António Pedro Dores
O mês passado foi marcado pela sentença instrutória do caso Marquês, ou melhor, pela esperada condenação de José Sócrates, como primeiro-ministro. A condenação saiu, sob a forma de fortes indícios de venda de personalidade. A opinião pública preferiu seguir o argumentário de auto-ilibação do arguido principal: o facto de ter caído a acusação de corrupção foi entendido como uma descriminalização do seu comportamento: culpa transferida para o juíz.
À opinião pública punitivista, a moral, privada ou pública, como a venda da personalidade ou o respeito pelos direitos humanos, não diz muito. O que lhe interessa é o tamanho da pena: tudo quanto seja menos da pena máxima é entendido como frouxidão e um favorecimento do crime. Por isso tem tanto sucesso quem alega que os limites legais de pena são insuficientes para a monstruosidade dos crimes. Entretanto, os crimes a acontecer todos os dias não chamam a atenção nem a polémica. A não ser quando há escândalos: nessa altura rasgam-se as vestes e puxam-se os cabelos. Até que a emoção passe…
Este mês, o escândalo confronta-nos com os crimes quotidianos, normalizados, banalizados, que passam desapercebidos.
Um surto pandémico entre trabalhadores agrícolas em Odemira foi denunciado pelas populações sujeitas a uma cerca sanitária. Populações sãs, cuja economia vive das explorações agrícolas que usam trabalhadores imigrantes, apontaram na direcção dos estrangeiros. Eram eles que estavam infectados. Por que razão todo concelho estava sob confinamento?
O argumentário apresentado aos jornalistas tinha todas as condições para descarrilar para o racismo. O racismo foi um dos motes mais importantes da última campanha eleitoral. O primeiro-ministro e o governo intervieram. Nas palavras épicas do ministro do interior, decidiram fazer um novo 25 de Abril no Alentejo.
O governo não levantou a cerca e procurou um inimigo: as condições indignas em que vivem os trabalhadores agrícolas. Os jornalistas foram ver de que é que o governo estava a falar e descobriram aquilo que os mais bem informados, como o governo, já sabiam: há escravatura misturada com o trabalho assalariado agrícola. À pressa, o governo procurou alijar responsabilidades e encontrou uma solução habitacional temporária e forçada para os trabalhadores que não estavam infectados.
A solução apressada levantou a oposição das pessoas prejudicadas pela requisição civil: quem tinha interesses nos bungalows do Zmar, para onde deveriam ser alojados, à responsabilidade do governo, os (pouquíssimos) trabalhadores disponíveis para mostrar, sob a forma de propaganda, a combatividade do governo neste caso. A expressão dessa oposição foi aproveitada para mais propaganda: estaria ali, pareceu, a burguesia opressora dos trabalhadores rurais. Foram tratados como as polícias costumam tratar os habitantes de bairros populares escolhidos para serem problemáticos. Os jornalistas seguiram a mobilização de alguns (poucos) trabalhadores, acordados do seu tempo de sono, para servirem de figurantes num cenário de luta de classes montado pelo governo.
De quem seria a responsabilidade de explorar os imigrantes e de os deixar na falta de condições de habitação condigna? Sem o apoio do estado e de sucessivos governos, não apenas em Odemira ou no Alentejo, mas por todo o país, de resto seguindo directivas da União Europeia, como seria possível encontrar escravos a trabalhar para empresas modernizadoras da agricultura? Sem a resistência do estado e deste governo, não seria difícil ter dado prioridade no ataque à pandemia às populações, por todo o país, que vivem em condições degradantes e indignas. Desde o início se sabe, essa é uma regularidade social sem excepções, as populações que vivem sem terem condições de salubridade e com menores possibilidades de manter boa alimentação e repouso, são mais atreitas a todas as doenças, incluindo a Covid-19.
Desde o início, a política de combate à pandemia incluiu o escamoteamento do facto simples e evidente, que a comunicação social minimizou como pode, de os alvos da pandemia não ser toda a gente por igual. Como se costuma dizer, para dizer o mínimo possível, a pandemia destapou as desigualdades sociais, que, entretanto, não param de aumentar em tempo de pandemia e com consequências para as próximas décadas.
Que pretende fazer a União a esse respeito? Continuar a delegar as responsabilidades sociais nos governos nacionais. Continuar a tratar de negócios em Bruxelas, incluindo a modernização da agricultura. Organizar estatísticas sociais nacionais para, semestralmente, serem apresentadas e alimentarem a competitividade social entre os governos e nacionalidades nos processos de encobrimento de situações endémicas socialmente intoleráveis e até criminosas, como a escravatura.
Para quem tenha dúvidas sobre a centralidade da política de encobrimentos vigente na União Europeia, que repare no que se passa em sectores como a banca ou a energia. Hoje é do domínio público que os ex-donos-disto-tudo alimentavam e alimentavam-se de relações elitistas de interesse, incluindo partidárias e desportivas, em que uma mão lava a outra, sob a vigilância afável do estado e dos organismos de regulação. Apesar do conhecimento actual, não é evidente que as mesmas práticas dolosas e depauperantes das finanças públicas não continuem a acontecer, alimentando a mesma elite expurgada dos que foram sacrificados para que tudo ficasse na mesma. Não admira que seja incómodo combater a corrupção e isso possa servir de cavalo de batalha dos movimentos de inspiração neo-nazi-fascista e das suas fake-news tão bem-sucedidas. Enquanto pouca coisa poder ser esclarecida de uma forma límpida, nos tribunais e pelo são debate público, a alienação dos portugueses relativamente às questões estruturais da sociedade, como os riscos sistémicos bancários, energéticos, pandémicos e sociais, não parará de aumentar.
Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Foto: pesquisa Web
01jun21