António Pedro Dores
Faz 30 anos que foi fundada a Transparência Internacional (TI). No momento de transição entre as políticas desenvolvimentistas e a era da globalização, os Segundo e Terceiro Mundos, os países socialistas e os países em desenvolvimento, foram chamados por uma única superpotência a industrializarem-se. “Livre circulação de capitais, bens e pessoas!”
O Primeiro Mundo reservou-se para si a sociedade do conhecimento em que as mulheres também puderam estudar e trabalhar, em que os ecologistas se integraram no sistema, as empresas passaram a ser livres de investir em qualquer parte do mundo. Com a queda das barreiras alfandegárias, teoricamente todos os países passariam a negociar directamente a sua industrialização com as grandes empresas multinacionais à procura de menos impostos e salários mais baixos.
Tínhamos acabo de sair da Guerra Fria (1991) e estamos, com a guerra na Ucrânia (2021 – …), a voltar ao ponto de partida.
A corrupção era um tema tabu. Na União Soviética, a mentira organizada na produção estatística, nas fotografias de altas personalidades retocadas para fazer desaparecer sinais dos que caiam em desgraça ou eram mortos, ao nível quotidiano das empresas inspirou a célebre anedota: “Eles fingem que nos pagam e nós fingimos que trabalhamos!” No Ocidente, com a Guerra Fria “o crime organizado começou a ser redefinido; deixou de ser considerado indicativo de problemas na gestão do capitalismo norte-americano e passou a ser visto como uma entidade conspirativa [estrangeira] (…) [uma] ameaça à segurança nacional tanto quanto o comunismo”, escreveu o historiador Michael Woodiwiss (pág. 95).
A ajuda estrangeira ao Terceiro Mundo foi uma das principais vertentes de financiamento dos movimentos de direitos humanos. Um valor de exportação que se considerava cumprido no ocidente. No quadro das ideologias desenvolvimentistas, tratava-se de ensinar aos novos países surgidos da descolonização regras de conduta e instituições civilizadas.
Com a globalização, numa lógica de igualdade formal, houve abertura dos movimentos de direitos humanos para se voltarem para o ocidente, nomeadamente para as violações dos direitos humanos sob a tutela dos estados de países desenvolvidos, como as detectadas e registadas nos relatórios dos comités de prevenção da tortura da ONU e do Conselho da Europa que davam corpo jurídico à extensão dos direitos humanos para o interior das prisões, das esquadras e dos quartéis. Expansão equivalente se verificou no direito das crianças, das mulheres, dos imigrantes, dos povos primeiros. A Transparência Internacional (TI) é um resultado dessa conjuntura, no campo dos direitos económicos e políticos de supervisão dos cidadãos, de facto reservados aos partidos políticos e aos reguladores.
A TI é uma substituição das funções que foram desenhadas no pós-guerra para serem do estado. Ainda hoje há resquícios ideológicos da situação em que os funcionários do estado se contrapunham em superioridade aos operários e à economia privada que regulavam.
As ideologias evoluíram. Os partidos políticos armaram a confusão e estabeleceram novos privilégios. Ao contrário do que alguns previram, as ideologias estão de volta, como o regresso agressivo com a extrema-direita.
As iniciativas dos cidadãos, com menos financiamento e autoridade, ocuparam alguns espaços de regulação. Os reguladores público-privados acolhem lobbies. São incentivados para serem opacos, escamoteando estarem reféns dos financiadores. Os resultados saltam por todo o lado, na habitação, na educação, na saúde, na TAP, na CP ou nas minas.
A ITT funcionou como braço privado das políticas de Washington no Chile, na preparação do golpe anti-democrático que pôs no poder o ditador Pinochet em 1973. Woodiwiss (op.cit: 177-179) lembra como a agência anticorrupção da ONU (United Nations Centre for Transnational Corporations UNCTC) condenou a intervenção da empresa por funcionar fora do âmbito dos seus estatutos legais. Tal denúncia custou à agência da ONU a suspensão de contribuições por parte do maior contribuinte, os EUA. O que acabou por resultar no fecho da agência, em 1992.
Os estudos levados a cabo pela UNCTC sobre as multinacionais do crime acabaram. A era da globalização em que se entrava à época pressuponha que eram as empresas multinacionais quem melhor poderia assegurar a continuação do crescimento económico.
Segundo o mesmo historiador (op.cit: 181-196), os estudos da ONU de regulação das práticas empresariais mais avançadas e internacionais, as mais susceptíveis de escaparem às intenções dos legisladores, como é função tradicional das empresas, foram substituídos pela guerra contra as drogas. O crime organizado internacional foi sectorizado nas mafias italianas e depois nas suas congéneres sul-americanas e asiáticas, com resultados reconhecidamente nefastos para a saúde pública, mas até hoje politicamente irreformáveis.
A UNCTC foi substituída pela UNTOC (United Nations Convention against Transnational Organized Crime) para que instituísse um gabinete de combate ao tráfico de drogas. “As Nações Unidas preferiram não explicar essa importante diferença em relação ao pensamento anterior sobre o tema, que considerava o problema do crime organizado em termos de actividade e não de grupos distintos de pessoas, e enfatizava a necessidade de coibir as actividades das corporações internacionais” em vez as da arraia-miúda Woodiwiss (op.cit. 207).
Foi como funcionário que primeiro me deparei com a corrupção e com a indiferença das instituições e dos políticos a esse respeito, em Portugal. Recordo as insistências do Presidente Jorge Sampaio, sem consequências, na necessidade de reformar o financiamento dos partidos e o sistema de justiça. Assisti na primeira fila à promoção de quem canalizava a corrupção dentro de organizações do sector público e privado, destruindo a legitimidade de comando de toda a organização. Junto dos meios sindicais a que me dirigi, a denúncia suscitou receio, como quem é confrontado com uma conspiração. Foi como activista das prisões que entendi que a corrupção literalmente mata.
A agilização de procedimentos que há quem entenda ser consequência positiva da corrupção, nomeadamente tendo em vista o crescimento económico, não é apenas ou sequer principalmente uma questão económica, como pode parecer aos activistas contra a corrupção mais tecnocráticos – uma saudação, companheiros! Com a financiarização das economias globais e com a destruição dos modos tradicionais de sobrevivência das populações excluídas dos consumos modernos, a corrupção é uma questão de vida e morte para milhões de pessoas sem acesso prático aos direitos de cidadania.
Tendo acompanhado activistas de direitos humanos e contra a corrupção sei da quantidade e qualidade de cidadãos informados e pró-activos ocupados a procurar manter financiamentos que permitem o funcionamento das NGO. Isso reduz a mobilização a especialistas e funcionários, e esgota as energias dos mais empenhados. Como activista da TI testemunhei a sua impotência em criar, como havia quem quisesse, um movimento social anti-corrupção com escala para fazer aquilo que de outro modo não se tem conseguido fazer.
Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc. e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
01ago23