António Pedro Dores
A notícia é o facto de George W. Bush se ter negado a apoiar a campanha de Trump para a presidência dos EUA.
Está a fazer vinte anos. Cartazes em Lisboa apresentavam a foto de George W. Bush como terrorista. A polícia identificava quem estava a colar esses cartazes na parede. Era gente do Colectivo Mumia Abu-Jamal, que continuavam, e continuam, a lembrar o jornalista afro-americano preso para a vida por ser uma voz do partido Panteras Negras. O partido resultou da reclamação de participação política partidária dos negros que acompanhou o movimento dos Direitos Civis. Esse movimento combateu, com sucesso, o apartheid legal que se vivia nos EUA. Apartheid que deixou de ser admitido pela lei, mas se continua a viver fora da lei. É organizado pelas cidades e pelas suas polícias em guetos.
A justiça norte-americana, à vista de todos, destruiu a vida deste homem e de mais os muitos que entendeu necessários para acabar com a pretensão dos negros de entrarem na política partidária, por conta própria. Destruídos os Panteras Negras, outras formas de negros fazerem política foi possível, desde que não falassem da discriminação racial institucional. Ou das reivindicações dos primeiros povos norte-americanos, de que é caso bandeira o Mandela sioux Leonard Peltier, igualmente preso para a vida.
Leonard Peltier
Mário Soares e Freitas do Amaral, dois dos quatro pais da democracia portuguesa, manifestaram-se na mesma altura em que foram colados cartazes nas ruas de Lisboa. Compararam George W. Bush a Hitler. Foram tratados pela imprensa nacional como marretas, antiquados comentadores do espectáculo político. Imprensa que poucos anos depois criou o arrastão de carcavelos, antepassado das fake news. Usou a xenofobia, até então circunscrita a alguns frequentadores habituais daquela zona da praia, e pô-la na ventoinha.
Grupos de jovens negros habituaram-se a ir a banhos, por iniciativa das suas educadoras de infância. As educadoras estavam convencidas de que uma das suas missões seria integrar as comunidades excluídas no seio da sociedade portuguesa. Aquela praia passou a ser a sua praia. Jornalistas oportunistas – com uma honrosa excepção do vespertino “A Capital” que deixou de se publicar nessa altura) – fizeram da falsa notícia um espectáculo mediático durante várias semanas, negando sempre estarem a usar o motor racista para fazer negócio.
A vida continuou
Em Lisboa, em Janeiro de 2019, uma cena, como outras, de abuso de poder policial foi filmada no bairro da Jamaica – onde, um ano depois, haveria de pastar também o vírus da COVID 19. Uma manifestação de protesto (raríssima) foi dispersada à bastonada por polícias incomodados pelo racismo estar a ser denunciado – dois anos antes denunciado aos sete ventos por uma acusação do Ministério Público, a par de tortura contra negros, sem efeitos práticos. Racismo de 500 anos, que também atinge os ciganos. Os judeus e os muçulmanos também serviram e servem, em papéis diferentes dos pobres negros e ciganos, de pasto para esta política estrutural ocidental para dividir e reinar no mundo.
Os tempos mudaram. Em plena pandemia, uma manifestação contra o racismo nos EUA, a pretexto do assassínio de George Floyd, percorre as ruas de Lisboa, como em muitas outras capitais europeias e em todas as capitais norte-americanas. Os jornalistas perguntam se isso não será uma violação dos deveres de distanciamento social. Mesmo os defensores do estado de emergência e do confinamento obrigatório não se atreveram a reclamar acção policial contra os manifestantes. Foram mais compreensivos do que com as autorizações especiais dadas às actividades de rua do Partido Comunista e dos sindicatos. Estes últimos praticaram o distanciamento físico e, excepcionalmente, foram autorizados a manifestar-se. Os primeiros manifestaram-se todos juntos, simplesmente.
Mumia Abu Jamal
O soldado Manning tem vindo a ser torturada pelo sistema militar-judicial-penal norte-americano por ter denunciado crimes de guerra de militares do seu país, como é sua obrigação cívica de respeito pelos direitos humanos. Depois de libertada do primeiro processo, voltou a ser presa, agora por não colaborar com a justiça. Tentou suicidar-se e impôs a decisão de libertação – parece que pode haver vergonha entre as emoções dos torturadores. Mas mantém-se sob a ameaça de, em qualquer altura, voltar a ser presa a pretexto de uma das muitas acusações que sobre ela os procuradores fazem cair. Assange, com quem terá colaborado, é um activista australiano também preso e torturado, mas este pela justiça inglesa, a pedido da justiça sueca, para que possa ser extraditado para os EUA por um alegado crime cometido na Europa. Confuso? O relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos analisou o caso e fala de perseguição por via judicial.
A rápida justiça norte-americana é, na verdade, uma máquina de perseguição de pessoas sem qualquer pinga de piedade ou proporcionalidade. Avisado, Snowden fez o que tinha a fazer e exilou-se em Moscovo, onde é protegido da pátria da liberdade. Ironia do mesmo tipo daquela que viveram os italianos, atacados pela pandemia: viram-se ajudados pelos inimigos cubanos, russos e chineses.
Não tenhamos ilusões: o neo-nazi-fascismo antevisto por Soares e Freitas instalou-se no seio das nossas sociedades liberais. O racismo institucional não desapareceu, nem nos EUA nem em Lisboa. Ao invés, engrossou e perdeu a vergonha. O Trump é a prova disso, lá, como a violência no desporto e o deputado que é uma vergonha são provas disso, cá.
Há quem diga que os ratos já começam a abandonar o barco desorientado da presidência dos EUA: a sede do império ruma, em velocidade cruzeiro, para Pequim. A Alemanha e a UE realinham posições com a Rússia e a China, com quem podem negociar a sua nova subordinação, enquanto que os EUA jogam a última carta que têm: a força militar para impor a sua vontade, soubessem eles qual seja.
A globalização relançada por George W. Bush através do golpe na democracia (lembram-se como ele ganhou a Al Gore? Lembram-se como a srª Clinton ganhou ao Sanders, nas primárias que elegeram Trump?) dedicou à guerra orçamentos multiplicados, que todos os seus sucessores não deixaram de alimentar. Para as próximas eleições, este ano, vão crescer ainda mais. No início do século, lembram-se, o pretexto foi o terrorismo internacional sem estado. A solução foi lançar a guerra privada norte-americana, como a que continua a matar gente indiscriminadamente pelo mundo fora, atingida por drones, sem que a comunicação social fale disso, depois de termos deixado de ouvir falar das prisões secretas da CIA.
No início do século a polícia lisboeta recebeu ordens para intimidar os coladores de cartazes do Colectivo Mumia Abu Jamal, por estes denunciarem – e bem – a política desesperada norte-americana (na altura, sem concorrência) de recorrer à ilegalidade e à guerra para afirmar a sua supremacia na comunidade internacional, quando ninguém a contestava. Os tempos mudaram: expectantes, os estados órfãos do império, compreendem que as manifestações anti-racistas nos EUA são muito mais do que isso. São resultado do beco sem saída das políticas norte-americanas. Esconderem as suas fragilidades, encenando as suas grandezas, pode conduzir à guerra. Mas será que conduz à confiança entre os aliados?
“America great again!” é um slogan de fraqueza, evidentemente. A encenação já vinha de longe. Agora temos novo palhaço. Já nem George W. Bush se revê na sua própria imagem e política. O perigo é imenso: e são os herdeiros dos escravos e dos povos primeiros quem, na sua sabedoria de experiência feita, 500 anos de abuso e genocídio, quem tem a coragem de dizer o Rei vai nu e a Natureza espera pacientemente para que a sabedoria nos inspire.
*”the times they are a-changin”, Bob Dylan
Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Fotos: pesquisa Bing
01jul20

