Maximina Girão Ribeiro
Quem desce a rua de Santos Pousada, logo no começo desta artéria, do lado direito e em frente à Praça Rainha D. Amélia [D. Amélia de Orleães, esposa do rei D. Carlos I], encontra uma capela dedicada a S. Crispim e S. Crispiniano, pertença da Irmandade, dedicada a estes dois santos, padroeiros dos sapateiros e tamanqueiros.
S.Crispim e S. Crispiniano eram dois irmãos nobres, romanos, que foram considerados pela igreja católica como mártires. Professando o cristianismo foram para França evangelizar, com tanta devoção, que ficaram conhecidos como os apóstolos do Norte de França mas, para poderem sobreviver, dedicaram-se ao ofício de sapateiros.
Com as perseguições aos cristãos, ordenadas pelo Imperador Diocleciano, em 303, os dois irmãos foram presos e martirizados. As cabeças foram-lhes cortadas e, mais tarde, levadas para Roma e guardadas numa Igreja, enquanto os corpos ficaram em França, na cidade Soissons, depositados numa igreja que lhes foi erigida e dedicada, pelos sapateiros da região. São venerados como oragos dos sapateiros, celebrando-se a sua festa a 25 de Outubro.
Pensa-se que a eles se deve o costume tradicional de colocar os sapatos das crianças, nas chaminés, nas vésperas de Natal.
Abro aqui um parêntesis para relatar a história dos sapatinhos na chaminé:
Conta-se que, há muito tempo, cerca do século III depois de Cristo, dois irmãos, chamados Crispim e Crispiniano, eram perseguidos pelos romanos por serem cristãos. Fugiram para muito longe e sem direcção, até se afastarem demasiado de casa. Perdidos e cansados, no meio de um bosque escuro, pediram abrigo, batendo à porta de uma cabana, isolada, no meio das árvores, naquela noite fria.
Acolheu-os com boa vontade uma mulher pobre que lá vivia, só com o filho. Deu-lhes de comer e deixou-os dormir na sua humilde casa.
Durante a noite, os dois irmãos decidiram fazer uns sapatos à mão para deixar ao filho da dona da cabana, que andava descalço. Ofereceram os sapatos à criança, deixando-os junto ao lume da lareira que aquecia a casa, como agradecimento pelo acolhimento que, apesar de pobre, a mulher lhes tinha dado. E partiram. Conta esta história que, na manhã seguinte, a mulher e o filho encontraram os sapatos, feitos por Crispim e Crispiniano, cheios de comida e de roupa.
O certo é que, em vários países, existe o hábito de se pôr meias penduradas na lareira ou junto das janelas. E, em Portugal, ainda se diz “pôr o sapatinho na chaminé.”
É uma história inspiradora que mostra que o Natal é ter este espírito: dar a quem precisa mais do que nós!
A capela primitiva, assim como o hospital e albergue de peregrinos, onde a Confraria dos Sapateiros tinha a sua sede, ambos anexos à capela, existentes desde o século XIV, situavam-se na rua das Congostas (actual rua Mouzinho da Silveira).
Em meados do século XIX, segundo Sousa Reis, a capela de S. Crispim, que já não era a primitiva, situava-se “[…] no cimo da Rua Nova de S. João, em face da Calçada de S. Crispim, vulgarmente conhecida de S. Domingos, à entrada da Rua da Biquinha, onde corre o Rio da Vila […], sobre o qual estava uma ponte para servidão da passagem pública.”
O conjunto de edifícios (capela, hospital e albergue) foram demolidos, em 1874, com a finalidade de se proceder à abertura da artéria que é, hoje, a rua Mouzinho da Silveira. Com a desmontagem da capela tinha-se a intenção de a reconstruir nas redondezas do local original mas, divergências com a Câmara, levaram à execução de um novo projecto e à sua instalação, no Largo da Rainha D. Amélia.
Em 1878, a capela dedicada a estes santos padroeiros foi construída, na zona da Póvoa de Cima, onde existia um pequeno e muito antigo povoado, o chamado 2Póvoa de Cima2.
A capela actual, construiu-se na rua que, na época, se chamava de S. Jerónimo, passando a chamar-se rua de Santos Pousada, em 1913, para perpetuar o nome de António José dos Santos Pousada (1854-1912), professor da Escola de Desenho Industrial Faria Guimarães, no Bonfim, deputado republicano, jornalista, defensor da instrução popular e seguidor da ideologia republicana.
Ao falarmos desta capela, benzida no ano de 1878, inevitavelmente temos de referir a importância da sua Irmandade.
A partir da segunda metade do século XIII e, ao longo dos séculos XIV e XV, a Europa viveu uma enorme crise, devido a pestes, fomes, guerras e calamidades naturais que provocaram muitas mortes, o abandono dos campos, a carestia de vida, o desemprego e o endividamento.
No sentido de acudir a uma sociedade marcada pela extrema pobreza, começou a desenvolver-se o sentido de solidariedade, surgindo as Confrarias, que se tornaram um precioso auxiliar da Igreja, igualmente com fins caritativos de amor ao próximo, a fim de prestarem assistência a doentes, sobretudo aos leprosos, a pobres, aos velhos, aos aleijados e cegos, às viúvas sem amparo, aos órfãos e abandonados, aos peregrinos e errantes, aos presos, aos fiéis no cativeiro de povos pagãos, aos marginalizados pela sociedade, aos defuntos que precisavam de enterro e eram contemplados com orações para aliviar as suas almas das penas do purgatório…
A necessidade de prestar assistência material ou espiritual, conduziu à criação de numerosas Confrarias religiosas e outras associações semelhantes, desligadas da igreja, mas com os mesmos objectivos de auxílio espiritual. Normalmente, as associações laicas eram constituídas por homens que desempenhavam o mesmo ofício, os mesteirais (oficiais do mesmo ofício), que se uniam para se ajudarem mutuamente, tanto nos aspectos materiais, como no campo espiritual.
A regra dos ofícios agrupados por ruas, como ainda hoje se pode constatar em alguns topónimos existentes na cidade, como rua dos Caldeireiros, rua dos Mercadores…, onde se instalavam os profissionais do mesmo mester (ofício), tinha por finalidade a protecção mútua, mas também a fiscalização, entre eles, sobre os preços dos produtos, pesos e medidas, criando-se laços de amizade e de entre-ajuda, sob a alçada de um santo protector, ligado a cada mester. Cada ofício possuía um estandarte ostentando as imagens dos respectivos padroeiros, bem como uma bandeira que os acompanhava sempre que a corporação se reunia, ou comparecia em público, por exemplo, nas procissões mais importantes, sobretudo na procissão de Corpus Christi, a mais prestigiada no Porto, que era um verdadeiro desfile sócio-profissional, em que participavam os vários estratos sociais da cidade, agrupados por profissões, em que cada agremiação ocupava o seu lugar, desfilando com a sua bandeira e as insígnias profissionais.
A Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, criada no séc. XIII pela Confraria dos sapateiros, tamanqueiros, soqueiros e outras profissões ligadas às peles, é das mais antigas de Portugal, com actividade regular. Numa acta de reunião da Mesa Administrativa da Irmandade, datada de 5 de Outubro de 1924, existe uma referência à sua fundação, fazendo-se alusão às comemorações dos 700 anos da Irmandade e referindo a data de 5 de Outubro de 1224, como correspondente à sua criação. No timbre do papel oficial, usado por esta Irmandade, está assinalada esta mesma data.
A importância desta Irmandade, na cidade, fez dela uma das mais ricas do Porto, dado que o seu património cresceu ao longo dos anos, aumentando assim os rendimentos à custa de doações testamentárias, em troca de orações e missas de sufrágio pelas almas dos seus beneméritos.
Possuíam uma capela e um hospício/hospital, junto à antiga ponte de S. Domingos, sobre o rio de Vila, destinando-se a acolher os peregrinos pobres que se dirigiam a Santiago de Compostela. Este Hospital foi fundado pelos beneméritos da Irmandade, Martim Vicente Barreiros e sua esposa Joana Martins que fizeram uma substancial doação dos seus bens pessoais e casas, à Irmandade. O hospital/hospício era conhecido por hospital dos Palmeiros e era composto por sete alcovas, com sete camas e, no andar de cima, mais três, perfazendo dez. Por baixo do hospital / capela e sacristia, ficavam cinco lojas pertencentes ao hospital. A designação de Palmeiros vem do facto de aqueles que regressavam da Terra Santa se fazerem acompanhar de folhas de palmeiras, embora os peregrinos a Santiago de Compostela fossem em número superior, pois o culto a S. Tiago, já na Idade Média, arrastava multidões à procura de salvação para as suas almas. Este Hospital foi, mais tarde, conhecido por Hospital de S. Crispim e, muitas vezes, aparecia simplesmente como Hospital dos Sapateiros.
Nos séculos XVI/XVII, esta Irmandade era considerada a mais numerosa e a que mais licenças pagava à Câmara.
Através do seu hospital, a Confraria dos Sapateiros prestava assistência aos pobres peregrinos, com agasalhos e tratamento das suas maleitas, oferecendo-lhes dormida, alguma comida e até esmolas. Nem só os peregrinos usufruíam desta assistência, pois muitos passageiros pobres aí eram recolhidos e se reconfortavam nos três dias permitidos.
No domingo mais próximo do dia 25 de Outubro de cada ano, celebrava-se a festa dos seus padroeiros – S. Crispim e S. Crispiniano, com missa solene e sermão e com a presença de todos os irmãos da Confraria. Contudo, no dia seguinte, comemorava-se o aniversário de S. João Baptista, o primeiro orago dos sapateiros.
A capela, de nave única, é graciosa, mas muito simples. Os altares são modestos, mas bem proporcionados, em estilo neoclássico e sem acrescentos posteriores. O templo apresenta quatro imagens e um Cristo de considerável valor artístico, bem como alguns quadros e duas tábuas de missas e de indulgências que eram da antiga capela. O edifício contíguo à capela é dotado de uma ampla sacristia e sala de sessões da mesa administrativa da Irmandade e, no rés-do-chão, a residência do Reitor.
A fachada da capela é, também, muito simples, toda em azulejaria, onde sobressai um janelão, por cima da porta principal. Neste conjunto da fachada, incorpora-se uma torre sineira, mais recuada em relação ao frontão triangular, dentro do qual se apresenta um brasão, com três flores de lis, que se diz serem as armas dos instituidores do hospital.
Ao lado desta fachada, existe um outro edifício de grande simplicidade, onde se encontram as palavras ”Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano”.
Hoje, esta Irmandade é detentora de um precioso acervo documental, de que constam registos de propriedades, doações feitas por beneméritos e muitos outros documentos de grande valor para o conhecimento desta instituição e da própria cidade do Porto. Entre os Livros de Tombo existentes, os mais significativos são os dos registos de irmãos e das doações, efectuadas ao longo dos séculos. Outros Livros registam os acontecimentos históricos, os actos e factos significativos e os procedimentos administrativos de maior relevância para a instituição. O “Compromisso da Irmandade do Ofício de Sapateiro”, é um pergaminho com 24 folhas, ilustrado com iluminuras e datado de 20 de Setembro de 1592, sendo considerado como o primeiro estatuto duma instituição corporativa, na cidade do Porto.
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Fotos: pesquisa Web
01dez21
Interessante. Ainda há poucos meses a visitei pois ao passar a porta estava aberta.
Excelente trabalho para o conhecimento desta Instituição e da sua importância para o Porto.Nunca consegui entrar nessa capela, apesar de lá passar há décadas e viver na zona. A porta está quase sempre fechada. A sua divulgação é importante.
A autora tem investigado e relatado no “ETC e Tal” inúmeros aspectos históricos da freguesia do Bonfim. Está na altura de desafiar, em nome do interesse público, o novo Presidente da Junta do Bonfim, Dr. João Aguiar, a editar um livro com todos estes textos históricos. Seria um acto de homenagem aos bonfinenses e de interesse público, não só para o Bonfim, mas para toda a cidade do Porto.
Querida amiga Maximina, muitos parabéns por este magnifico texto de investigação histórica, que muito interessa à população das ruas circundantes, bem como à Cidade do Porto. Acho que foi a primeira vez que esta capela foi objeto de tão significativo relato.