravado nos anos que se seguiram à revolução dos cravos, um episódio em que se registou a entrada de forças policiais nas instalações da empresa, na Cova do Frade, quando os trabalhadores do setor dos aços exerciam as aprovadas formas de luta para reclamarem os seus direitos sobre as férias.
Passavam 14 anos do 25 de Abril e muitos sonhos de liberdade e democracia se esvaneciam, com retrocessos históricos no que toca a direitos conquistados pelos trabalhadores portugueses. A Constituição era alterada e, exatamente em 1988, ano deste acontecimento verdadeiramente mais radical assumido por um dos setores desta empresa de Ovar, acontecia curiosamente a primeira Greve Geral conjunta da CGTP/IN e UGT (28/03/1988) contra o pacote laboral, como mais um dos ataques cirúrgicos aos direitos laborais e à democracia sindical, o que fazia realçar a importância e necessidade de exemplos de focos de resistência que iam alimentando a chama e esperança de Abril cada vez mais descaraterizado pelas forças do capital.
É pois, neste mesmo ano (1988) que em Ovar, na altura ainda com fortes concentrações operárias nos setores da metalurgia, indústrias elétricas, químicas, vestuário e têxtil, se regista um momento de eminente ameaça repressiva sobre os trabalhadores dos aços em greve no F. Ramada. Só mesmo a cultura operária na época, e a democracia vivenciada permitiram, com unidade, assegurar e garantir nesta empresa, ainda por mais algum tempo, mesmo em contracorrente ao ataque que já se fazia sentir no mundo laboral e sindical sobre os órgãos representativos de trabalhadores (comissões de trabalhadores e sindicais), uma ativa e empenhada organização e intervenção sindical e reivindicativa, sempre com o envolvimento e participação dos trabalhadores em assembleia de fábrica (AF), que marcaram alguma diferença nos meios laborais e sindicais em tempos de recuo nas conquistas que vinham dos dias cada vez mais distantes coloridos com cravos vermelhos.
Tudo começou com a falta de acordo na marcação de férias
Aproximava-se o tradicional período de gozo de férias e as Organizações Representativas dos Trabalhadores (ORT), comissão de trabalhadores e comissão intersindical do F. Ramada, alertavam a Inspeção de Trabalho para a alteração ao plano de férias dos trabalhadores do regime de turnos do armazém dos aços que a empresa se preparava para impor sem acordo prévio. Intenção a que os trabalhadores responderam, ao “não aceitar a divisão do turno em duas partes”, assumindo trabalhar, mas no seu turno e horários acordados. Assim o fizeram, comparecendo no posto de trabalho pelas 6h00. A estes trabalhadores, a empresa reagiu com processos disciplinares. Estava então iniciada, em finais de julho de 1988, a “luta dos aços” contra o que foi afirmado pelas ORT como “ilegalidade que a hierarquia da empresa e o Conselho de Administração (CA) pretendiam legalizar para de futuro tentarem alargar aos restantes sectores”.
Redobram-se os apelos à solidariedade para com os trabalhadores dos aços e multiplicam-se as ações de discussão das razões e causas da luta, cuja greve decretada a partir de 9 de setembro atingiu os cem por centro de adesão, em que se incluem três dezenas de jovens operários contratados a prazo, que, perante o cenário de conflito, se negaram também a trabalhar, acabando por aderir á greve, numa unidade industrial em que as ORT se negavam a negociar direitos e tinham a prática de defender cadernos reivindicativos de empresa.
O confronto esteve quase iminente
Uma semana depois, a resposta do CA foi o recurso à polícia, a 19 de setembro daquele ano, que, como denunciaram as ORT, “invadiu e ocupou as instalações do armazém de aços” sem consequências de maior, dada “a solidariedade completa dos restantes setores produtivos instaladas nas instalações da empresa na Cova do Frade para com os seus camaradas de trabalho em greve”.
Desta intervenção policial, cuja justificação para atuar foi anulada pela própria postura dos contratados, a quem a força policial vinha garantir a sua segurança na sequência da posição da empresa, que acusava “o piquete de greve de impedir de trabalhar quem o deseja”, resultou a realização de uma greve de solidariedade ao nível de toda a empresa, com grande adesão dos vários setores produtivos, incluindo o apoio económico para os trabalhadores suportarem o prolongamento da luta.
Falhada a repressão, aumentavam as campanhas de desinformação e os boatos proliferavam. Situação só contrariada com o exercício democrático praticado e fomentado pelos ativistas das ORT junto dos trabalhadores, através de comunicados quase diários e decisões em assembleia de fábrica.
A firmeza que tinha sido demonstrada pelos trabalhadores dos aços, mesmo perante a presença policial, era elevada. As ORT diziam ser “a maior garantia da defesa das liberdades de todos os trabalhadores” e, na muito participada AF de 30 de setembro, reafirmaram o apoio às reivindicações dos trabalhadores dos aços que estiveram na origem da greve deste setor, bem como o arquivamento dos processos disciplinares e, de forma surpreendente para a época, a defesa da passagem dos contratados a prazo a efetivos na empresa.
Por fim foi eleita uma Comissão Negociadora para reunir com o CA, cujo papel terminou em 6 de outubro, resultando num acordo possível, dada a então direção do Sindicato dos Metalúrgicos ter aprovado a posição global da administração do F. Ramada, segundo um comunicado dos grevistas (07/10/1988), em que também realçavam que, “apesar de não terem obtido a vitória total, era de satisfação por não ter havido naquele processo qualquer despedimento e não ter sido possível destruir as ORT como resultado da sua determinação”.
Consciência de unidade operária apurada durante sete semanas de luta que as ORT, num balanço, se congratulavam pelo facto de os trabalhadores dos aços terem sabido advogar o “exercício do direito de defenderem os seus direitos”, segundo a Lei de trabalho da época.
Fonte: Jornal de Ovar, 18/04/2008, “Memórias da democracia na luta operária no F. Ramada (texto de José Lopes)
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