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Abuso sexual de crianças: clarificar prioridades

António Pedro Dores

 

“Nós, obviamente, precisamos aprender mais sobre as crianças que sofrem abuso sexual, mas também precisamos de uma revolução semelhante em nossa atitude e compreensão em relação à pessoa que comete abuso sexual.” Timann Furniss (1993) Abuso Sexual de Criança – uma abordagem multidisciplinar

 

As prioridades actuais de combate aos abusos sexuais fazem a economia das suas causas. Enquanto as causas encobertas e mal conhecidas continuam a produzir uma pandemia de abusos contra crianças, as orientações oficiais de combate do recém-descoberto (porque esquecido) problema tratam de (poucos) casos passados e de forma estritamente técnica. Os juristas colocam-se contra os abusadores e os psiquiatras cuidam das vítimas.

As prioridades não devem ser apoiar as vítimas, criminalizar os abusadores e esquecer os crimes que estão a ocorrer agora, para que tudo volte ao normal. A prioridade deve ser criar sobreviventes como anticorpos na perspectiva da guerra social para as próximas décadas para erradicar os abusos sexuais contra crianças.

A reconversão cultural e institucional capaz de estancar esta pandemia deve ser imposta e avaliada pela exigência de promoção do prestígio social de sobreviventes, ex-vítimas e ex-abusadores capazes de persistir e animar o combate firme contra os encobrimentos passados, presentes e futuros.

Os encobridores devem estar na primeira mira da acção social e política contra os abusos sexuais de crianças porque são esses negacionistas quem, através do seu poder institucional e cultural, produzem amnésia social favorável à acção dos abusadores. São os primeiros, abusadores ou não, quem impede as culturas e as instituições de actuar preventivamente apresentando como monstruosos comportamentos humanos que devem ser enfrentados, denunciados e reprimidos, em vez de púdica e cinicamente encobertos e esquecidos.

A vontade de fazer justiça punitiva não se deve sobrepor à vontade de encontrar algum caminho para a prevenção, para a erradicação do flagelo.

Saber quem são os abusadores não é um problema que o sistema de justiça esteja preparado para tratar. Mostrou-o o episódio do padre que se quis entregar às autoridades judiciais, na Procuradoria da República. Elas não souberam o que fazer. O sistema criminal funciona ao contrário: ao pretender fazer tremer os criminosos, não está preparado para que eles se entreguem sem guia de marcha. No caso, o problema é este: uma pessoa que abusou sexualmente de crianças e manifesta a disposição de assumir as suas responsabilidades e apoiar as vítimas, como declarou o padre, deveria ser tratado como um excelente e raro potencial exemplo de abusador sobrevivente. Infelizmente, foi tratado como uma piada. Os bispos perderam uma excelente oportunidade de mostrar que sabiam perdoar num sentido socialmente construtivo, útil e educativo, tendo em vista as vítimas que sofrem abusos neste momento. Mas a ignorância e as práticas de encobrimento toldam o discernimento e tornam as boas intenções ocas.

Ninguém pode ser acusado por estar doente ou por ter preferências sexuais menos vulgares. Por outro lado, se uma pessoa for acusada criminalmente e se alegar ter cometido um crime num momento em que não estava em condições de julgar o que estava a fazer, o tribunal terá obrigação de ter isso em consideração, seja para ilibar seja para impor medidas de tratamento médico ao acusado. Não se pode condenar quem não tenha tido opção de agir de outro modo. Em resumo: ainda que depois do Caso Casa Pia os tribunais tenham passado a condenar os arguidos que lhes aparecem, a esmagadora maioria dos casos continua encoberta e impune.

Pode e deve um tribunal, estatal ou eclesiástico, condenar pessoas doentes? Desde tempos imemoriais, tempo apenas interrompido faz alguns anos, já este século, os tribunais decidiam não condenar quem abusava sexualmente de crianças, presumindo implicitamente que eram pessoas doentes. Antes, também a homossexualidade era entendida como uma doença, de resto cujos portadores eram perseguidos no tempo do regime fascista. Donde, no tempo do caso Casa Pia, o abuso sexual de crianças ter sido usado pelos que ainda pretendem criminalizar a homossexualidade para confundir assuntos diferentes. Entretanto, enquanto os activistas LGBTI+ se foram dando a conhecer e a respeitar, o abuso sexual de crianças ficou no armário, soterrado no segredo social mais profundo. É, pois, muito bem-vinda a intenção de criar uma associação para representar publicamente as pessoas envolvidas em casos de abusos sexuais, caso seja capaz de definir bem as suas prioridades.

A homossexualidade saiu da lista de doenças que condenava as pessoas cuja orientação sexual não era conforme aos hábitos reconhecidos. Tendo em atenção esta experiência, será possível que haja quem pretenda conduzir a questão do abuso sexual de crianças para o campo biomédico? Será possível que se insista na confusão entre pedofilia e abuso sexual?

A certa altura, o escândalo tornou-se demasiado poderoso para se continuar como até então. Ocorreu aquilo que se costuma dizer, alguma coisa tinha de mudar para que tudo ficasse na mesma, como ficou. A Igreja portuguesa, por exemplo, revelou-se negacionista, mesmo contra o Papa. Na comunicação social não se critica os comentadores que confundem pedofilia com abuso sexual. Essa crítica é imperativa.

 

CONFESSIONÁRIOS MULTIDISCIPLINARES PARA FAMÍLIAS

 

Mais ou menos relutantemente, as autoridades mudaram de critério quando lhes apareciam casos de abusos sexual de crianças. Ainda assim, há quem, com estrondoso e surpreendente sucesso, consiga associar o abuso sexual de crianças a uma doença, uma parafilia, a pedofilia, a condição que leva as pessoas a excitarem-se sexualmente com a visão de crianças. Meio mundo parece convencido de que a epidemia de abusos sexuais é recente e que resulta de uma doença, a pedofilia. Engana-se.

Tal como ainda ocorre a respeito da homossexualidade e de outras orientações sexuais, presume-se que há doenças – coisas biológicas fora do controlo da vontade – que, ao mesmo tempo, dependem da vontade das pessoas – como a vontade eventualmente formada pela propaganda da chamada ideologia de género que convidaria as crianças a escolher no cardápio das várias identidades sexuais aquela que mais lhes agradasse, como quem escolhe o clube de futebol.

Do mesmo modo irracional e ilógico, prevalece na sociedade a ideia racista da inferioridade de certos grupos de pessoas, como as mulheres, os ciganos, os africanos, em que características biológicas e maldade voluntarista se conjugam para autojustificar raiva e desprezo social contra humanos que não podem ser questionados sem ataques de histeria e violência extrema. Sim, os neo-nazi-fascistas também são humanos e estão a ter crescente influência na cultura ocidental e para lá dela. Fazer deles monstros é um erro.

A esta luz, a figura do pedófilo que abusa de rapazes tornou-se a figura de cartaz do combate securitário e moralista contra a exposição e discussão públicas da existência da pandemia de abusos sexuais de crianças. Tal figura trai a intenção dominante, consciente ou não, de reduzir o problema nas suas dimensões de modo que os tribunais, os hospitais, os cuidados espirituais institucionalizados sejam suficientes para lidar com a situação. Trai a vontade de imaginar que tudo não passa de um pesadelo e que não está a acontecer hoje, a esta hora, a alguém perto de nós e que, em breve, tudo voltará ao normal.

Apresentar como monstros os neo-nazi-fascistas ou os pedófilos serve o eficaz encobrimento dos problemas de fundo, como o divórcio crescente entre os interesses das elites e os dos povos e como a recorrentemente esquecida pandemia de abusos sexuais contra crianças. A monstruosidade reduze os problemas à existência de pessoas más.

Embora não se saiba o suficiente para lidar bem com o abuso sexual de crianças, já se sabe o suficiente para que fique claro que se trata de um fenómeno com centenas de anos, provavelmente mais. Sabe-se também que a pedofilia não é disso causa eficiente: pouco ou nada tem a ver com abuso sexual de crianças. No mundo, estima-se que são afectadas pessoalmente por abusos sexuais entre 25% e 14% das raparigas e metade desse número no caso dos rapazes. Não se vai lá com panos quentes ou delegações a instituições especializadas cuja tradição é de encobrimento.

Sabe-se que se formaram serviços de saúde e de criminalização para atender vítimas e condenar abusadores. Mas isso também criou uma situação de reforço do segredo social em torno destes abusos. Vinte anos depois do caso Casa Pia, a discussão pública parte da estaca zero, pelo menos entre os bispos da Igreja que, como outros altos responsáveis a respeito de outros assuntos, não se lembram de nada.

Diferentes maneiras como se tratam as pessoas que cometem abuso sexual leva-as a revelar o abuso e a buscar ajuda, ou leva-as a manter o segredo e a continuar a abusar, escreveu Furniss. A polarização entre vítimas e abusadores não é favorável à luta contra os segredos sociais que estão actualmente a ser canalizados para os serviços de apoio médico e securitário. Esses serviços estão desapoiados. Sabem que têm resultados insatisfatórios: fico “exultante quando erro em 8 e não em 9 em 10 casos”, escreveu Furniss.

A existência de cuidados profissionais especializados mantidos apesar das frustrações, e bem, terá de ser enquadrada por políticas de combate aos encobrimentos e aos mecanismos sociais que reagem com repulsa à repugnância e incredulidade provocadas pelos abusos e deixam isoladas as vítimas que estão a ser abusadas neste preciso instante. Os encobrimentos continuam a ser a regra, dentro e fora das instituições.

O desejo de solidariedade para com as vítimas conhecidas não nos deve distrair nem iludir quanto às vítimas desconhecidas, em muito maior número. Eventualmente a sofrer por se sentirem cúmplices dos abusadores, pessoas a quem possivelmente continuam a respeitar e de quem desejam a presença, por incómoda que saibam ser. Pessoas a quem a experiência baralhou os sentidos que deveriam ser distintos do que seja o afecto e a sexualidade, a autoridade e o abuso.

Uma ou um sobrevivente dos abusos, seja ela ou ele vítima, abusador/a ou vítima & abusador/a, devidamente apoiada/o, é o instrumento mais capaz de desarmar os segredos sociais que impedem a tomada de consciência social e institucional da existência e significado dos abusos sexuais de crianças. Para lidar com este profundíssimo problema social e saber mais sobre os seus contornos não basta expulsar a questão para a Casa Pia, para a Igreja, para os médicos, para os tribunais, para os psicólogos. É preciso haver formas de assumir as responsabilidades não apenas dos que estejam envolvidos nos casos conhecidos, mas, talvez sobretudo, quem esteja envolvido em casos não conhecidos – virtualmente toda a gente.

A confissão é uma instituição delegada do poder de Deus numa pessoa que o transmite a outra. Talvez a reforma dessa instituição, usando-a em grupos, de índole religiosa ou outra, seja uma estratégia a seguir. O que é preciso a respeito do abuso sexual de crianças são confessionários multidisciplinares em que as famílias, e não pessoas isoladamente, possam encontrar-se com o sigilo e o respeito profissionalmente devidos por advogados, médicos e psiquiatras ou psicólogos de modo a transformar vítimas e abusadores/as em sobreviventes capazes de nos ajudar a compreender o que é e como erradicar os abusos sexuais de crianças.

 

Imagens: pesquisa web

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc. e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

 

01abr23

 

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