Maximina Girão Ribeiro
Este ano completam-se 170 anos do nascimento de um dos mais importantes e multifacetados artistas portugueses – Rafael Bordalo Pinheiro.
Num século particularmente conturbado para Portugal, em que o país ficou marcado por uma série de convulsões político-sociais de onde sobressaem as invasões francesas, a saída da família real para o Brasil, uma multiplicidade de graves epidemias, uma guerra civil entre absolutistas e liberais, a introdução de muitas medidas de “modernização/progresso” a que a maior parte dos “instalados” na sociedade se opuseram, atingiu-se o final do séc. XIX, com um decadentismo acentuado e um pessimismo assinalado, sobretudo pela “Geração de 70” (anos 70 do século XIX). Depois de um humilhante Ultimatum Inglês (1890) e de uma monarquia já em declínio acentuado, a veiculação das ideias republicanas reforçou-se, em Portugal.


É neste contexto finissecular que Bordalo Pinheiro colheu uma matéria abundante para representar caricaturalmente a sociedade e a situação em que se vivia no País assumindo, por isso, uma luta pela defesa dos valores e da dignidade de Portugal, ao expor os pontos fracos e os erros mais comuns com um espírito satírico aguçado roçando, muitas vezes, a piada corrosiva. Apesar de todas as críticas que lhe foram dirigidas, toda a sua intervenção deve ser interpretada como uma causa cívica e patriótica.

As suas caricaturas tornaram-no um homem temido pelo ridículo com que expunha as personagens que tratava. Mas, ao mesmo tempo, era alvo de grande consideração pois, ser representado por ele era uma honra.
O gato Pires, seu fiel companheiro, que simbolizava não só a sua grande paixão por gatos, como o seu alter-ego, esteve presente em muitos dos seus trabalhos. Através deste gato, como alegoria, Bordalo podia ironizar, criticar, parodiar… Umas vezes, o gato era ele próprio (Bordalo), outras vezes, metamorfoseava-o de diferentes personagens, os célebres “figurões”.
Dentro das grandes alegorias presentes nos seus desenhos caricaturais, encontramos a política, representada por uma porca, “a grande porca”, com muitas tetas, onde todos mamam…, as finanças, simbolizada por um cão esfaimado, “o grande cão”, que tudo “tira” ao povo… a “galinha choca”, personificando a economia… a retórica parlamentar representada pela figura de um papagaio… a “grande toupeira” que tudo vai minando é o símbolo da reacção, ou seja, os que estão contra tudo e todos…
Mas, o “Zé Povinho” é o seu ícone mais importante, sobretudo na cerâmica onde é representado fazendo o célebre “manguito”. Esta figura identificativa do povo português aparece como um pobre coitado que todos querem explorar. Personifica um povo de brandos costumes, submisso à albarda que o poder lhe quer impor, mas que faz o manguito como sinal de negação, de fuga sub-reptícia às leis impostas, quase como desobediência ou não aceitação perante a realidade que o vai subjugando.
Na cerâmica, Bordalo colocou toda a sua fantasia, exuberância e exotismo, plasmada quer nos vegetais (couves, nabos…), quer nos animais, desde o macaco, até à singela andorinha, tão portuguesa, que poderá simbolizar a nossa diáspora pelo mundo…, ou nas figuras de movimento (com um sistema de engonço que permite articular a cabeça, o tronco e as pernas), peças que representam políticos e figuras populares da época, como a velha alcoviteira, o polícia, o padre, o sacristão, a Maria Paciência, a ama das Caldas, o peixeiro, o padeiro… e muitas outras, mas todas elas ostentando um certo sentido de crítica social.

A narrativa do quotidiano foi, na realidade o expoente máximo da sua temática, destacando-se nesta a actualidade política.
Uma observação atenta, perspicaz, oportuna e crítica, fazia com que a sua intervenção fosse acutilante como farpas, lançadas sobre um quotidiano que só visto sob um olhar de ironia podia ser “aceite”. Quer enquanto jornalista e fundador de jornais, ou como professor e artista plástico, quer como simples cidadão, Bordalo soube salientar os podres da sociedade, da política e da economia, sempre de uma forma humorística. Apesar de todas as críticas e reacções adversas de que foi alvo, Bordalo costumava dizer:
“Quem tiver olhos, que veja; quem não quiser ver, que durma.”
A obra de Rafael Bordalo Pinheiro continua impiedosamente actual!
Fotos: Pesquisa Google
Obs:Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
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