Miguel S. Albergaria
‘Avatar: O Caminho da Água’, de James Cameron, já teve em Portugal mais de 1M de espetadores (fonte: Instituto do Cinema e do Audiovisual). Junte-se-lhe a audiência do primeiro ‘Avatar’, que com ele partilha o pódio dos 3 filmes mais vistos nos últimos 18 anos, e ficamos com uma pista das mensagens cinematográficas atualmente com maior adesão entre nós. Como, de resto, noutras paragens.
Também lá fui, de arrasto pelas minhas filhas, que em dias de natal se encheram de nostalgia pela assistência em família às imagens originais do mundo de ‘Pandora’. O ritual familiar, como sempre, foi doce. E o pretexto pouco conta comparado com isto. Mas aquelas recentes estatísticas fazem-me revisitar esse filme no tom de que ele progressivamente se me revestiu: sombrio.
O deleite da Natureza… mas que “natureza”?
Designadamente, foi-me pesando à medida em que estendia cenas dedicadas apenas à fruição de árvores e animais fantásticos, voos por ares com montanhas suspensas, mergulhos em fundos marinhos povoados por criaturas ainda mais imaginárias.
Neste novo capítulo da saga, era de esperar a ligação à versão fantástica de ‘Pocahontas’ que foi o primeiro ‘Avatar’, com as invocações a uma mãe-natureza em rituais sexistas onde os humanos masculinos são apenas parcialmente admitidos, em oposição a uma malévola invasão economicista e tecnófila. A novidade agora é aquela chamada dos espetadores quase para dentro de Pandora, à margem da variação que desta feita se narra da conhecida intriga. Mas para onde, e exatamente como, se faz essa chamada?
Chama-se a um gozo com a pujança, a pureza ainda que pontualmente perigosa e uma aparente espontaneidade do que de espontâneo nada tem: produtos intencionais da imaginação. Isto é, composições de imagens sensíveis, tanto quanto a memória as preserva, uma vez abstraídas das unidades em que, naturalmente, as percecionamos – p. ex. a imagem de asas de arraia marinha, implantada na imagem de um corpo de dinossauro carnívoro… e aí temos um ‘ikran’ (googlei: é esse o nome do bicho em ‘na’vi’).
Em contraposição à fealdade e bruteza de umas máquinas cuja utilização ameaça e destrói aquela idílica fantasia. Máquinas cujo design, entretanto, mimetiza os nossos bem conhecidos e naturais insetos, caranguejos etc.
Ou seja, somos chamados à fruição de artefactos apresentados como naturais, num horror ou revolta contra sugestões de animais apresentadas por artefactos.
E como ocorre essa chamada? Artificiosamente. Quer no sentido de produção de artefactos, quer no sentido de ilusão.
No primeiro sentido, o espetador é chamado a Pandora mediante os efeitos especiais cinematográficos que distinguem o filme. Este constitui-se assim, primeiramente, como uma ode às técnicas e tecnologias que podem servir o cinema.
No segundo sentido do artifício, essas técnicas e tecnologias recalcam-se sob a explícita ode a uma Natureza que, embora fictícia, se não nega a servir de paradigma para a interpretação do nosso mundo.
A culturalidade da ‘Natureza’ e a naturalidade da cultura
Não se nega, mas também não pode ser explicitamente assumida como tal. Sob pena de quem o fizer ter de justificar a sua refutação da conclusão de William Balée sobre a flora amazónica (‘The culture of Amazonian forests’, 1989): essa floresta, longe de ser uma fonte espontânea de formas de vida diferenciadas mas harmonicamente integradas no seio de uma tal geração, evoluiu antes, nos últimos milhares de anos, conforme a ação de uma forma de vida específica: a das pequenas comunidades humanas. Concretamente, as zonas afetadas pelas atividades dos índios apresentam uma densidade de plantas úteis aos seres humanos muito superior a zonas sem intervenção humana. Se Cameron pretendeu aproximar os seus na’vi dos índios amazónicos, mais do que falhar o alvo, faltou-lhe o alvo.
Tal como falta a M. Heidegger e a quem o segue na distinção entre uma técnica moderna, violentadora da Natureza, e uma técnica anterior pela qual o ser humano se articularia com essa última. Dão como exemplo o contraste entre barragens que domam rios para a produção de energia elétrica e moinhos que aproveitam o vento. Ignoram assim as intervenções tecnológicas para controlar os rios Loire ou Ródano desde o séc. XII, ou a gestão das florestas europeias desde o séc. XIV (no que D. Dinis foi um dos precursores).
Como Étienne Anheim concluiu no colóquio ‘Les Natures en question’, organizado pelo Collège de France em 2017, não há sustentação historiográfica para a tese de uma conceção estritamente europeia e moderna da Natureza como despensa de recursos destinados à exploração humana.
Ficamos, antes, no plural desse título: diversas conceções de ‘Natureza’ se têm sucedido e interrelacionado. Desde a referida ‘mãe’ geradora e unificadora, passando pela ‘physis’ grega de processos regulares teleologicamente orientados, e pela tendência ‘naturalista’ moderna para um sistema de processos cósmicos mecanicamente organizados à revelia de qualquer especulação cultural, até à simples ausência de um tal conceito englobante (‘Natureza’) nas reflexões tradicionais chinesas sobre as mudanças físicas, sobre produções espontâneas sem intervenção humana etc. Mais participantes no referido colóquio enfatizaram isto.
Simetricamente, todas essas culturas têm versado fenómenos que algumas reuniram sob conceitos como os mencionados, os quais que se remetem mutuamente ainda que se não traduzam literalmente.
Em suma, não se encontra uma tal de ‘Natureza’ em oposição à cultura humana, nomeadamente a tecnológica. Mas a complexidade destes usos concetuais também não significa que se não justifiquem. Isto é, reconhecem-se acontecimentos de que se tem de dar conta, e todos aqueles conceitos são ferramentas para isto mesmo.
Fugir a essa complexidade, pela demissão de se dar conta de tais acontecimentos, será a solução mais perversa. Por exemplo, num desmentido radical de qualquer naturalidade, mediante o uso de tecnologias que, todavia, se ocultam sob as sugestões que promovem de uma Natureza então fantástica.
Resta-me desejar que a maioria dos espetadores de ‘Avatar’ o vão ver por razões paralelas, ou que dessa assistência não retirem mais do que um entretenimento com pipocas e efeitos tecnológicos especiais.
Foto: pesquisa web
01mar23