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Leitura de férias: ‘contra o relativismo e o construtivismo’

Miguel S. Albergaria

 

Na germinação do movimento ‘woke’ que veio a eclodir já neste século, o ‘New York Times’ (22/10/1996) publicou em primeira página a reivindicação de um representante dos índios sioux sobre a explicação da origem dos povos autóctones da América. Designadamente, contra a tese produzida segundo os métodos da arqueologia – de que esses povos teriam migrado da Ásia pelo estreito de Bering na última Era do gelo – aqueles índios ‘sabem’ que descendem do povo ‘Bufalo’ que ascendeu (literalmente) à superfície terrestre vindo do mundo dos espíritos sobrenaturais. Mas o mais significativo, nessa peça jornalística, é o juízo de alguns arqueólogos académicos de que as duas teses – e mais quaisquer outras que respondessem à mesma questão – valem epistemologicamente o mesmo. Isto é, de nenhuma se pode dizer ser mais ‘verdadeira’ do que as alternativas.

O ‘WOKEÍSMO’ E UMA DEPENDÊNCIA SOCIAL DO CONHECIMENTO

Dessa tese da ‘Validade igual’ de quaisquer teses teóricas alternativas pode derivar-se que, ao se estabelecer uma delas em detrimento de outras, se estará simplesmente a servir os interesses do grupo social que a estabeleça.

É aí que o atual movimento ‘woke’ radica as suas teses contra o ‘patriarcado, branco, heterossexual’ etc. A saber, os conhecimentos naturais (a física…), sociais (a economia…) e até formais (a matemática e a lógica) estabelecidos pela civilização de matriz europeia constituir-se-ão primeiramente como instrumentos dos grupos que, efetivamente, têm dominado essa última. Pelo que caberá aos restantes grupos – mulheres, homossexuais, não-caucasianos… – impor em paralelo construções cognitivas que sirvam os respetivos interesses.

Para o que muitos ‘wokeístas’ têm considerado apropriado ‘cancelar’ quaisquer agentes públicos que identifiquem como seus opostos – desde despedimentos profissionais, ataques pessoais e não publicação de obras, ao derrube de estátuas.

À razão da força de qualquer totalitarismo, como o dessa deriva ‘woke’, a única resposta eficaz é a razão de uma força maior que mantenha a liberdade da discussão de discursos alternativos. Numa democracia liberal e em Estado de Direito, os ‘cancelamentos’ são problema de polícia ou de tribunal.

No entanto, se o que se pretende não é apenas que se possa discutir, mas que esta discussão valorize justificações racionais e tão objetivas quanto possível, então importa começar por avaliar a força da razão que sustenta a tese da ‘Validade igual’ de quaisquer conhecimentos.

É certo que se pode simplesmente invocar que a argumentação a favor dessa base de sustentação do ‘wokeísmo’ ataca precisamente o valor da racionalidade no estabelecimento de alguma tese em detrimento de outras, pelo que se autorrefuta. Contra esta tentação racional, porém, logo o fundador da explicitação de formas lógicas e do seu recurso discursivo, Aristóteles, nos avisou sobre o sonho de alguma explicação racional total e livre de quaisquer anomalias. Pelo que, na oposição a todos os totalitarismos, sejam eles antirracionais como o ‘wokeísmo cancelador’, ou derivem eles de um sonho da nossa faculdade racional, deveremos aferir a força que reste àquela razão apesar da sua anomalia autorrefutativa.

Um ótimo instrumento para isto, inclusive pela linguagem simples, me parece ser o livrinho (131 pp. na edição inglesa, de pequenas dimensões) de Paul Boghossian, ‘Fear of Knowledge: Against Relativism and Constructivism’, Oxford University Press, 2006. Com tradução espanhola na Alianza Editorial (170 pp. também pouco carregadas de palavras), Madrid, 2009.

Neste contexto de leituras de férias, não deixarei de apontar que encontrei há poucos meses essa última edição (e comprei-a, esquecido da compra há anos com leitura infeliz e preguiçosamente adiada do original inglês, despistes por entre os labirintos da memória!) na excelente livraria Alibri, em Barcelona. Cuja recomendação deixo vivamente a quem passe por essa cidade e se interesse por temas como estes. Pois não conheço no Porto ou em Lisboa qualquer livraria cuja oferta sobre estas áreas se lhe compare, mais o bónus da competência e simpatia dos funcionários.

O CONSTRUTIVISMO SOCIAL E AS SUAS TRÊS TESES

O autor começa precisamente com uma referência ao caso com que iniciei estas linhas. Na sua base, apresenta a tese de uma ‘Dependência social do conhecimento’, e assenta-a na tese, mais simples, do ‘Construtivismo social do conhecimento’: estes dependem das respetivas sociedades pois qualquer conhecimento é socialmente construído.

Essa última tese desdobra-se em três. A primeira, e radical, é a de que os factos – estados ou combinações de coisas – são construídos pelos grupos sociais que os consideram, precisamente ao serem pensados ou descritos. Boghossian refere o exemplo, de N. Goodman, de que o isolamento de umas poucas estrelas entre as muitas no firmamento, para com elas se desenhar uma certa constelação, é uma opção social contingente.

Por maioria de razão, se os factos são socialmente construídos, então também o é aquilo que conta como evidência deles – tese do ‘Construtivismo da justificação’. Um exemplo é a resposta do cardeal Belarmino ao convite de Galileu para que observasse os astros através da luneta, o que o inquisidor recusou pois, como fonte de conhecimento, só reconhecia as ‘Escrituras’.

Enfim, uma variante dessa segunda tese é a tese de que, para acreditarmos em algo – i.e. para nos comprometermos com uma ideia –, além de eventuais evidências somos sempre condicionados pelo contexto sociocultural. Pois: se esta terceira tese é verdadeira, então a de uma justificação racional, contra o construtivismo da justificação, é falsa; logo (pela forma lógica da contraposição), se for antes verdade que as justificações são racionais, então é falso que o processo de crença seja socialmente construído.

A análise e refutação dos argumentos a favor de cada uma dessas teses estrutura o resto do livro: os capítulos 3 e 4, contra o construtivismo radical dos factos. Os capítulos 5, 6 e 7, contra o derivado construtivismo da justificação. E o último capítulo, contra o construtivismo social da explicação pela qual nos comprometemos ou acreditamos numa ideia.

Uma nota sobre os requisitos mentais dessa leitura: desde a mencionada contraposição até as adiante referidas redução ao absurdo e generalização, tenho ideia de que em passagem nenhuma do livro se usa alguma forma lógica que não se encontre, pelo menos desde o início deste século, nos programas do 10º ano de escolaridade. Mesmo para quem não tenha essas formas presentes na memória, o requisito cognitivo da leitura da generalidade dessas páginas é apenas o das competências racionais que havemos de ter desenvolvido na adolescência. Resta o requisito da vontade de as implementar.

CONTRA O CONSTRUTIVISMO DOS FACTOS

Para encetar um nosso acompanhamento dessa análise e avaliação daquelas três teses construtivistas, voltemos ao caso do conhecimento de constelações. Depois de ressalvar a distinção entre a tese da ‘Dependência dos factos em relação às descrições’ e a tese, num construtivismo mais fraco (e mais defensável), da ‘Relatividade social das descrições’ de quaisquer eventuais factos, o nosso autor analisa em duas etapas o argumento de Nelson Goodman a favor daquela tese mais forte. A primeira, numa redução ao absurdo, a segunda, numa generalização.

Primeiro: se as constelações (como factos) existem antes de serem pensadas e descritas, então quaisquer (praticamente infinitas) possíveis configurações de estrelas são constelações. Mas, no seio dos factos relativos aos grupos de estrelas que compõem constelações, isto é absurdo. Logo, pelo menos em relação a esses factos, é falso que as constelações existam antes das respetivas descrições.

Em seguida: delimitar cada estrela – as que compõem alguma constelação ou outras – em vez de por exemplo delimitar como unidade a considerar cada sistema como o Solar, ou as galáxias inteiras etc. – é uma escolha conforme os interesses práticos dos sujeitos dessa delimitação. Noutra passagem, encontramos o exemplo equivalente de R. Rorty da delimitação que constitui uma girafa, porque isso serve os interesses de caçadores; já dos pontos de vista de uma formiga ou de um astronauta, não haverá ali lugar a qualquer girafa. O mesmo valerá para todos os objetos.

Logo, os factos dependem das respetivas descrições.

A principal objeção que Boghossian introduz a esse argumento é que neste se assume que os conceitos são como, a comparação é do autor, formas corta-massas (para moldar biscoitos): independentes daquilo a que se aplicam, moldam os objetos à imagem deles. Ou seja, usamos o molde de célula, e formamos cognitivamente órgãos e até organismos; mas, para formar células, usamos o molde de molécula; e para esta, usamos o molde de átomo… enfim, usamos o Modelo Padrão das Partículas Elementares. Mas, pergunta-nos este filósofo (ed. ing. p. 35, ed. esp. p. 60), em algum momento não terá de haver uma determinação da própria ‘massa’, que oriente o modo como é cortada e, afinal, o desenho dos ‘moldes’ em função de tal determinação?

A decisão nessa passagem fica expressamente à nossa conta, leitores. Assim como a bola fica do nosso lado nos juízos sobre a correta formulação das teses mencionadas, e sobre o valor dos argumentos a seu favor e da contra-argumentação do autor. É neste ping-pong entre ele e nós que prossegue a leitura, tanto da análise e avaliação dessa primeira tese construtivista como depois das duas teses derivadas.

Antes de partirmos para o seu acompanhamento crítico, deixarei apenas uma notazinha de rodapé a respeito das aberturas pragmáticas que vim fazendo nesta coluna: no seu ataque ao construtivismo, Paul Boghossian não visa os discursos pós-modernos que talvez fossem de esperar – Lyotard, Foucault… – mas sim eminentemente teses pragmáticas como as de Goodman (cap. 3) ou de Rorty (cap. 4).

É certo que estes autores não esgotam o multifacetado horizonte do pragmatismo (logo o próprio Peirce, no início do século passado, o fragmentou cunhando ao lado o termo ‘pragmaticismo’). Mas isto não é o mais relevante. Importa é que é pelas diferenças, até pelo confronto que evoluímos. Pela mera confirmação, restamos em círculos. Em particular para leitores de inclinação pragmática, pois, esta leitura é especialmente enriquecedora. Para um simples verão, não estará nada mal.

 

01ago23

 

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