Ana Costa de Almeida
O tráfico de seres humanos, hediondo mas real ainda em pleno século XXI, foi, pela primeira vez, apreciado e considerado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no caso de Siliadin, na sequência de queixa apresentada, em 17 de Abril de 2001, contra o Estado Francês.
Siliadin, natural e nacional da República do Togo chegou a França em 26 de Janeiro de 1994, com apenas 15 anos de idade e acompanhada de uma parente do seu pai, mulher de origem togolesa e nacionalidade francesa, sendo o acordado trabalhar para esta até que se considerasse reembolsado o valor despendido na viagem, mais se tendo a mesma comprometido a diligenciar no sentido da devida regularização da situação de Siliadin enquanto imigrante no País e da sua colocação numa escola, para poder continuar a estudar.
A realidade revelou-se muito diferente do que havia sido acordado ou dado a crer à menina de 15 anos de idade. Foi-lhe retirado o passaporte e os seus dias passaram a ser de servidão perante a mulher que a havia levado para França e o respectivo marido.
No segundo semestre de 1994, Siliadin foi “emprestada” pela sua suposta benfeitora a um outro casal, com três filhos, dois dos quais menores, para que ajudasse a mãe, grávida de um quarto filho, no serviço doméstico. A menina togolesa passou a viver com este segundo casal, que, após o nascimento do quarto filho, a decidiu manter como sua empregada, incumbida de todo o serviço doméstico.
Siliadin dormia num colchão colocado no chão do quarto do bebé e trabalhava todos os dias da semana desde as 7h30 até às 22h30, sem folgas, apenas lhe sendo admitido, ocasional e excepcionalmente, sair ao domingo para ir à missa.
Os dias da vida da menina adolescente esgotavam-se servindo a família a que tinha sido “emprestada” e que haviam decidido, com a anuência de pessoa próxima do seu pai, fazê-la e mantê-la sua empregada. Preparava o pequeno-almoço e demais refeições; vestia os filhos do casal e levava-os à escola ou às actividades recreativas; tomava conta do bebé, bem como, a partir do final da tarde, dos demais filhos do casal; realizava todo o serviço doméstico e, por acréscimo, limpava um estúdio sito no mesmo edifício que o “seu senhor” havia transformado em escritório.
Siliadin servia a família que apenas a isso mesmo tinha reduzido os seus dias, sem que qualquer remuneração o casal lhe pagasse e, desprovida do próprio passaporte, continuando a ser-lhe vedadas a regularização da sua situação de imigrante em França e a possibilidade de continuar a estudar.
A adolescente togolesa conseguiu fugir em Dezembro de 1995 com a ajuda de um cidadão haitiano, que a acolheu durante cerca de meio ano, proporcionando-lhe acomodação condigna, alimentação e pagando-lhe 2.500 FRF por mês para tomar conta de duas crianças.
Sucede que, na sequência de contacto tido entre o casal de que tinha fugido e o próprio tio paterno de Siliadin, esta, em obediência ao seu tio, teve que regressar para casa e ao serviço daqueles. Voltou a ter que servir o casal, de igual forma e sem qualquer pagamento, levando a cabo todo o serviço doméstico e tomando conta dos respectivos filhos. A sua situação de imigrante persistiu por regularizar e continuou impedida de poder estudar. Assim viveu Siliadin até finais de Julho de 1998.
Foi com a ajuda de um vizinho do casal que a situação de Siliadin chegou ao conhecimento do Comité Contra a Escravidão Moderna (Comité contre l’esclavage moderne), que, por sua vez, a denunciou junto das Autoridades Judiciárias Francesas.
O caso chegaria ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que, em Acórdão de 26 de Julho de 2005 (Acórdão final de 26 de Outubro de 2005) se pronunciou, entre o mais, sobre se se estaria, de facto, perante uma situação de trabalho forçado ou a que a queixosa estivesse verdadeiramente obrigada.
Não olvidando a especial vulnerabilidade da vítima aquando dos factos, nem o que sejam limitação e controlo físicos e/ou psicológicos, o Tribunal Europeu fez, desde logo, notar que assume relevância tanto o trabalho exercido sob concreta e real ameaça de um castigo, como aquele que seja desempenhado contra vontade, ou seja, como mais esclareceu e reforçou, aquele para o qual um indivíduo não se tenha oferecido ou disposto voluntariamente.
Considerou-se em Estrasburgo que, apesar de não ter ficado demonstrado que Siliadin tivesse sido alvo de ameaças directas de um castigo ou mal, era e é certo que estava em idêntica situação, em termos de percepção e receio próprios, atentas as circunstâncias do caso e, para mais, estando em causa pessoa especialmente vulnerável.
Sendo evidente, como expresso no Acórdão de 26 de Julho de 2005 da Segunda Secção (então, presidida por juiz português) do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que Siliadin não teve escolha ou opção sobre a situação que vivenciou, foi ainda ponderado em Estrasburgo se a adolescente tinha sido mantida em estado e condição de escravidão ou de servidão.
Pese embora se tenha considerado que esteve claramente privada da sua autonomia pessoal, não resultou demonstrado perante o Tribunal Europeu que Siliadin tenha sido reduzida a um estatuto ou condição de “objecto”, sobre o qual o casal exercesse um genuíno direito legal de propriedade, pelo que não se estava perante escravidão na respectiva noção “clássica” e a que já se aludia na Convenção relativa à Escravatura, adoptada em Genebra a 25 de Setembro de 1926 e com entrada em vigor na ordem jurídica internacional em 9 de Março de 1927.
A servidão, ligada na sua acepção àquela noção de escravidão, representa uma forma particularmente séria de recusa ou coarctação da liberdade, incluindo, por acréscimo à prestação de serviços a outrem, a obrigação do “servo” viver na propriedade de outra pessoa e a impossibilidade de alterar essa sua condição. Assim já o havia entendido anteriormente a Comissão Europeia dos Direitos do Homem a respeito do consagrado e acautelado no artigo 4º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e com atenção também para com a Convenção relativa à Escravatura de 1926.
Considerou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que Siliadin foi efectivamente mantida em servidão, em clara violação do expressamente proibido no aludido artigo 4º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, com a agravante de a vítima não ter podido ver, então, punidos os agentes à luz da lei criminal francesa, por ausência de tipificação sequer da escravidão e/ou da servidão como crimes, à revelia do previsto na Convenção Suplementar relativa à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, adoptada em Genebra a 7 de Setembro de 1956 e com entrada em vigor na ordem jurídica internacional em 30 de Abril de 1957.
O que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já em 2005 e com respeito a factos reportados aos anos 90 do século passado ponderava e decidia, ademais na senda do que já vinha sendo entendido pela Comissão Europeia dos Direitos Humanos, mostra-se ainda hoje de relevância maior na apreciação do que possa consubstanciar prática de crimes de inultrapassável maior gravidade como o são a escravidão e o tráfico de seres humanos, tipificados e punidos, respectivamente, pelos artigos 159.º e 160.º do Código Penal Português.
Siliadin foi levada para França por alguém da sua naturalidade e próxima do seu pai e, após lograr fugir, regressou à condição de servidão por obediência ao seu tio paterno, com quem o casal que a mantinha como “serva” estabeleceu contacto. Não estava acorrentada, nem trancada na morada a que se reconduziam os seus dias e noites. Não ficou demonstrado que fosse ameaçada directamente com castigo ou mal para que trabalhasse, como efectivamente trabalhou, para outrem sete dias por semana, quinze horas por dia, sem folgas e sem qualquer remuneração, durante mais de três anos. Não ficou demonstrado que a agredissem fisicamente para que tenha vivido em condições indignas naqueles anos da sua vida, até que resgatada por quem não fechou os olhos ao que percebeu não ser situação normal, aceitável, lícita.
Siliadin sobreviveu mantida em servidão, expressamente proibida, tal como a escravidão, pelo artigo 4.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo imperiosa a sua completa e efectiva abolição, sem que deficitários conhecimento e apreensão do que consubstancie tais realidades antes as possam mais alimentar.
Como já bem se dizia naquele Acórdão de 2005 do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, jamais se poderia ou poderá perder de vista a elevada e crescente exigência na área da protecção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, o que inevitavelmente requer mais atenção e maior firmeza na avaliação de violações dos valores elementares das sociedades democráticas.
Obs: Por vontade da autora, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Foto: Pesquisa Google
01jul17
“Primeiro levaram os negros.
Mas não me importei com isso.
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários.
Mas não me importei com isso.
Eu também não era operário.
Depois prenderam os miseráveis.
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados.
Mas como tenho meu emprego, também não me importei.
Agora estão me levando,
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém,
Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)