Maximina Girão Ribeiro
Parece-nos bizarro, hoje, falarmos em aguadeiros quando, em nossas casas jorra, em abundância, a água nas torneiras, sempre que dela necessitamos. Mas, nem sempre foi assim…
Até ao abastecimento regular de água ao domicílio, as pessoas procuravam o precioso líquido nas fontes públicas, nos rios, nos poços, ou nas ribeiras. A data de 1392 representa o mais antigo registo histórico da existência de fontes e chafarizes, no Porto, para uso da população, embora sem a garantia das melhores condições de higiene pois, antes da vulgarização da água canalizada, a qualidade deste bem precioso era muito deficiente e representava um enorme perigo para a saúde, devido à constante contaminação de poços e de fontes, o que provocava a propagação de inúmeras doenças.
Ir à fonte buscar água era uma tarefa morosa, porque havia sempre muita gente para se servir da bica de água e era um afazer também muito custoso, porque os cântaros de barro pesavam bastante e, às vezes, a distância a percorrer até ao destino era grande. Daí, o facto de a cidade ter tido os chamados “aguadeiros”, indivíduos que transportavam a água ao domicílio ou a vendiam pelas ruas. No entanto, o escritor Alberto Pimentel, no “Guia do Viajante no Porto”, de 1877, diz que «[…] os aguadeiros portuenses não andam pela rua oferecendo agua, como os de Lisboa. Estão afreguezados, e levam a agua todos os dias a casas certas. Usam chapeu desabado, ou boné, jaqueta com chapa [numerada, seguramente] e enormes sapatos, quasi redondos, presos com atilhos sobre o peito do pé.»

Em séculos mais recuados este trabalho era feito por escravos negros ou por criados das casas ricas e, mais tarde, muitos desses “aguadeiros” eram galegos, fugidos das suas terras de origem para escaparem à pobreza, ou ao serviço militar. A proximidade do nosso país facilitava o atravessamento da fronteira do Minho e as afinidades linguísticas tornavam Portugal um destino privilegiado da emigração galega.
Diz-nos Manuel Pedro, em Julho de 1948, em “O Tripeiro”:
«Os velhos e característicos usos da cidade do Porto, tão do agrado dos portuenses de outrora, foram desaparecendo pouco a pouco e ficaram apenas, às pessoas de meia idade para cima, gratas recordações deles. Com que saudade relembro os aguadeiros, esses honrados e humildes cidadãos de Tuy, Porrinho, Redondela, Orense e Verin! […]
Não se pode negar que os aguadeiros galegos, em tempos idos prestaram óptimos serviços aos habitantes da cidade da Virgem, pois todo o cidadão, rico ou pobre, que quisesse água para o consumo doméstico, tinha de a ir buscar às fontes ou aos chafarizes mais próximos da sua residência. Para a gente fidalga do burgo tripeirinho era muito mais cómodo – a troco de meia dúzia de vinténs por mês -, podiam ter alguém que lhe levasse a água todos os dias a casa. […]
A água era transportada em interessantes canecos, com um metro de comprido aproximadamente, de aduelas de madeira envolvidas em arcos de ferro, e tinham a parte inferior mais larga que a superior. E, para melhor conduzirem, depois de cheios, tão pesados canecos, prendiam ao ombro esquerdo um pedaço de couro, onde os ditos assentavam.
Os aguadeiros do Porto tornaram-se umas figuras emblemáticas, pelo motivo dos trajes que usavam: chapéu largo desabado ou boina, jaqueta ou blusa, calça de bombazina, botas mal feitas e pesadas ou enormes sapatos, quase redondos, suíças, e, em vez destas, uma farta bigodeira enfeitava-lhes o rosto. Estavam matriculados na Câmara Municipal e traziam sobre o peito uma pequena chapa de metal amarelo com o número de matrícula estampado.

Porém, os melhoramentos citadinos fizeram desaparecer os aguadeiros e os seus canecos, para serem substituídos pela Companhia das Águas, que passou a vender a água que era dos portuenses.»
As famílias mais abastadas estabeleciam contratos com os “aguadeiros” para que estes transportassem a água até às suas casas. Faziam este serviço levando o líquido em pesados barris até às casas e vazavam-no directamente nos potes de barro, colocados nos poiais das cozinhas.
Como lidavam com água, a estes homens cabia-lhes, também, o combate aos incêndios. Por esta razão era vulgar vê-los a acompanhar quem apagava os fogos.
Por essa época, existia o hábito de as donas de casa colocarem um sinal na porta ou na janela da casa que era, por vezes, um pano branco, que indicava a necessidade de abastecimento de água. Os aguadeiros conheciam este código da casa e faziam o abastecimento.
O trabalho que estes homens executavam era duro e ficou entre nós uma frase – “trabalho como um galego”, que denuncia esse esforço… Além do vocábulo “galego” indicar a origem geográfica (proveniente da Galiza), também se instalou como sinónimo de pobreza e de alguém que é «escravo do trabalho», ou que «trabalha muito mais do que o habitual», por desempenharem um trabalho árduo, um trabalho baseado apenas na força física, equiparável ao do animal de tracção. Não esqueçamos que, no transporte, contava a distância a percorrer e a dificuldade de o concretizar, dado que os canecos tinham metade do tamanho de um homem e as cozinhas ficavam, normalmente, nos andares superiores das casas…
Alguma legislação começou a vigorar para definir as regras do trabalho dos aguadeiros, como é o caso da portaria de 21 de Dezembro de 1821 que determinava que, nas fontes públicas, houvesse duas bicas, uma destinada aos particulares e outra para serviço dos aguadeiros.
A fotografia mostra bem essa separação pois, junto de uma das bicas, agrupam-se os vários canecos dos aguadeiros.

Também um Edital da Câmara da cidade do Porto, de 17 de Agosto de 1831, assinado por Joaquim Teixeira Duarte regulamentava a actividade dos chafarizes e dos aguadeiros.
Passaram-se vários séculos, até ser estabelecido um contrato para que a água chegasse canalizada às casas e oferecesse maior segurança a todos os que tanto dela precisavam. Esse facto só aconteceu em 1882, quando foi assinado um compromisso com a “Compagnie Générale des Eaux pour l’Étranger”, o qual foi aprovado por Carta de Lei, em 27 de Julho do mesmo ano, passando a água dos rios Sousa e Ferreira a fornecer a cidade, através de canalizações, até aos diferentes domicílios.
Apesar disso, até à década de 50 do séc. XX, os aguadeiros continuavam a exercer a profissão, embora em menor número. Há ainda quem se lembre que tinham, como grandes colaboradores, os burros…

Terminamos com duas referências aos galegos aguadeiros. A primeira é uma passagem do romance “Lápides Partidas” do escritor Aquilino Ribeiro que refere um aguadeiro galego, natural de Porriño, mas a trabalhar em Portugal, que escrevia à mulher, nos seguintes termos:
«A terra é boa, a xente é tola, a auga é deles e nòs vendemoslla.».
A segunda passagem é do autor Eduardo Noronha, em “Memórias de um galego”, em que uma personagem que diz:
«Os portugueses vão para o Brasil, nós vamos para Portugal, é mais perto, melhor caminho e ganha-se mais dinheiro.»
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Fotos: pesquisa Google
01mar19
Muito bom recordar o folclore e as dificuldades do passado. Há quem considere isto anedótico, mas faz parte da nossa história.
Lurdes Pereira