António Pedro Dores
O contrário do amor não é o ódio: é a indiferença. Como se percebe dos movimentos nazi-fascistas, amor ao chefe ou entre os militantes e ódio aos outros chefes e militantes acompanham-se mutuamente. Como dizem, não os incomoda a existência de pessoas de outras nacionalidades: querem é cada um no seu lugar, no seu território delimitado como celas de prisão. Prisões de que tanto gostam.
O que melhor caracteriza estes movimentos é a indiferença perante a humanidade das pessoas. Abominam a ideia cristã de sermos todos igualmente filhos do mesmo Deus, da mesma espécie, como o comprovam as análises genéticas. Mas são cristãos culturalistas, alheados dos princípios que fazem a cristandade.
O principal problema não é o ódio que alimentam. É dirigirem esse ódio para a indiferença perante os valores, a humanidade, a natureza.
Os neo-nazi-fascistas não são malucos. São gente mais sensível que os outros à tendência suicidária que cresce na civilização ocidental. Em vez de cometerem suicídio, para acabar com o ódio de que estão assoberbados, atiram-se contra alvos de que pensam poder tirar reconhecimento social. Podem escolher os corruptos e as elites, ou os activistas sindicalistas ou LGBT, ou os imigrantes pobres, sobretudo se forem facilmente distinguíveis do resto da população. O seu objectivo é fazer crescer a indiferença com que a sociedade ignora o sofrimento daqueles que estão em dificuldades, como acontece desde 2010, quando as políticas na UE procuraram bodes expiatórios entre os PIGS (Portugal, Itália e Irlanda, Grécia e Espanha).
Pensando melhor, essa indiferença não é típica dos nazi-fascistas. Ela é usada politicamente e conhecida da experiência jornalística quando observa e mostra a indiferença (ou até o medo) com que, nas grandes cidades, quem passa se alheia de quem esteja estendido no chão. Os movimentos nazi-fascistas elaboram essa indiferença como ódio. Tal como um banho de fotografia que revela a imagem, a subida dos votos pró-neo-nazi-fascistas no mundo faz ver aquilo que já está connosco há muitos anos.
Quando uma parte importante das sociedades entra em desespero, quando as expectativas a respeito do futuro – que são sempre problemáticas para os mais pobres – deixam de ser apresentáveis para muitos grupos socialmente integrados, em especial os jovens a começar a sua vida profissional, a indiferença perante as outras pessoas e a política pode transformar-se em ódio a si mesmos e à política. Aparentemente é isso que está a acontecer, com a ajuda das redes sociais. Aí, os desabafos revoltados das pessoas tornam-se a sua própria identidade. Há quem rompa a costumeira indiferença com likes e republicações e pedidos de amizade. Quem vê o seu ódio reconhecido, faz do ódio um dos centros da sua identidade, ao menos nas redes sociais. Dizem os especialistas que este mecanismo, que já dura há alguns anos, estará a facilitar e acelerar o sucesso dos partidos e políticos simpatizantes dos nazi-fascistas.
As sociedades modernas sempre viveram das expectativas de futuro, ao contrário das sociedades camponesas concentradas nos ciclos da natureza, semeadura e colheita. Regularmente, as expectativas de futuro falham de forma insustentável, e as pessoas revoltam-se. A história da modernização é uma história de violências e movimentações sociais, por vezes transformadas em conflitos, através de diplomacia, de reconhecimento das razões dos revoltosos, de repressão contra os revoltosos, sob a tutela de instituições próprias, como as polícias e as forças armadas. Com o estado social, foram criadas instituições sociais, como a concertação social, a segurança social, que se juntaram às escolas e hospitais, que nas épocas mais recentes ganharam protagonismo. Estudos sociais identificam o nível de desigualdades sociais, de participação cívica e política, de greves e outros conflitos de trabalho, maus tratos, tráfico humano, imigrantes, etc., como formas de manter uma informação útil à gestão das expectativas geradas pelo sistema político: as promessas eleitorais.
Com a crise financeira de 1973, as expectativas das populações dos países mais ricos deixaram de ser entusiasmantes, como o terão sido no pós-guerra. Um futuro de paz na Europa e de trabalho bem pago, incluindo para os imigrantes, rompeu com a luta de classes do século XIX. A guerra do Vietnam mostrou aos jovens que a guerra continuava nos projectos dos governantes, mesmo depois da construção da ONU, do miserável lançamento da bomba atómica, da desnazificação da Alemanha. Os EUA, antiga colónia, comportou-se como o centro do velho império. A revolta das gerações jovens e adolescentes nos anos 60 deixaram um rasto de criatividade que aspirava ao sexo, drogas e rock&roll. Mas não conseguiu combater eficazmente o ódio e a indiferença. A perspectiva de criação de sociedades do conhecimento, desindustrializando para os países em vias de desenvolvimento, tornou-se uma justificação para o aumento da escolarização, incluindo a escolarização superior, teoricamente para benefício de todos: os países ricos conduziriam o desenvolvimento a partir das suas instituições bem-sucedidas, ligadas entre si e com o resto do mundo através de redes de informação, máxime o sistema financeiro global e uma rede de transportes para distribuir mercadorias e rentabilizar investimentos globais.
A crise de 2008 revelou a corrupção em que se baseia o sistema financeiro global e a cumplicidade política ao mais alto nível que é necessária para manter paraísos fiscais e alimentar a ganância dos sociopatas que se tornaram multimilionários sem fazer nada de prático a não ser jogar computadores. Os jovens que estavam a pensar poder vir a ser recompensados por se terem preparado a nível universitário para colaborar na sociedade do conhecimento descobriram que os seus diplomas valiam cada vez menos, incluindo nada, pois o desemprego banalizou-se. A protecção das famílias de origem tornou-se crítica e a impossibilidade de constituir família evidente. A indiferença dos estados perante as crises humanitárias, sobretudo na Grécia, com o governo contra a sua população e sem nenhuma política para cuidar dos refugiados, em particular os sírios que marcharam às centenas de milhar para entrar na UE no verão de 2015, parecia a mesma indiferença que abandonou os jovens à sua sorte, quando as promessas de décadas perderam validade.
Na ressaca da crise financeira de 2008, aumentou bastante o activismo cívico e político. Multiplicaram-se actividades de encontro e discussão, assim como os novos partidos. Ficou claro para cada vez mais gente a prática impossibilidade de levar a sério qualquer promessa do estado, incluindo as suas obrigações básicas, como o combate às ilegalidades, como a corrupção. A lei que serviu para encher prisões de pessoas sem recursos não serve para pôr ordem nas elites.
Populistas foi o nome que as elites instaladas encontraram para chamarem nomes, daquele jeito aristocrático que ainda se pratica nos palácios, aos que passaram a fazer política clamando contra as elites. Para melhor esconderem as elites atrás do falhanço das promessas de que vivemos, para esconderem a corrupção das instituições, que é real e da qual beneficiam os movimentos neo-nazi-fascistas em crescimento em grande parte do mundo, os políticos de serviço inventaram a expressão equívoca de populismo, uma versão renovada de totalitarismo. Um modo dos centrismos se desresponsabilizarem do que têm andado e continuam a fazer.
Vemos nos EUA, por exemplo, o resultado da luta dos centristas em perda de popularidade e dos representantes dos supremacistas brancos assumidos na corrida à presidência. Noutros países da Europa, como o Reino Unido, a França, a Hungria, a Polónia, os “populistas” estão a ganhar votos. Na UE não há oposição institucional aos neo-nazi-fascistas, como há na Alemanha, por exemplo. E como poderia haver em Portugal, caso houvesse respeito pela constituição. As eleições estão a dar poder aos inimigos declarados da democracia, perante a indiferença prática das instituições, como aconteceu nos anos 30 do século XX.
Entrevistado pela RTP3, Robert Reich defendeu o rendimento básico incondicional (RBI), que já tinha sido citado por Juncker e foi recitado por Von der Leyen nas suas promessas à frente da Comissão Europeia. Essa política foi a votos na Suíça, há poucos anos, e conquistou 25% dos votos, contra as campanhas dos sindicatos e dos patrões. Há experiências em alguns países. A aplicação de uma tal medida é subversiva em relação às elites instaladas. Mas é também subversiva da mentalidade dominante dos dominados: “então há direito a viver dignamente sem trabalhar?”
A escolha que temos na frente entre o ódio e a confiança já tem representação política do primeiro. As elites que falharam e falharão nas promessas para as quais concorrem os diferentes partidos, estão agora abertas a usar a força bruta contra as populações socialmente integradas (veja-se o crescimento permanente dos orçamentos para as forças de segurança). Financiam de forma descarada e por meios ínvios partidos neo-nazi-fascistas. A construção de confiança política, reclamada por politólogos desde pelo menos o início do século, não foi sequer começada pelas instituições actuais. O RBI poderia ser, caso fosse uma oferta que as pessoas debaixo das ordens de um estado fizessem umas às outras, uma forma de manter as instituições e superar o impasse dos políticos e a tendência das elites para usar cada vez mais a força.
Caso as pessoas entendam que a maneira de combater o ódio, instigado por uns e tolerado pela maioria, é manifestar financeiramente a confiança das pessoas umas nas outras, acabar com a indiferença defensiva, por que razão um estado impediria esse desejo de se concretizar?
Até hoje, o estado não precisou de o impedir. As pessoas não o pedem. Preferem o ódio (os que votam neo-nazi-fascista) e a indiferença (os que votam nos mesmos do costume ou não votam). Os cidadãos não estão organizados para exigir acabar com a indiferença perante a miséria e a indignidade. Do estado, que vive de dividir para reinar, não se deve esperar boa vontade. Afinal, apesar das declarações de respeito pelos direitos humanos e da sua inscrição na constituição, o direito de viver em dignidade nunca foi assegurado.
A existência do estado, e do serviço que presta às elites, depende de as pessoas estarem neutralizadas na sua acção. A unidade de uma maioria suficientemente esmagadora da população para impor ao estado a sua determinação de acabar com a indiferença (face às misérias, aos desastres ecológicos, face ao crescimento do ódio) é sugerida pelo RBI TT (de todos para todos).
Não se trata de pedir dinheiro ao estado. Trata-se de exigir que o estado permita a distribuição de rendimentos entre todos, sem interferir nisso. Tirando proveito disso para se organizar de forma a respeitar os direitos declarados e actualmente incumpridos. As pessoas, simplesmente, obrigam-se a uma contribuição percentualmente igual dos respectivos rendimentos brutos totais para o bolo do RBI de cada mês, bolo imediatamente distribuído por todos os contribuintes, em troca de não pagamento do IRS. Isso pode ser feito de um modo neutral em relação ao orçamento de estado.
Acabar com a indiferença face aos outros concidadãos é também acabar com a indiferença perante a política financeira. Todos passaríamos a estar informados dos rendimentos do país por que parte desse rendimento seria o nosso rendimento. Em vez das conversas sobre finanças serem uma coisa de especialistas, que ninguém entende, em breve todos faríamos boa ideia do que falam, porque todos sofreríamos as consequências directas da produção de rendimentos. Em vez de confiar nos especialistas, cujas profissões são pagas pelas elites, passaríamos a confiar prioritariamente nos nossos concidadãos. Seremos capazes de preferir a confiança ou vamos continuar a deixarmo-nos conduzir pelo ódio?
Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Imagem: pesquisa Google
01nov20
