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Elevar o debate

Há duas maneiras de elevar o debate: a) excluir dos debates as pessoas que possam apresentar os interesses dos desvalidos; b) incluir nos debates todo o mundo, como dizem os brasileiros, mas no sentido ainda mais extenso que o Partido Pessoas, Animais e Natureza poderia usar.

Estado Social Real é uma reflexão sobre os limites das discussões políticas a partir da experiência de um sociólogo, que verifica haver uma homologia entre esses limites e os limites das próprias teorias sociais. Actualmente, a política é, ao mesmo tempo, uma actividade vergonhosa e um topo de carreira. É vergonhosa pelas suspeitas que imediatamente se levantam perante alguém que manifesta a vontade de se envolver em partidos. É um topo de carreira, por exemplo, para pessoas a trabalhar na banca, nas grandes empresas, na função pública, na universidade, com competências que possam ser úteis a este ou àquele partido e/ou para este ou aquele lobby. A corrupção não foi sempre um tema da política: foi Saldanha Sanches o primeiro a romper o silêncio. Desde então, em modo acelerado e banalizado, praticamente todos os dias, nos vemos arrastados para a lama com notícias cada uma mais inacreditável que a outra.

Nem sempre as notícias escandalosas foram as mais procuradas. O Ministério Público, por exemplo, durante muito tempo entendeu fazer vista grossa à corrupção, alegando serem casos de política e haver uma autonomia entre o mundo da política e o mundo da justiça. Tornou-se uma forma de legalizar os privilégios sob a forma de impunidade completa. Agora, os políticos, banqueiros, grandes gestores, até juízes, já podem ser chamados a pagar avultadas somas a advogados que os defendam. A impunidade já não é, como era, radical. A comunicação social especializou-se em torno desse novo fenómeno, criando canais de crime como décadas antes tinha criado a imprensa especializada em economia.

A tabloidização da comunicação social é a prova do rebaixamento do debate político, não só em Portugal, mas também em Portugal. Quando não é culpa dos ciganos ou dos africanos, quase tudo é reduzido a casos de (i)moralidade da lei e dos legisladores: incompatibilidades dos deputados ou os desvios de dinheiros, seja para benefício próprio seja para pagar a minorias que possam ser instadas a votar nos partidos mais influentes. Parece que são os tribunais os responsáveis por soltar criminosos que a polícia prende e, igualmente, pela impunidade das elites.

Tudo parece inevitável e rotineiro. A impotência de cada um perante a degradação do ambiente dos debates políticos reforça essa degradação. Sobretudo os mais jovens afastam-se da compreensão e da participação políticas. Podem imaginar que a imoralidade e os privilégios são normais. Quotidianamente assistem aos mais altos responsáveis a fingir-se admirados sempre que rebenta um escândalo: nunca ninguém sabe de nada e quando as coisas dão para o torto, os mesmos que dizem à justiça o que é da justiça, não se coíbem de manifestar publicamente o seu apreço pelos amigos, o abandono dos adversários, a exigência de mão dura para os excluídos. As dificuldades de encontrar e produzir equilíbrios e diálogos são substituídas por seguidismos partidários, profissionais, empresariais, justificados como interesses legítimos e privados.

Na sequência da revolução dos cravos, as instituições nacionais decidiram aderir à Europa, como se dizia. Fizeram-no numa relação de inferioridade que, ao menos era isso que nos asseguravam, iria passar com o tempo, com as políticas de convergência. Aderimos à Europa com a vontade da maioria de viver numa democracia de tipo ocidental. Com as sucessivas crises da democracia europeia e o crescimento evidente do uso da xenofobia e dos tabloides para promover políticas que provocam o ódio e a violência quotidiana nas relações pessoais, é tempo de ajudar a fazer um balanço sobre o que nos está a acontecer.

Estado Social Real é recomendado por Mário Tomé. Um ex-militar cuja vida é um esforço de balanço daquilo que conhece: não o mobiliza a política que eleva o debate excluindo quem não se pode defender. O que Mário Tomé defende é dar condições às vítimas para participar nas decisões políticas que lhes dizem respeito. Conhecendo a tropa, insiste na substituição das Forças Armadas por uma instituição em rede (como a internet) de defesa civil capaz de derrotar o belicismo e a corrupção associada. Ao mesmo tempo, isso pode proporcionar às pessoas comuns meios de auto-defesa, incluindo contra o estado nacional que, como infelizmente sabemos bem, abandona os desvalidos ao fogo, na velhice e em muitas outras situações que nem acreditamos serem verdade, como no desemprego, no despejo de casa, na doença.

 

 António Pedro Dores

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

01out20

 

 

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