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De bestial a besta – hora de assumir responsabilidades

António Pedro Dores

 

Podia ser no futebol. Mas não é. O Professor Boaventura pode ajudar a compreender como foi possível a sociologia nacional e internacional permitir a criação de organizações académicas e de investigação em que práticas como as descritas no capítulo que despoletou o escândalo podem ocorrer por décadas. Em vez de insistir na tentativa, que reconhece vã, de salvaguardar o seu irremediavelmente destroçado estatuto social, pode ter a humildade de passar a comportar-se como um sobrevivente e lutar contra o populismo punitivo, que agora o quer humilhar, em vez de recorrer à justiça criminal – terreno favorito dos populismos.

O recurso à justiça, já condenado pelo Centro de Estudos Sociais, serve para desviar as atenções das questões académicas para questões de foro pessoal. O capítulo em causa acaba com um pedido, que merece ser ponderado e respondido, com proveito para todos e para a sociologia. Se o Professor entender distanciar-se de si mesmo e compreender sociologicamente o que está em causa, pode fazê-lo melhor do que nós: “Junta(r)mo-nos à crítica crescente que vem de dentro da academia para uma urgente troca de paradigma neste campo profissional para lutar por uma comunidade mais colaborativa, transformativa e interdependente” (tradução minha).

A sociologia e a esquerda não estão em forma. Nos treinos e nos jogos há uma mentalidade perdedora, um complexo de inferioridade que se conforma com o ‘status quo’, em troca dos favores dos financiadores. Ao contrário do futebol, a sociologia é como o vinho do Porto. Os mais velhos são melhores. Se o Ronaldo da sociologia se pudesse reinventar como sobrevivente, contribuindo para denunciar as limitações actuais do nosso campo profissional e científico e ajudar a dar conteúdo prático ao desejo platónico com que acaba o capítulo que o tramou, segura e merecidamente tornar-se-ia um ícone dos movimentos emancipatórios e evitaria ser pasto para populismos de direita e de esquerda.

É certo que tem sido o neoliberalismo que tem alegado a necessidade de mudanças estruturais. Mas refere-se à economia, à privatização, à desregulação. O pedido das autoras é de colaboração transformativa entre comunidades interdependentes. Li algo sobre isso em justiça transformativa: a proposta de um movimento feminista abolicionista contra o ambiente social patriarcalista que favorece os abusos sexuais contra crianças. Mas são precisas muitas outras contribuições.

Sou sociólogo, professor universitário, contemporâneo de Boaventura Sousa Santos e também acho que o paradigma do nosso campo profissional – e das ciências sociais – é mais limitação do que potencialidade. Assumo as minhas responsabilidades profissionais, científicas e cívicas. Mas preciso da ajuda dos colegas e activistas, incluindo do Professor Boaventura.

Nos anos 80, quando decidi enveredar pela carreira académica, a minha companheira de então, recém-licenciada foi convidada para entrar para a universidade. Explicou-me, para meu desconsolo, não estar disposta a isso porque a universidade, pelo menos na sua faculdade, era governada por casais que se dedicavam a tomar o poder e assediar os outros colegas. 30 anos depois, temo que a razão dela tenha alguma coisa de sociológico. 

Não tenho estudado – tenho vivido – uma academia em rápida transformação, da qual Boaventura Sousa Santos é uma referência incontornável, no país e internacionalmente. Sei que consegue que no Centro de Estudos Sociais que dirigiu desde sempre todos os investigadores citem a sua obra como se fosse uma bíblia. É de facto escandaloso.

Recordo-me de um representante da Associação Portuguesa de Sociologia ter sugerido haver vantagem para a sociologia se houvesse referências a outras autoridades da disciplina. Penso que o colega fez um bom trabalho com essa intervenção. Assisti ao manifesto incómodo do professor: perguntou em voz alta se não se fazia assim em todos os centros de investigação. Boa pergunta.

Cabe perguntar qual é o papel da avaliação externa e interna das universidades nestas situações. Deixo uma sugestão: os departamentos são legalmente responsáveis pela gestão das carreiras académicas. Existem regras, entre as quais a de equilibrada distribuição das responsabilidades de orientação de estudantes em mestrados e doutoramentos. Há professores que nunca têm orientandos (nem os benefícios daí decorrentes) e outros têm tantas orientações que é impossível orientaram toda a gente (com os prejuízos daí decorrentes). Os números são fáceis de apurar. Como é possível as avaliações das universidades não recolherem tais evidências de má gestão, sintomas evidentes de assédio endémico, com nomes e tudo?

Boaventura Sousa Santos

O picante especialmente intrusivo e perturbador do assédio sexual alegadamente praticado por Boaventura não deve servir para reduzir o que está em causa a casos de polícia. O caso é de política científica e da organização elitista dos poderes académicos e universitários, reforçada pelo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior. Indício disso são movimentações recentes na Universidade de Lisboa contra o assédio, que também devem ter o cuidado de não se transformarem em acções de polícia, misturadas com revanchismos.

Boaventura Sousa Santos, como os bispos, começou por se manifestar irresponsável, apesar dos seus cargos e das evidências. Chamados às responsabilidades, rejeitaram-nas. Não se percebe porquê: pelo menos encobriram os abusos de poder que estruturam as instituições que tutelam, mesmo que isso aconteça igualmente por todas as igrejas e todas as universidades.

Por que razão quem confirma a existência de abusos sexuais a crianças na Igreja e neoliberalismo e patriarcalismo nas universidades não assume responsabilidades nessas instituições, para o melhor e para o pior? Por que razão hipotecam o seu prestígio pessoal para manter encobertos comportamentos que aceitam ser intoleráveis? Por que defendem o indefensável quando ficam expostos? Acreditam que em breve “tudo voltará ao normal”? No calor do escândalo, não percebem que nada ficará como antes?

Boaventura demitiu-se. Honra lhe seja prestada. Os bispos não fizeram o mesmo, apesar de instados. O Centro de Estudos Sociais recomendou, muito bem e publicamente, que Boaventura não seguisse para os tribunais. A queixa-crime só pode servir para alimentar o populismo na comunicação social e na universidade e humilhar ainda mais o professor, mesmo que os tribunais venham em seu auxílio.

A contribuição de Boaventura na assunção de responsabilidades práticas e teóricas da sociologia no estado em que se encontram as ciências sociais e o mundo é reconhecida e será inestimável, se se dispuser a tornar-se um sobrevivente, apoiando as vítimas da universidade, em particular aquelas que conhece directamente. Está e estará em melhores condições que ninguém para ensinar a usar eficazmente a crítica para superar situações estigmatizadas, como é agora a sua, como é tradicionalmente a dos trabalhadores, das mulheres, dos indígenas, ciganos e outros racializados, dos presos, dos injustiçados, ao lado de quem se tem posicionado. Como libertar o espírito científico quando a sociedade parece afastar-se dele?

Em vez de procurar ajuda junto dos seus conhecidos na judicatura, o sociólogo pode decidir dedicar a sua nova vida a participar, melhorar e libertar do populismo o movimento de emancipação das mulheres que inspirou o relato anti-patriarcal que, por sua má sorte, mas sorte de quem possa disso beneficiar no futuro, o atropelou. Os treinadores e jogadores de futebol estão habituados a mortes e renascimentos jogo a jogo, época a época. Eles sabem, por experiência profissional, que o ressentimento compreensível não é bom conselheiro.

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do ‘Etc., e Tal jornal’, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

Foto: pesquisa web

 

01mai23

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