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Inorgânicos, populistas e a democracia

António Pedro Dores

 

Nos últimos anos, entraram no vocabulário político duas palavras que pretendem estigmatizar movimentos sociais e agentes políticos que os apoiam e manobram.

O centrão político na Europa e em Portugal perdeu o pé aquando da crise financeira gerada pela falência do sistema bancário privado. O centrão tinha-nos dito que o privado assumia riscos e por isso eventualmente enriquecia. Mas na segunda década do século remeteu para os estados a responsabilidade de pagar os desmandos dos bancos, que continuam. Foi nesse contexto que surgiu o uso frequente da palavra populismo para acolher as ideias neo-nazi-fascistas como protagonistas da nova situação política, que não pára de se agravar financeira e politicamente. A palavra populismo confunde ideias de extrema-direita com as de extrema-esquerda, como se tudo fora do centrão fosse igual e sinalizando que o centrão dispensa a aprovação popular.

Grande parte da população, informada pelo curso de outras palavras com o mesmo fim, como totalitarismo, em vez de reagir ao espalhar de ideias racistas, misóginas, nacionalistas, irracionais, encolhe os ombros e diz que isso não é diferente das ideias comunistas, internacionalistas, revolucionárias. Será assim?

A confusão de fundo é que há óbvias dificuldades em compreender porque pensamos o que pensamos. Temos a ideia – errada – de que cada um pensa o que quer. De facto, quem pensa diferente da maioria rapidamente tende a deixar de pensar e a adoptar um pensamento ajustado ao pensamento dominante para poder ter o apoio social que permite o diálogo e a aceitação. Pensar diferente, por outro lado, é indispensável para a manutenção das sociedades, seja como pessoal de saúde ou de socorro que enfrenta os mais extremos problemas dos outros como se fossem seus, por profissão, seja os cientistas e professores que aprendem e ensinam aquilo que é dominante e aquilo que não o é, para constituir conhecimentos especializados, mas também conhecimentos gerais.

Os professores em luta revelam como, enquanto grupo profissional, deixaram de ter condições para continuar a ensinar aquilo que é dominante, em sala de aula, e sentiram ser o tempo de ensinar a si mesmos e aos outros, os estudantes, aos funcionários das escolas, aos pais, à sociedade em geral, como protestar. Já não é a primeira vez que denunciam a falta de respeito com que o estado os presenteia por razões financeiras. O estado português, humilhado e colonizado pela União Europeia, juntamente com os outros estados do Sul da Europa, por ter uma dívida pública maior do que outros, foi escolhido para pagar mais os demandos do sistema financeiro global do que os países dominantes e mais poderosos.

As primeiras manifestações a reclamar respeito foram antes do tempo da Troika, quando Maria de Lurdes Rodrigues ascendeu ao estrelato da política precisamente por humilhar os professores. Nesse tempo foi acompanhada pela população, que tem razões de queixa dos professores, aqueles que distribuem notas às crianças e jovens que reproduzem e reforçam, as desigualdades sociais dos seus pais, tarefa a que cinicamente há quem chame ascensor social. Se a escola fosse um ascensor social, porque é que a vida em Portugal não pára de se degradar?

Foi no tempo da Troika que o ambiente político se radicalizou em Portugal, contra partidos e sindicatos. Prova-o a surpreendente manifestação de 15 de Setembro de 2012, quanto um décimo da população portuguesa saiu à rua aproveitando a convocatória nas redes sociais de um grupo de activistas que se manifestaram muitas vezes antes e depois com poucas dezenas de presenças. Foi também nessa ocasião que surgiu a expressão movimentos inorgânicos. Designa adesão popular a iniciativas políticas sem enquadramento partidário ou sindical. Inorgânico inclui um apelo para que os partidos e sindicatos integrados e submissos ao regime do centrão trabalhem para retomar as iniciativas de protesto que lhes são características, i.e., que explorem a energia social para vampirizar poder em favor dos respectivos aparelhos junto do regime.

Manifestação Nacional de 15 de setembro de 2012, em Lisboa

Há dez anos, os professores foram humilhados sem contarem com o apoio popular. Muitos deles participaram na grande manifestação contra a submissão do estado português à extracção de dinheiro organizada internacionalmente para compensar os buracos produzidos privadamente por banqueiros em toda a parte. Desde então, surgiram sindicatos novos e a extracção de dinheiro do estado português tornou-se normal, seja por vias oficiais seja por vias oficiosas. Hoje, o novo sindicato dos professores organizou formas de luta inovadoras e, sobretudo, mobilizadoras, com o apoio dos professores e do público. Novos apelos do regime para que os partidos e sindicatos de protesto, que serviram para acalmar os ânimos contra o partido que assumiu orgulhosamente o extrativismo contra os portugueses durante a geringonça, combatam os movimentos inorgânicos, na verdade os movimentos sociais.

Inorgânicos é a expressão para, do ponto de vista do centrão político, designar populismo, i.e., crescendo da presença popular na política. A expressão inorgânico serve para substituir populismo, conotada com neo-nazi-fascismo, quando seria ridículo e ofensivo usar populismo para nomear factos como as greves de professores.

Que melhor demonstração há da incorrecção de ambas as expressões – populismo e inorgânico – no léxico da gente comprometida em servir interesses alheios aos do povo português?

Pela minha parte, não percebo a resistência dos democratas em chamar os bois-pelos-nomes. Os neo-nazi-fascistas não são necessariamente hitlerianos ou mussolinistas ou salazarentos: são uma coligação de todos esses e mais outros que encontram no ódio aos outros, às elites e aos estrangeiros, às mulheres e às crianças, a toda a gente que possa parecer frágil, a forma de aliviar a raiva que todos sentimos pela impotência em que nos encontramos. (Há quem alegue rigor científico para reservar as palavras nazi e fascistas com sentido político para um passado que nos prometeram que não voltaria, mas está a voltar. É, então, a hora de melhorar e actualizar essa ciência).

A extrema-esquerda equivale a isto apenas na medida em que odeia as elites. Estou de acordo que seria melhor superar de todo o ódio na política. Mas que venha o primeiro partido, sobretudo aqueles que apoiam a guerra, e que atire a primeira pedra.

Há uma diferença substancial e notória entre odiar as elites e os impérios que construíram e continuam a construir à custa da humanidade e odiar 99% da humanidade, que é o sentimento que alimenta os neo-nazi-fascismos em todo o mundo, hoje.

Respeito pela vontade popular é, ou devia ser, o primeiro desígnio das democracias. Quando as democracias se encontram sob ataque dos nazi-fascismos e os denunciam como populistas, estão a projectar teorias conspirativas sobre como as pessoas funcionam, como se os povos fossem meros apêndices de caudilhos. Quando líderes de democracias se recusam a chamar os bois-pelos-nomes estão a aceitar acolher os caudilhos para se defenderem dos populares, pois sabem que os neo-nazi-fascistas são protegidos das elites a que servem.

Não são, porém, as democracias que criaram a expressão populista: foram os políticos do centrão que acordaram entre si usá-la abundantemente. Pretendem minimizar os riscos em que vive a democracia, não vá o povo querer defendê-la…

Em defesa das elites opressoras e exploradoras, as democracias actuais, lideradas pelo centrão, intrometem-se entre elas e os povos, como se sem o patrocínio das elites não pudesse houver democracia. O ódio às elites torna-se assim, paulatinamente, ódio a si mesmos e à democracia intrometida e falsa, que é do que vivem os nazi-fascistas, novos e velhos.

As expressões populismo e movimentos inorgânicos são anti-democráticas, ainda que usadas por democratas. Sempre houve democratas que preferem submeter-se às elites e aos impérios. São as elites que oferecem os melhores empregos. O povo apenas oferece afecto, nos intervalos dos sacrifícios laborais a que está sujeito.    

 

Obs: por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

 

01mar23

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1 Comment

  1. Jose Oliveira

    Só gostaria de refectir sobre o termo inorgânico. Para lá do que ficou dito, questiono o que é uma coisa inorgânica em sentido geral? O significado sempre foi designar algo sem vida, algo inerte como as areias, as pedras, os gases, etc. Então porque designar assim os movimentos de origem popular, as organizações vindas das bases, aquelas em que o povo espontaneamente se procura organizar e assim responder à captura das instituições (sindicatos, etc.) por parte das elites corporativas? Contrariamente ao que se possa deduzir do termo, esses são precisamente os momentos em que a sociedade civil revela a sua vitalidade, em que se afirma como viva e actuante. E se procurarmos quem são os verdadeiros inorgânicos, os petrificados, os sem vida, os encrustados no etablishment, então teremos de nos virar para organizações do tipo PCP. Portanto, chamar sem vida àquilo que materializa a própria vida, constitui mais uma armadilha linguística com que as classes dirigentes procuram apoucar a população que deveriam proteger, não atacar.

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