A tradição das Festas do Mar ao longo do litoral norte povoado por comunidades piscatórias, já vem de muito longe como expressão da espiritualidade que ao longo dos tempos, de dura luta com o mar, marcou homens e mulheres, cuja sobrevivência das famílias, dependia da pesca e de frágeis embarcações, como algumas das mais típicas que ainda se podem observar na arte xávega das praias de, Espinho, Esmoriz, Cortegaça, Furadouro e Torrão do Lameiro ou ainda, mais a sul na, Torreira, Vagueira ou Mira. Algumas das quais as companhas adotavam o nome dos santos da sua devoção.
Ainda que a evolução das comunidades de pescadores seja diferente ao longo do litoral na sua relação com a antiga arte de pesca costeira, reconhecidamente há muito em decadência e abandono. Continuam a ser essencialmente estas comunidades piscatórias de antigos homens do mar e mulheres peixeiras (varinas), bem como de jovens cada vez mais afastados da realidade da faina da pesca, que ainda animam e dão alma às várias Festas do Mar que no litoral vareiro se transformam em autênticas ondas humanas gigantes.
Assim acontece no caso do concelho de Ovar em que invadem, não as praias com cada vez mais muralhas de pedras em vez de areia, mas as respetivas malhas urbanas, também influenciadas por muita pressão do betão, ao longo de ruas e marginais de Esmoriz, Cortegaça e Furadouro, tal como em concelhos vizinhos, a exemplo de Espinho ou Murtosa/Torreira com outras grandiosas Festas como o S. Paio da Torreira, que marcam a agenda das comunidades piscatórias da região, dos emigrantes, dos turistas e das gentes de várias regiões do país do litoral e interior, para partilharem momentos de grande religiosidade assumida pelas várias gerações de familiares dos pescadores em torno dos seus santos padroeiros.
Em Ovar, as Festas do Mar com toda a sua componente religiosa e profana, começam tradicionalmente de norte para sul com o arranque em Esmoriz no último fim-de-semana de Agosto (29 a 1 setembro) em honra do Sr. dos Aflitos e Srª da Boa Viagem. Neste mesmo fim-de-semana, a população do Torrão do Lameiro (Ovar) “encravada” entre o mar e a ria, também dedica a Nª Srª da Boa Viagem uma simpática e humilde romaria.
Já no fim-de-semana seguinte a onda festiva faz lotar a pequena zona urbana da praia da freguesia de Cortegaça em que a devoção à Nª Srª da Nazaré (5 a 8 setembro) é verdadeiramente impressionante, traduzida em mensagens de fé num pedaço de terra cada vez mais dentro do mar. Ainda perante várias outras grandes festas com maresia do mar a prolongarem-se pelo mês de setembro, em que se deseja que mantenha um clima agradável para compensar os veraneantes de um verão demasiado instável. O cartaz turístico promovido pelas Festas do Mar, no caso de Ovar termina habitualmente como o culminar da gigantesca mole humana que foi crescendo de praia em praia até ao Sr. e Srª da Piedade na praia do Furadouro que este ano tem o seu ponto alto no domingo, dia 14 setembro.
Na componente profana os programas destas Festas do Mar em Esmoriz, Cortegaça e Furadouro, a sua atratividade musical, para além das verdadeiras feiras em que se vende de tudo e dos sempre presentes carroceis que divertem pequenos e graúdos, depende naturalmente das disponibilidades financeiras das comissões de festas que organizam fundamentalmente esta vertente dos festejos, apesar dos apoios disponibilizados pelos orçamentos autárquicos, que incluem ainda a parte religiosa e o património cultural que representam tais festejos, quando no caso de Cortegaça, a festa em honra da Nª Srª da Nazaré já se realiza há 137 anos. A primeira festividade foi realizada em 1877 e a partir daí nunca mais foi interrompida.
Com várias interrupções ao longo de mais de um século os festejos em honra do Sr. e Srª da Piedade surgem como noticia, tanto na vertente religiosa como profana que se enraizava, em 1899 no jornal local “A Discussão”. Este ano, tais eventos festivos estão perante uma espécie de teste sobre a sua capacidade mobilizadora e de atração de forasteiros às praias, já que os seus programas musicais mantêm a linha tradicional que carateriza as festas e romarias, bem ao contrário da aposta das autarquias (Câmara e freguesias) que apostaram na inovação da “Animação de Praias” com um investimento global de cerca de duzentos mil euros, com particular impacto em Esmoriz e Furadouro.
Nas várias Festas do Mar do litoral vareiro (ou ovarense), o seu ponto alto é indiscutivelmente cada um dos domingos destes fins-de-semana que arrastam multidões para assistirem às imponentes procissões com Bênção do Mar, em que se destacam os andores com as imagens religiosas dos Santos da devoção de cada uma das comunidades piscatórias que assim mantêm estas tradições seculares como a componente mais fiel da homenagem à religiosidade dos pescadores e aos dramas enfrentados no mar, com naufrágios que no Furadouro, ainda em maio de 2013 tiraram a vida a dois pescadores, já que, como deixou escrito o historiador Zagalo dos Santos. “Povo de gente do mar, cuja vida se joga todos os dias e se perde mais rapidamente que um credo (…) O mar, também em troca do pão que assegura a quem penosamente lhe rasga as entranhas, é, em grande parte, o responsável pelo sombrio da nossa alma, sempre inquieta, a interrogar o dia até amanhã”.
Nos dias de hoje e após a mais violenta erosão da costa resultante de um prolongado inverno rigoroso, que exigiu muita imaginação aos autarcas para dotarem as praias com o mínimo de condições de acessibilidades. O que mais descarateriza o emblemático cenário que durante mais de um século marcou as tradicionais Festas do Mar com passagem das procissões pela areia das praias com barcos engalanados e embarcações no mar a agradecerem a Bênção. É a drástica redução do areal perante acentuada redução da linha de costa, que no caso de Esmoriz já à muito transformou a paisagem e em Cortegaça amputou literalmente a zona frontal. Só mesmo o Furadouro ainda vinha tendo o privilégio de proporcionar o impressionante cenário, em que a procissão percorria o areal por entre os veraneantes que ainda aproveitam os últimos dias de praia e uma multidão que se concentra em toda a Marginal para assistir à cerimónia de Bênção do Mar.
Tal como vêm acontecendo já há muitos anos em Cortegaça ao Furadouro resta igualmente uma entrada cada vez mais simbólica no areal para cumprir a tradição, uma vez que a nova realidade da praia limita muito a passagem da procissão pela estreita língua de areia agora suportada por uma muralha de pedra que “separa” o mar da Marginal e em que se encontram as áreas concessionadas.
Relação fundamental com o mar
É verdade que o estado atual da orla costeira do concelho de Ovar está acelerar de forma evidente o fim do pouco que resta da arte xávega. Este ano, no Furadouro, só tem ido ao mar o barco “Jovem”, enquanto o “Srª da Graça” e o “Deus Te Salve” permanecem nas dunas ao norte, deixando antever um triste fim destas companhas que marcaram a faina da pesca nos últimos anos nesta praia. Uma evolução socioeconómica que há muito se tem vindo acentuar com o desaparecimento de companhas e particularmente de pescadores nesta arte da xávega que noutros tempos foi decisiva no próprio desenvolvimento dos povoados junto ao mar não só na orla costeira de Ovar, uma vez que, a pesca, tanto a marítima como a da Ria (e outrora o sal), prenderam a esta terra habitantes, que se estenderam ao longo da faixa costeira, dando origem a novos povoados pelo litoral português em que tantas outras Festas do Mar se realizam.
Mas apesar desta descaraterização social, as raízes e as afinidades das sucessivas gerações de familiares das comunidades piscatórias só por si fortalecem laços de uma profunda relação com o mar e naturalmente com a defesa e manutenção de tradições como as Festas do Mar. Porque, como escreveu Zagalo dos Santos, ao falar dos ovarenses, “O Povo de Ovar tem duas aptidões mestras, duas paixões absorventes: a pesca e o comércio. A agricultura, pela magreza do chão (…) é o triste remédio para o feijão e o milho e um ou outro mimo que, a custa de mil cuidados, consegue vingar para regalo da sua mesa. Foi o mar, apesar de tudo, que engrandeceu esta terra, e depois dele a Ria, onde fizemos durante séculos a barcagem de milhões de passageiros e de toneladas de mercadorias (…) do cais da nossa Ribeira ao de Carvoeiro na margem esquerda do Douro e a Vila Nova de Gaia”.
A deprimente situação da faina da pesca, como a que se vive no Furadouro, ainda que deixe refletir a maior decadência e quase extinção deste setor. O seu decisivo e indispensável papel na afirmação (mesmo industrial) do Furadouro, ficou bem assinalado ao longo dos séculos. Como se pode ler num texto de Sofia Vechina “O Mar e a Religião no Concelho de Ovar”, em 1501 a pesca da sardinha já era uma realidade e em 1801 Cortegaça, Espinho e Ovar são apontados, na Comarca da Feira, como os três “centros, fortes, de pesca ao longo da orla marítima”, diz a autora, “evidenciando-se, novamente, a pesca da sardinha” que à muito escapa às poucas redes da pesca costeira, que ainda resistem na arte xávega ao domínio dos barcos arrastões e que ao largo da costa se tornaram à décadas predominantes neste pescado.
Vida de pescadores segundo Paulo Rocha
As gentes humildes do Furadouro residentes nos anos sessenta em habitações abarracadas, condições degradantes em que viviam a generalidade das famílias de pescadores. Foram inspiração e figurantes de uma realidade por si vivida no dia-a-dia, eternizada no filme “Mudar de Vida” de Paulo Rocha (1966).
O filme que reconheceu a verdadeira dimensão social desta povoação e a sua ligação umbilical ao mar. Retrata as angústias de um pescador (Adelino, personagem interpretada pelo ator Geraldo Del Rey) que regressado da Guerra Colonial, descobre a transformação a que, ele próprio, as pessoas e o lugar que deixara, estiveram sujeitos. A sua ex-namorada (Júlia, interpretada por Maria Barroso) casara-se com o seu irmão e o sítio onde vivia (Furadouro) naquela época como nos tempos que correm com as devidas diferenças dos bens mais em risco já não serem os frágeis barracos em que viviam, estava indesejavelmente ameaçada pelo mar.
O filme “Mudar de Vida” na sua clara associação entre a ficção e o real, retrata a miséria da população piscatória, as precárias construções, os preconceitos sociais, o trabalho duro de quem vivia do mar, a perigosa aproximação do mar e consequente destruição dos palheiros, a recolha de areia, as lavadeiras de sardinha e a marcante fase social que faz jus ao título do filme num tempo em que as gentes do mar procuravam mudar de vida, procurando trabalho mais certo nas fábricas. Indissociável neste trabalho cinematográfico de Paulo Rocha são, a religiosidade e os costumes, como, por exemplo, os cânticos, com o propósito de proteção divina, que os homens entoavam em alto mar e que nos dias de hoje, de regresso, não ao mar, mas à condição de reformados ou desempregados de longa duração após uma igualmente dura vida laboral nas fábricas onde procuraram garantir o pão da família nos anos sessenta, setenta e oitenta, algumas das quais já só restam espaços abandonados ou noutros casos, significativamente reduzidos de mão de obra. Situação agravada com todas as medidas de austeridade que fazem aumentar a pobreza, incluindo a envergonhada. Razões para tantas preces partilhadas em silêncio com os seus santos devotos nas Festas do Mar.




Texto e Fotos: José Lopes
(correspondente “Etc e Tal jornal” em Ovar)
01set14
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