Maria Manuela Aguiar
Maria Lamas tem um lugar ímpar na história portuguesa do jornalismo e das Letras, do movimento feminista, e da luta contra a violência durante uma longa ditadura. Foi uma corajosa protagonista em todos estes domínios, num tempo particularmente ingrato, que, sobretudo por ser mulher, a obrigou a vencer obstáculos maiores, preconceitos misóginos e perseguições da polícia política.
É e será um paradigma intemporal de cidadania vivida, audaciosamente, com a visão clara do futuro e a crença na força criativa e subversiva das mulheres para derrubar os velhas cânones, a velha Ordem de um mundo injusto.
Nascida ainda no século XIX, estudou no ‘Colégio das Teresianas Jesus, Maria e José’, onde cedo terá despontado o seu sentido religioso de missão, que haveria de se projetar no humanismo laico e fraternalista com que fez caminho, no combate interminável pela justiça, pela igualdade e pela paz.
Casou muito jovem, com um Oficial de Cavalaria. Viveram juntos três anos em Angola, e mais alguns em Torres Novas. Aos 26 anos recorreu ao divórcio – um ato de rebeldia, de afrontamento de costumes da sua época, e foi para Lisboa, decidida a tornar-se jornalista, que era ofício de homens.
Trabalhou, primeiro, em ‘A Capital’, depois no grupo editorial de ‘O Século’, onde dirigiu, durante muitos anos, a revista feminina ‘Modas e Bordados’. A revista era o mais improvável dos instrumentos para promover uma revolução de mentalidades e mobilizar as raparigas, as mulheres para a vivência cidadã e profissional.
Maria Lamas conseguiu-o, usando habilmente a sua coluna, um “correio de leitoras”, como meio de fazer pedagogia e como posto de observação, de tomada de consciência dos problemas e dilemas das portuguesas de todas as idades. A sua obra mais emblemática, ‘As Mulheres do meu País’, terá tido ali, precisamente, a sua origem.
Maria Lamas é uma idealista pragmática, com uma rara capacidade de realizar coisas grandes e pioneiras com recursos parcos e banais. A sua coluna na popular revista feminina teve um enorme impacto, tal como as exposições que, sob o patrocínio de ‘O Século’, organizou, com o objetivo de dar do papel mulher sua contemporânea, em diversas sociedades, domínios e circunstâncias, uma visão dignificante e mobilizadora.
Com isso desmentia, factualmente, a ideologia misógina e opressiva do salazarismo. A última e grandiosa iniciativa neste domínio, com que deu a conhecer obras de mulheres escritoras de todo o mundo, custou-lhe o emprego, a carreira de jornalista e a segurança pessoal.
Daí em diante, seria alvo de repetidos atos persecutórios do regime, destinados a bani-la do espaço público. Era, então, presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), expressão máxima desse associativismo revolucionário, que começara com Adelaide Cabete, quando a República dava os seus primeiros passos.
Um Decreto do Governador Civil de Lisboa extinguiu o CNMP, mas não a silenciou! Durante as décadas que se seguiram, no longo interregno que vai até à formação da segunda vaga do movimento feminista, na década de setenta, ela empunhou, quase sozinha, a bandeira da igualdade de género. Estava já divorciada do segundo marido, o jornalista Alfredo da Cunha Lamas, tinha as filhas a cargo, dependia de si e do seu trabalho, mas não se deixou abater. Lançou-se num solitário e fecundo exercício de jornalismo de investigação, abraçando desafios cada vez maiores.
Munida de uma máquina fotográfica, papel e caneta foi, pelo país adentro, recolher depoimentos e testemunhos de mulheres de todos os misteres e condições, até às aldeias mais remotas e inacessíveis, e deu-lhes voz e visibilidade num retrato coletivo de incomensurável valor humano, literário e científico a que deu o título de ‘As Mulheres do meu País’. Uma obra-prima, que é, também, um grito de revolta contra a submissão política, e exploração económica, a pobreza, o estreitamento de horizontes, num regime que fez das mulheres as vítimas principais.
A partir de abril deste ano, o jornal ‘Público’, com o apoio de organismos governamentais, como a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e a Comissão para as Comemorações do 50.º aniversário do 25 de Abril, iniciou a reedição desta obra monumental, em fascículos semelhantes aos que tinham sido publicados entre 1948 e 1950.
Maria Lamas a cidadã, a militante, não foi menos admirável na sua veste privada. Educou primorosamente as filhas, influenciou e cativou netas e netos, através de cujos testemunhos sobre a ‘Avó Maria’, ficamos a conhecer melhor o seu encanto como pessoa, o seu temperamento afável e bondoso, a constante dedicação aos outros, num círculo que se ia alargando…
Durante os anos de exílio em Paris, tornou-se a “Avó Maria” de um sem número de expatriados, que nela encontravam, invariavelmente, amizade, conselho e apoio. À terra voltou a gozar os seus últimos anos na democracia que ajudou a refundar, como sempre, combativa, carismática e aberta à modernidade.
Ao Estado coube homenageá-la com a Ordem da Liberdade. Aos Portugueses, em cada nova geração, cumpre reler os seus escritos, guardar a memória do exemplo de vida que legou às Mulheres (e aos Homens) do seu País.
fotos: pesquisa web
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