O estado de degradação e risco de ruir em que se encontrava o edifício do Cineteatro de Ovar, como consequência de um demasiado longo período de abandono, que acabou por precipitar a sua demolição durante o mês de agosto, perante a cedência de parte da parede lateral (nascente) – provocando receios de grande perigosidade na via pública- chegou a merecer a devida atenção do Etc e Tal Jornal na sua edição de abril/2015.
A polémica demolição deste elemento arquitetónico da cultura ovarense, de que restou apenas a parte da fachada, não deixa de ser o corolário lógico e quase inevitável das sucessivas administrações autárquicas que o deixaram à margem das suas políticas de investimento em equipamentos culturais, a exemplo do Centro de Artes de Ovar entretanto construído junto à Biblioteca Municipal de Ovar.
Já o atual executivo da Câmara Municipal de Ovar, que curiosamente tinha previamente desenhado o projeto de reconversão do Cineteatro de Ovar com manutenção da fachada no âmbito do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano de Ovar, candidato a fundos comunitários que dá como finalidade pública àquele espaço, ser a porta de entrada nobre do Parque Urbano de Ovar. Ironicamente, só nesta fase de iminente derrocada, em que parte do edifício se começou a desintegrar e a colocar em risco os transeuntes na via pública, decidiu de imediato a sua intervenção através da “posse administrativa”.
Foi, no entanto, a existência de risco para os transeuntes que mais dividiu a população, entre os defensores da preservação da memória coletiva deste espaço cultural, que no grande ecrã projetou filmes que marcaram sucessivas gerações, ou espetáculos de teatro, revista e bailado que partilharam o palco com vários outros eventos culturais a exemplo do tradicional encontro reiseiro do Cantar os Reis, várias edições do Festovar e do Festival da Canção de Ovar e programação carnavalesca, incluindo no salão de festas deste edifício, os bailes e as edições iniciais do Ovarvídeo, alguns destes certames também desaparecidos.
Acontecimentos que incluíram eventos políticos mesmo antes do 25 de Abril. Memórias, entretanto, demolidas pelo argumento de risco de um mais grave desmoronamento, com consequências de outras tantas memórias que poderiam ser manchadas por uma qualquer tragédia, que, naturalmente, ninguém deseja que se sobreponha às felizes memórias, mesmo os defensores da manutenção do edifício, ou até, dos que de forma mais radical defendem a remoção de qualquer vestígio de um edifício que ali ficou literalmente abandonado e em ruinas, até ao ponto de o seu estado critico justificar uma intervenção, que afinal já algum tempo era uma oportunidade aguardada para resolver um deprimente cenário de decadência cultural, que as partes envolvidas não conseguiram dignificar e preservar.
Divergências até ao fim
Os últimos dias que duraram a demolição do Cineteatro de Ovar, foram de grande nostalgia e intensa polémica, bem como mote de diferentes pontos de vista sobre a lenta agonia de um imóvel com interesse arquitetónico e um património cultural da cidade de Ovar, inaugurado no final de 1944, com uma sala para cerca de mil lugares que deixou de funcionar como sala de cinema na década de 80.
Ainda que a polémica já algum tempo se fizesse sentir, nomeadamente através de um dos mais interventivos elementos da sociedades de proprietários do edifício organizados na ECO – Empresa do Cine-Teatro de Ovar, Lda, como é o caso de Paulo Gama Bonifácio, que perante a posse administrativa do imóvel pela Câmara presidida por Salvador Malheiro, classificou tal decisão autárquica de, “assalto ao Cineteatro de Ovar”, contestando os diferentes critérios para uma tal decisão de posse administrativa, ao questionar: “Porque Ovar está de velho, a cair?”, referindo-se a tantos outros imóveis em ruinas na cidade. Este membro da ECO voltou então a perguntar publicamente, “Porque não foram substituídas as telhas do Cineteatro de Ovar, danificadas com o temporal de 19 de Janeiro de 2013?”, situação consensual que acelerou a ruina do imóvel e o transformou num inquietante pombal cuja dimensão da concentração de pombas ficou bem evidente durante a fase da demolição. Um pedido de substituição de telhas que os serviços competentes do Município não viabilizaram e que este elemento da ECO ironicamente pergunta, “Um telhado novo quando a câmara queria era demoli-lo?”.
Têm sido muitos os argumentos esgrimidos pelos diferentes intervenientes neste processo, incluindo a necessidade de recuar no tempo para se reavivarem memórias de negociações entre a empresa ECO e a Câmara na altura (2006) já liderada por Manuel Oliveira, depois de mandatos como vereador da cultura. Foi então dado conhecimento à Câmara em janeiro desse ano, a proposta saída de uma deliberação da maioria do capital da sociedade, de venda do imóvel ao Município por 1.250.000,00 euros, com a condição, “tendo em conta a continuidade do edifício e prosseguimento dos fins para que foi criado os quais serão certamente alargados, tudo em prol da comunidade vareira, respeitando-se assim a vontade dos instituidores”, lia-se na carta enviada à Câmara.
Mas a edilidade ovarense não tardou a responder aos proprietários do Cineteatro e na missiva, em março desse mesmo ano, adiantando que, “o atual momento de dificuldades financeiras e restrições orçamentais impostas à Administração Local, (vertidas inclusive no Orçamento e Grandes Opções do Plano para 2006), necessitamos de mais algum tempo para avaliarmos e decidirmos sobre a vossa proposta em concreto”. E acrescentava: “Na verdade, para além de necessitarmos de informação sobre eventuais fontes de financiamento para o investimento proposto é mais importante que avaliemos as condições do imóvel, nomeadamente as decorrentes da importância da preservação do edifício”.
O destino ficou, assim, e então, claramente marcado para este património e apesar do atual executivo camarário também ter repetidamente publicitado interesse em negociar e adquirir o Cineteatro de Ovar para o seu projeto de porta de entrada para o Parque Urbano, as eventuais negociações nunca chegaram a bom porto, mesmo que Salvador Malheiro tenha afirmado que a única proposta oficial para aquisição do Cineteatro pertence à Câmara Municipal de Ovar, negando reconhecer uma proposta divulgada por Paulo Gama Bonifácio em que este sócio da sociedade revelou que a ECO fez uma proposta de venda à Câmara, em fevereiro de 2015, no valor de 350 mil euros. O fim acabou por ser o contrário do que curiosamente tinha decidido a DRCC (Direção Regional da Cultura) que em 2015 travou o pedido de demolição deste edifício que vinha estranhamente de 2009.
Demolição inevitável
Fica a dúvida de como vai reagir a sociedade de proprietários do edifício de que restou a fachada. Não estando afastado o recurso aos tribunais contestando a forma como foi desencadeado o processo de demolição, já que subsistem dúvidas sobre o projeto da mesma, suportado pela tomada de posse administrativa. Se o objetivo é demolir apenas a parte em risco de ruir, porque acabou tudo em pó, preservando apenas a fachada? Esta é uma questão que ainda não está esclarecida para os contestatários.
Na verdade o tempo acabará por trazer ao de cima muitos dos elementos que escaparam ao comum dos cidadãos ao longo de todo este doloroso processo de abandono, degradação, ruina e finalmente a demolição do Cineteatro de Ovar. Nesta disputa de verdades e responsabilidades, acabou por vencer o projeto que afinal, só aguardava mesmo pela inevitável demolição que transformou em pó uma significativa parte do património cultural de várias gerações, de uma comunidade que só despertou para a importância da preservação deste imóvel e do que ele representava culturalmente demasiado tarde.
Texto e fotos: José Lopes (*)
(*) Correspondente do “Etc e Tal Jornal” em Ovar – Aveiro
01set16
Século XVIII: descobriram que um objecto ferrugento não perdia peso, como todos pensavam havia muito tempo; pelo contrário, ficava mais pesado, o que constituiu uma descoberta surpreendente. Foi a primeira constatação de que a matéria poderia transformar-se, mas não perder-se.
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