José Lopes (*)
Os dramáticos e desumanos acontecimentos de que são vitimas o povo rohingya, sujeito ao crime de limpeza étnica em Myanmar (ex-Birmânia), que desde 1982 lhes retirou os direitos de cidadania, considerando esta etnia muçulmana apátrida e um dos povos mais perseguidos do planeta, que fogem para o vizinho Bangladesh às centenas de milhares, mulheres, crianças e velhos, para escaparem às execuções e violações dos militares birmaneses. “Crimes contra a humanidade” como classifica o secretário-geral da ONU, António Guterres, aproposito da violência que se abate sobre os rohingya, que só pontualmente merecem alguma atenção dos meios de comunicação social. Parecem não ter tido enquadramento lógico nas “teses” do livro, Da Ditadura à Democracia “O Caminho para a Libertação” de Gene Sharp, apontado como um guia prático para a luta nãoviolenta, cujo texto, ironicamente circulou clandestinamente também na Birmânia em cuja língua foi publicado e segundo o seu autor, “foi escrito a pedido do falecido U Tin Maung Win, destacado democrata birmanês no exílio, à época editor do Khit Pyaing (The New Era Journal)”.
Este texto “Da Ditadura à Democracia”, que surgiu como “fruto de mais de 40 anos de investigação”, foi editado em Portugal pela Tinta-da-china (2015), com testemunhos de nove presos políticos de Angola, em que se incluiu Luaty Beirão (músico e ativista angolano), que foram acusados de subversivos por lerem tal livro proibido em regimes totalitários. Teve desde a origem deste ensaio, a então realidade da Birmânia como uma preocupação de análise, dirigida a “democratas birmaneses e a diversos grupos étnicos da Birmânia que desejavam a independência do governo central birmane de Rangum”.
Entre vários regimes ditatoriais identificados na sua evolução face aos desafios populares de natureza nãoviolenta, que nuns casos precipitaram a queda de regimes totalitários e noutros foram promovidos avanços no sentido da democratização, como refere o autor no capítulo “enfrentar as ditaduras com realismo”, em que enumera também as manifestações de desafio politico na China ou na Birmânia à ditadura militar. A violência que se abate sobre o povo rohingya, perante o olhar de colaboração ou resignação da atual líder do governo de Myanmar, Aung San Suu Kyi, figura da resistência à ditadura militar e distinguida em 1991 com o prémio Nobel da Paz. Não é certamente coerente com este “guião” de resistência assumidamente pacifica, proposto e desenvolvido no livro Da Ditadura à Democracia, que foi certamente instrumento político de resistência na própria língua birmane à ditadura militar na Birmânia.
Aliás, a propósito do pesadelo vivido pelo povo rohingya, tratado de forma desprezível, não só pelos militares e governantes de Myanmar, mas também pela comunidade internacional. Neste capítulo, tais “teses” pacifistas, naturalmente avessas à tomada do poder por forma violenta, alegando que “os ditadores têm meios para responder com uma violência esmagadora” à resistência dos democratas. Não deixam de alertar para as fases de transição de regimes ou de figuras na governação, em que são possíveis cenários como os que continuam a acontecer relativamente ao ultraje da condição humana em Myanmar, que reconhece mais de uma centena de etnias e faz da vida do povo rohingya um insuportável inferno.
Neste livro de Gene Sharp, e na linha de outros seus textos sobre a luta nãoviolenta que tem influenciado movimentos de resistência pacífica em todo o mundo, o simples leitor (como eu próprio que em dezembro de 2016 comprei este livro na Livraria Doninha Ternurenta em Ovar, e o li sem medos neste país democrático), ativista ou militante de tais teorias pacifistas, não deixará, perante tal humilhação de que o povo rohingya é alvo, de reler, aprofundar e comparar teorias e práticas naquele país, ex-Birmânia, que nos remetem para as tão ajustadas referências à substituição de umas figuras por outras. Quando, numa governação mais recetiva à introdução de reformas democráticas, “uma vez consolidada a sua posição, a nova clique poderá revelar-se mais impiedosa e ambiciosa do que a anterior” ou seja, “poderá fazer o que bem entender sem se preocupar com a democracia ou os direitos humanos”.
Um quadro que parece retratar fielmente o martirizado e abandonado povo rohingya, bem assinalado num ensaio que a resistência birmanesa teve acesso à leitura e estudo, quando é afirmado, que, “mesmo após o derrube do sistema repressivo, a ausência de planeamento da transição para um sistema democrático contribuiu para o aparecimento de uma nova ditadura” ou uma estratégia circunscrita à mera destruição da ditadura, também “corre o sério risco de permitir o aparecimento de outro tirano” ou seja, e com o sofrimento do povo rohingya como pesadelo a que fechamos os olhos, “muitas vezes a paz de um ditador é apenas a paz da prisão ou do túmulo”, como se lê neste texto.
Ainda que na recente edição em Portugal de Da Ditadura à Democracia, se afirme que, “este livro tornou-se, no século XXI, um manual prático e um guia de orientação para a mudança de um sistema político e para transitar pacificamente de uma ditadura para uma democracia”, referindo-se ao momento histórico de Angola. Em Myanmar este livro não foi certamente um guia para uma prática coerente e consequente, quando Suu Kyi chegada a cargo de poder, ainda que em regime militar, fica em silêncio conivente perante tal barbaridade à etnia rohingya.
(*)Texto baseado no livro de Gene Sharp, Da Ditadura à Democracia, Tinta-da-China
Fotos: pesquisa Google
01abr18