Ao fim de quatro décadas de degradação e abandono a que ficou sujeito o Bairro do SAAL em Cortegaça (Ovar) – um projeto social e habitacional que surgiu após o 25 de Abril de 1974, através de um processo estimulado pelas condições político-sociais do período revolucionário, que resultou no entretanto rapidamente extinto, Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL), através do qual os moradores se organizaram com programas de reabilitação das zonas de habitação degradada, com participação e colaboração de arquitetos e urbanistas-, movimentos de moradores assumiram-se com o objetivo de travar a apropriação do solo urbano por parte de grupos de especulação imobiliária….
Deste bairro inacabado e em alguns casos em ruinas, com condições habitacionais desumanas, despertou uma nova geração de moradores, que nasceram, cresceram e ali continuam a viver, assumindo de viva voz, a defesa do seu bairro requalificado. Promessa sempre adiada, que o rigor do inverno veio agravar as já precárias condições de vida das famílias que resistem na esperança de verem concretizado o verdadeiro sonho a uma habitação condigna que lhes foi negado por todas as vicissitudes de um projeto falhado, apesar da originalidade do SAAL que também acabou extinto.
(texto e fotos)
Bem longe de toda a dinâmica e ativismo da época em que os moradores se organizaram para lutarem pelo direito à habitação, a jovem Catarina Daniela, moradora do bairro do SAAL de Cortegaça, em que vive com os pais, cansou-se de conviver com bacias e toalhas para aparar as infiltrações da água da chuva, que ao longo de décadas se entranha nas paredes e placas das casas, e assumiu dar a cara e a voz à indignação de quem se sente abandonado, esquecido pelo sucessivos executivos autárquicos.
A oportunidade foi uma sessão descentralizada da Assembleia Municipal de Ovar, que se realizou no dia 28 de fevereiro em Esmoriz, em que os dramas sociais e habitacionais de quatro décadas, ironicamente ganharam extraordinária relevância e visibilidade na comunicação social, após a sentida intervenção de Catarina Daniela no período do público, fazendo despertar a atenção da opinião pública para uma realidade social nada dignificante na propagandeada terra de emoções, segundo o atual executivo municipal.
Apesar dos aspetos inovadores introduzidos na politica habitacional pelo programa SAAL, a entretanto reconhecida indefinição institucional e as suas vulnerabilidades, acabaria por resultar na integração deste programa na orgânica do Fundo do Fomento de Habitação (FFH), deixando no caso do bairro do SAAL em Cortegaça, apenas o despertar de um sonho que se tornaria um “pesadelo”, tal tem sido o sacrifício de várias gerações das famílias que um dia, quiseram concretizar nesta freguesia junto ao mar de onde algumas tiravam o pão, o direito a uma habitação condigna, tal como muito se “gritou” logo a seguir à revolução dos cravos.
À coragem e exercício de cidadania assumido pela moradora Catarina Daniela, ao dirigir-se aos deputados municipais, as promessas repetiram-se, desta feita pelo vice-presidente da Câmara Municipal de Ovar que anunciou a projetada intervenção neste bairro para os próximos dois anos, depois de estudo prévio a um conjunto habitacional que pelo seu estado deprimente, chegou em 2000 a ser considerada a sua demolição para construção de novas habitações sociais. Mas assim como o programa SAAL acabou a nível nacional, este bairro ficou dependente de episódios de gestão local que também o atrofiaram e adiaram, não beneficiando sequer do acabamento que outros bons exemplos de bairros SAAL beneficiaram sob a via mais institucional no âmbito do FFH.
Às famílias que têm resistido às tormentas da falta de condições de habitabilidade durante quatro décadas, apesar dos possíveis investimentos para melhorar ou atenuar os graves problemas de construção, que resultam em infiltrações das águas da chuva e constante humidade doentia, que se refletem na qualidade de vida e particularmente nas consequências ao nível da saúde. Resta a esperança de que a sua realidade social vai deixar de ficar escondida e abandonada perante os decisores políticos locais que podem recorrer ao Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano (PEDU) e ultrapassar definitivamente uma antiga dificuldade, como é o pretexto da natureza privada da propriedade, com que sempre justificaram a falta de competência do Município ovarense. Ao mesmo tempo que uma nova geração dá sinais de insubmissão perante tanto desprezo pelas famílias que ali sobrevivem, incluindo à fúria do mar.

Foram pois décadas de vivências sociais em habitações, que, pelo seu estado de degradação, não passavas despercebidas a quem ali passava entre as vizinhas comunidades de Cortegaça e Esmoriz, tendo por várias vezes sido noticia e local obrigatório das campanhas eleitorais, ainda que tudo se tenha mantido até aos dias de hoje num autentico descartar de responsabilidades, que deixou as cerca de duas dezenas de famílias a viverem um drama social e habitacional, inacreditavelmente durante todos estes anos.
Testemunhos na imprensa com quase duas décadas

Da mesma autoria do autor desta peça para o Etc e Tal jornal, já se contavam as testemunhos bem vivos da realidade social do bairro do SAAL devidamente ilustrados com fotografias, que não deixam hoje dúvidas do tempo que os seus moradores para concretizar o sonho a que puseram mãos através do programa SAAL.
Em 27 de fevereiro de 1996, lia-se no Jornal de Noticias (Página do Leitor), que, “o drama social e habitacional das cerca de duas dezenas de famílias que habitam no inabitável bairro do SAAL, na praia de Cortegaça, na sua generalidade em ruinas. Já não esperam por promessas caducadas no tempo (…)” e ainda, “tudo continua com tendência a piorar, devido ao tipo de construção deste quase «bairro fantasma», que nasceu cheio de contradições e mistérios e pela indiferença de que continua a ser vítima”. Também era afirmado neste texto, que, “o mais grave deste drama que tem servido de arma de arremesso, entre autarcas de Ovar, é ainda o peso da burocracia sobrepor-se a uma urgente e imperiosa ação, mais de carácter humanista e social (…)”.

Dois anos depois, no Diário de Aveiro (09/08/1999), era relembrado que “moradores do bairro do SAAL ainda sem solução”. Era mesmo dada voz a uma das mais velhas moradoras. “Emília Oliveira Leite, com 53 anos de idade, já perdeu a esperança de ver concretizar-se a promessa, que os autarcas fizeram, de construírem casas novas. Emília já não pensa em si, mas nos casais que foram ficando a habitar e a partilhar com os pais e irmãos, aquelas autênticas ruínas, que são, afinal a maioria dos fogos daquele bairro, junto à praia”.
E dava então um exemplo da realidade social. “Só na casa de Emília Leite vivem quinze pessoas, num tipo T3, com apenas três quartos e um espaço que se destinaria a uma garagem, mas que, com o crescimento da família, teve que ser transformado em mais um quarto, no qual se abriga a filha casada com os seus cinco filhos. Os restantes quartos, são divididos pela D. Emília, o marido e pelos filhos solteiros. Três rapazes numa cama e três raparigas noutra”.
Ontem como hoje, eram precisas várias bacias para aparar a água que caía em vários pontos do seu interior. Nesta altura (1999), a desilusão prendia-se com o facto de o novo conjunto de habitação social construído ali mesmo ao lado, acabou por se destinar a moradores de barracas localizadas entre Cortegaça e Esmoriz, o que deixou de fora os moradores do bairro do SAAL.


Este novo bairro com 14 fogos, que chegou a fazer os moradores do degradado bairro do SAAL voltarem a sonhar na espectativa de melhor qualidade de vida, até acordarem para a realidade que lhes continuou a estar destinada. Foi inaugurado em Abril de 2000 e na cerimónia, como se lê no Jornal de Ovar (21/04/2000), a então Secretária de Estado da Habitação, Leonor Coutinho, perante os “incómodos” protestos dos moradores do bairro do SAAL e do cenário envolvente de estrema pobreza, afirmou mesmo, dirigindo-se ao edil da altura, Armando França. “Resolvam o problema legal deste processo, que tem estado na origem da dificuldade da autarquia intervir, porque eu não quero que isto continue assim”.
Passaram ciclos de diferentes governos centrais e locais e o cenário social e habitacional do bairro do SAAL em Cortegaça naturalmente só se agravou à espera que de uma vez por todas a Câmara Municipal de Ovar assuma finalmente as suas responsabilidades, porque as jovens gerações de moradores deste drama, decididamente não vão esperar muito mais para a ambicionada requalificação.
(*) Correspondente EeTj em Ovar – Aveiro
01mai18