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Estado de Emergência

António Pedro Dores

No século XVIII, a par das medidas draconianas para lidar com o desespero e desorientação da população de Lisboa, atingida pelo tsunami de 1755, os arquitectos da cidade pombalina tinham em mente criar ruas suficientemente amplas para que o ar pudesse circular, bem como as pessoas o pudessem fazer sem terem que respirar o bafo umas das outras. A higienização das cidades, como saneamento básico, água canalizada – a partir do aqueduto das Águas Livres – era recomendada pelos médicos, vocacionados a reduzir ou mesmo abolir as tempestades pandémicas, em nome do valor da vida.

Os combates à morbilidade, à mortalidade infantil, bem como o horizonte do prolongamento da vida, inspiraram a política daquele tempo. Concretizaram-se através de disciplinas sociais novas, como a família nuclear com direito a habitação digna, em vez da velha família alargada que vivia toda junta, eventualmente em condições de promiscuidade. A transformação dos hospícios em hospitais, a limpeza policial dos espaços públicos feitos através da institucionalização do sequestro estatal dos vagabundos e doentes, foram outras formas, continuamente desenvolvidas desde então, de higienizar a vida urbana.

À administração da saúde pelo estado chamou Michel Foucault, ele mesmo alvo de medidas de internamento psiquiátrico na sua juventude, bio-política. Alegou que este é o próprio princípio da modernização: o poder do estado, em nome da sociedade, de cuidar de formatar, seleccionar, internar, corpos docilizados pela incorporação de diferentes disciplinas, entre as quais a mais evidente é a de trabalhar voluntariamente, como forma de integração social, como sacrifício no altar da divisão social do trabalho, submetendo-nos à desigualdade económica, teoricamente a única legalmente legítima.

O estado de emergência vivido na sequência do 25 de Novembro de 1975 foi parcial: foi apenas na cidade de Lisboa e durou poucos dias. Foi uma reacção do estado à indefinição política do momento, com o objectivo de dar liberdades aos seus agentes e reduzir a liberdade dos cidadãos, suspendendo formalmente os critérios legais de igualdade perante a lei e proporcionalidade da intervenção das autoridades. Quarenta e cinco anos depois, volta-se a viver o regime de estado de sítio – como se dizia então – mas para organizar o combate entre todo o mundo e a natureza traiçoeira dos vírus.

Novamente, os médicos, ou melhor, a razão clínica volta a ser a ideologia dominante, suspendendo (temporariamente? definitivamente?) a ideologia financeira que nos tem governado faz já décadas. É preciso arejar e sanear as sociedades das condições ambientais e sociais que geram as oportunidades de pandemia.

O ministro das finanças e presidente do Eurogrupo disse que já estão disponibilizados muitos milhões de euros (não tantos quantos foram aplicados na banca) para reforço (ou revolução?) dos meios de combate à pandemia (ou a qualquer outra pandemia?). O mesmo Eurogrupo que lançou uma campanha xenófoba contra os países europeus do Sul, tratados como PIGS (porcos, em inglês) a pretexto de designar Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, para os fazer assumir, sob a forma de dívida pública, a parte da falência do sistema financeiro global que cabia à Europa, sabendo os impactos na saúde e no bem-estar das populações, naquilo a que se chama eufemisticamente as desigualdades sociais, vem agora suspender a razão financeira e substitui-la pela razão sanitária.

O estado de emergência não é, pois, a suspensão da política: é uma revelação dos principais problemas da política. Em 1975 era saber se haveria uma guerra civil ou se os militares estavam dispostos a regressar aos quarteis. Em 2020 a questão não é nacional: é, evidentemente, global. Perante ela, seja qual for o problema, os partidos e os órgãos de soberania portugueses declararam-se solidários entre si. Aquilo que foi a razão da austeridade, pela qual se passou mais de uma década de sacrifícios, o intratável déficit público e as sagradas regras do tratado da União, está tudo suspenso. Está suspenso em Portugal e no resto do mundo. É uma revolução: um retorno ao início, ao século XVIII e à preponderância do pensamento clínico. O que irá acontecer ao pensamento económico?

Haverá pensamento alternativo mais útil do que o clínico versus económico para orientar a política nacional e internacional? Será bom que haja, pois o nacionalismo segregacionista de que dão provas ambos os pensamentos dominantes, que agora alternam, são promotores do pior que há na espécie humana e ficou marcado a traços de horror na II Grande Guerra, de que tantas memórias têm sido, com razão, recordadas nos últimos anos.

Onde se pode encontrar o pensamento que é, ao mesmo tempo, bom para a saúde, para a abolição da miséria, para a prioridade à ajuda às pessoas em dificuldades, como os refugiados ou os imigrantes? Será possível ter esperança de, um dia, viver em segurança e liberdade?

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

Foto: pesquisa Google

01abr20

 

 

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