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Sobre Marchas e Hinos antes e depois de Abril 74

José Manuel Tavares Rebelo

 

(com uma reflexão “politicamente incorrecta”

e um poema de esperança)

 

O Hino Internacional Comunista

Em certa ocasião, ao tempo da ditadura, na década de 60, festejávamos em Coimbra o aniversário natalício dum colega da casa que todos sabíamos ser militante do PCP. Então foi resolvido cantar o “Parabéns a você” não com a música tradicional, mas inserindo a letra no hino da Internacional Comunista (IC). Encaixava perfeitamente e resultou muito bem. De facto a música deste hino é duma grande beleza.

Mais à frente irei referir-me a um outro hino, mas de carácter colonialista, mas, antes disso, eu próprio me questiono e convido quem me lê a fazer o mesmo, para o seguinte raciocínio: o que leva um compositor a criar uma música (ou um poeta a escrever um poema)? É óbvio que as motivações que levam os autores a comporem a “Internacional” ou a marcha “Angola é Nossa” são diametralmente opostas, estão em completa oposição ideológica. Quando alguém compõe uma música fá-lo com determinada intenção que, com o passar do tempo, pode ser alterada. No caso da IC não parece ter havido essa alteração de intenções.

a portugueza

“A Portuguesa”

Hino Nacional

Tomemos agora como exemplo emblemático o caso de “A Portuguesa”, o hino nacional português. Foi concebido por Alfredo Keil, no contexto de indignação e revolta nacionais contra a Inglaterra, na sequência do ultimato que nos fez (1893) quando ocupámos territórios entre Angola e Moçambique (Mapa Cor de Rosa). A “velha aliada”, que depressa se transformou em “pérfida Albion”, em vez de encetar negociações, enviou-nos um humilhante ultimato, do alto do seu poderio militar. Assim, o nosso Hino Nacional, começou por ser uma marcha guerreira contra os ingleses (o verso “contra os canhões, marchar, marchar”, inicialmente era “contra os saxões…”).

De marcha guerreira contra os ingleses, aquando do Ultimatum de 1893, passou a hino nacional. Conquanto seja um dos mais belos hinos do mundo, conserva uma letra belicista completamente desadequada aos tempos actuais e que até tem sido alvo de contestação. A meu ver, essa letra deve ser conservada como um símbolo nacional adaptado, por cidadãos conscientes, ao século XXI. Explico melhor: por exemplo, nos versos “Levantai, hoje, de novo, o esplendor de Portugal”, nós, portugueses, devemos adaptar esta frase para um objectivo social cívico e solidário: “Levantai, hoje, de novo, o estandarte para uma sociedade justa, fraterna e solidária”. É este esplendor de Portugal que é preciso levantar!

angola e nossa

“Angola é Nossa”

Marcha Militar

A máquina de propaganda do Estado Novo disseminou por diversas formas o mito de que as colónias eram uma continuação de Portugal ou até mesmo que eram Portugal. Uma dessas formas de propaganda foi feita através da música. Era necessário alimentar esse mito a favor da política colonial do regime, assim como da guerra que este manteve, entre 1961 e 1974.
Li no blogue “A Matéria do Tempo”, um texto não assinado sobre “A Guerra Colonial na Música Portuguesa”, do qual cito seguinte excerto: “o exemplo mais paradigmático da música que então se fez a favor da guerra foi, sem qualquer sombra de dúvida, o hino “Angola é Nossa”, de Duarte Pestana (música) e Santos Braga (letra). Trata-se de um hino guerreiro por excelência, dotado de uma força e de um ímpeto tais, que mesmo nos dias de hoje ele consegue provocar arrepios a quem o ouve.

O crescendo inicial das vozes, o enorme belicismo contido nas palavras, o compasso acelerado da marcha e o triunfalismo da música em tom maior dão uma impressão de avanço imparavelmente vitorioso a quem escuta. Este é um hino guerreiro perfeito. Nem os nazis conseguiriam fazer melhor.”(http://amateriadotempo.blogspot/)

Analisando esta marcha,  exclusivamente sob o ponto de vista estético-musical, poderei afirmar que dela transparece beleza, sendo esta afirmação baseada na autonomia da arte, desligando-a de quaisquer razões pedagógicas ou morais. É um conceito denominado “arte pela arte” que privilegia apenas a estética, despindo-a de quaisquer outros valores. Conceito eventualmente arriscado, por poder manipular e popularizar ideias socialmente injustas, revestidas de beleza, em regimes políticos totalitários, sejam eles de esquerda ou de direita, sobretudo em populações incultas.

Capela do Rato
Capela do Rato

A Vigília da Capela do Rato (1972)

Como se sabe, durante o Estado Novo, houve portugueses que lutaram, resistiram, foram presos ou torturados porque queriam um país livre, um estado social justo e democrático. E, falando de colonialismo, recordo o episódio da Capela do Rato (1972), em que um grupo de católicos, influenciados pelo Papa Paulo VI, que instituíra o 1º de Janeiro como Dia Mundial da Paz, decidiram fazer uma vigília de reflexão e oração contra a guerra colonial.

Só que a vigília foi interrompida por agentes da Pide que entraram no templo e prenderam mais de uma dezena de pessoas, que levaram para Caxias. A brigada da Pide, comandada pelo capitão Maltês, proibiu a celebração de missas no dia seguinte, naquela igreja. Só que, logo de manhã, dois padres contestatários desobedeceram à ordem e celebraram missa.

Este episódio é relatado pela historiadora Helena Matos no programa da RDP Antena 1, “Sons de Abril”, transmitido de 2ª a 6ª,  às 07h45, transmissão iniciada em 2 de Janeiro de 2014. E Helena Matos conta que a Pide levou os dois sacerdotes presos para a sua sede, ao Chiado. Só que, nessa mesma tarde, o Cardeal Patriarca D. António Ribeiro, “invadiu” o edifício daquela polícia, informando que de lá não se retiraria sem ser acompanhado pelos dois padres presos, que logo foram libertados.

Uma reflexão “politicamente incorrecta”

A ideologia subjacente ao notável hino guerreiro, reflecte uma mentalidade colonial, menosprezadora do legítimo direito à independência de populações donas do seu próprio país, independentemente da cor da pele ou da origem étnica. Muitos portugueses esperavam que Marcelo Caetano desencadeasse negociações com os líderes da guerrilha, tendentes à progressiva autonomia política dos povos colonizados e pondo fim a uma guerra que suscitava cada vez maior oposição, quer dos sectores democráticos, quer das famílias que viam os seus filhos partir, quer ainda do próprio Papa Paulo VI, que recebeu em audiência os líderes dos movimentos de libertação, afrontando assim o regime, que tentou abafar a notícia.

Marcelo Caetano recusou-se a encetar negociações, tornando-se deste modo um dos responsáveis pelo prosseguimento duma guerra que poderia ter cessado, com vantagens para todas as partes envolvidas, nomeadamente para os portugueses que ali viviam e trabalhavam, milhares deles não conhecendo outra pátria, há várias gerações.

Na sequência do erro de Marcelo, deu-se, após a revolução de 74, a chamada “descolonização exemplar”, que de exemplar não teve nada, antes pelo contrário. De facto, a descolonização foi feita à pressa, sem dignidade, sem o devido recurso a instâncias internacionais, como quem descalça uma bota que magoa e não respeitando nem defendendo as centenas de milhares de portugueses que podiam ter continuado a contribuir para o progresso dos novos países independentes. A descolonização portuguesa, vista à distância de 40 anos, foi objectivamente racista.

E, a esta distância temporal, penso que já se pode concluir, sob um ponto de vista histórico imparcial, que os dois grandes responsáveis por uma descolonização trapalhona e indigna, causadora de guerras antes e depois do 25 de Abril, foram Marcelo Caetano e Mário Soares.

hino mfa

O Hino do MFA

E chegamos à marcha militar que antecedia os comunicados do MFA. Uma música alegre e portadora de energia e que tinha a vantagem de ser de curta duração, ideal para iniciar ou terminar os sucessivos comunicados difundidos após a revolução democrática do 25 de Abril. Curiosamente, é uma marcha militar inglesa intitulada “A Life On The Ocean Wave”, também muito tocada nas Forças Armadas Americanas. Ficou conhecida como o Hino do MFA. O seu autor foi o pianista inglês Henry Russel (1812-1900). É também uma melodia muito bela, de fácil memorização. Depressa foi associada à palavra libertação.

uniao europeia bandeira

O Hino à Alegria

Hino da Europa

O Hino à Alegria é o nome do poema cantado no quarto andamento da 9.ª Sinfonia de Beethoven. Foi adoptado como Hino da Europa. Quando, mais abaixo, transcrever parte da letra, veremos como a União Europeia o transformou num acessório decorativo e num insulto à memória dos seus autores. Beethoven compôs esta peça musical magistral em 1823 para um emocionante poema escrito por Schiller. Neste poema, Friedrich von Schiller expressa uma visão idealista da humanidade, afirmando-a como uma verdadeira fraternidade de seres vivos.

Homens e mulheres, velhos, jovens e crianças constituem uma invicta Aliança neste nosso mundo.

Ora reparem:

…apenas uma alma,

possa chamar  sua  a Terra.

Mas quem nunca o tenha podido

Livre de seu pranto esta Aliança!

Alegria bebem todos os seres

No seio da Natureza:

Todos os bons, todos os maus,

Seguem seu rasto de rosas.

Ela nos dá beijos e as vinhas;

A volúpia foi concedida ao verme

E o Querubim está diante de Deus!

Alegres, como voam seus sóis

Através da esplêndida abóboda celeste

Sigam irmãos sua rota

Gozosos como o herói para a vitória.

Abracem-se milhões de seres!

Enviem este beijo para todo o mundo!

Irmãos! Sobre a abóboda estrelada

Deve morar o Pai Amado.

Hoje, mais do que nunca, os europeus deviam estar atentos à letra e ao espírito do seu Hino, escutando esta mensagem de alegria e esperança, um canto de quem espera um novo dia, um novo sol em que voltarão a ser irmãos.

“O país está melhor!

Os portugueses estão pior!”

(Citação dum membro do actual Governo)

Também a Guiné Equatorial está a abarrotar de riqueza e de petro-dólares.

Mas o seu povo está na mais extrema miséria…

Será a Guiné Equatorial o modelo de país para o governo de PPC?

Há que manter a esperança. Há que lutar sempre por um novo sol, tendo a certeza que um novo dia chegará.

Por isso termino esta crónica com a mensagem dum poeta do Porto, lutador da liberdade, resistente anti fascista e que nos fala de Esperança com um poema belo e tão actual:

egito gonçalves

MELOPEIA PARA UM FUTURO TALVEZ SIM

Um dia destes abrir-se-ão as portas

e entraremos todos na cidade

um dia destes teremos um domingo

e haverá água límpida e potável

 

Um dia destes contaremos contos

de terrores antigos de perseguições

e poremos os verbos no passado

felizes de escaparmos ao massacre

 

Um dia destes o silêncio quebrará

para sair uma canção de amor

um dia destes a noite abrir-se-á

e tu serás o rosto descoberto

 

Um dia destes poremos no zoológico

os últimos hipopótamos da cidade

e cortaremos o resto dos tentáculos

que nos mantêm à mercê do grande polvo

 

Um dia destes as palavras serão públicas

e não escreverão penas de morte

não servirão para mentir atraiçoar

para ferir os amigos ou matá-los

 

Um dia destes construiremos um museu

com os retratos do medo e da tortura

do diabo do crime da miséria

na galeria dos antepassados

 

Um dia destes teremos tempo de juntar

os bocados de nós próprios e colá-los

um dia destes não seremos obrigados

a sempre recusar de mão fechada

 

Um dia destes tu serás tangível

e os meus dedos poderão desapertar-te

um dia destes os quatro cavaleiros

estarão na cadeia sem cavalos

 

Um dia destes não será com juras

clandestinas que a esperança se fará

um dia destes a fome não poderá

comprar de novo lâminas de barba

 

Um dia destes abrir-se-ão as portas

e dançaremos nas ruas da cidade

um dia destes beberemos todos

a cerveja da alegria e amizade

 

Um dia destes secarão as lágrimas

e teremos cartas vindas da Europa

um dia destes a vida será fértil

e o dia seguinte estará sempre aberto

 

Meus amigos meu amor

um dia destes…

 

Egito Gonçalves, Sonhar a Terra Livre e Insubmissa, 1973

 

Fotos: Pesquisa Google

 

01abr14

 

Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

1 Comment

  1. Rafael Duarte (Gondomar)

    Desde que leio este jornal, este grande jornal por corajoso que é no tratamento jornalístico que dá aos factos reais do dia-a-dia, que nutro pelo sr. Dr. grande admiração. Uma vez mais, faz um artigo de EXCELÊNCIA facto que o releva e releva também este nosso “Etc e Tal”, aproveitando, a ocasião, para dar também os meus parabéns ao diretor José Gonçalves.

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