Manuel da Silva Rodrigues Linda, de seu nome completo. Sessenta e cinco anos de vida alegre e intensamente vivida. Duriense de gema. Um senhor que é, há três anos e meio, Bispo do Porto. D. Manuel Linda.
Foi com esse senhor que falámos, no belo – por monumental e guardador de verdadeiros tesouros -, Paço Episcopal do Porto. Da pandemia, à criação de uma comissão para investigar a questão de eventuais abusos sexuais na Igreja, passando pelo reforço do papel das paróquias na vida eclesiástica, a todas as atividades que têm sido e poderão vir a ser desenvolvidas pela Diocese do Porto, de tudo um pouco se falou. E falou-se de forma clara, objetiva.
Aquele que começou por frequentar o Seminário Menor de Resende e o “Maior” de Lamego, que foi promotor de Justiça e Defensor do Vínculo no Tribunal Eclesiástico, assim como responsável pela Pastoral Juvenil na Diocese de Vila Real, e que ainda na capital transmontana foi vigário episcopal para a Cultura; que, paralelamente à sua atividade na Igreja, licenciou-se em Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica, e em Teologia, na “Católica” do Porto; que foi bispo auxiliar de Braga (2009) e substituiu D. Januário Torgal Mendes Ferreira na Diocese das Forças Armadas e de Segurança (2013), isto entre outras funções e ações… aborda, na conversa que se segue, a vida como algo de especialmente belo, não sendo, mesmo assim, indiferente e crítico quanto aos problemas que afetam a sociedade… a humanidade.
Eis, D. Manuel Linda na primeira pessoa do singular e, muitas vezes, na do plural. Sem papas na língua, e com simpatia, aborda, de forma descomplexada, as questões que lhe são colocadas. Quando assim é, o jornalista fica como que “rendido” à inteligência revelada pelas palavras e pelos gestos de um senhor que anda de olhos bem abertos na sociedade, onde tem um papel de inegável importância…
Vamos lá à entrevista…
José Gonçalves Carlos Amaro
(texto) (fotos)
Como analisa estes três anos e meio à frente da Diocese do Porto, e, logo, num período em que a Igreja teve de enfrentar, como todos nós, os efeitos da Covid-19, tendo, contudo, um papel relevante no apoio social que deu aos mais necessitados e vítimas da pandemia? Foi, e está a ser, um grande desafio para a Igreja?
Relativamente à Diocese do Porto, que é a que conheço, todos os problemas são desafiantes. No campo da pandemia em particular, isso não diz só respeito à Diocese do Porto, mas por cá tornou-se particularmente difícil, porque todos nos lembramos que a pandemia, na prática, em Portugal, começou por aqui, ou seja por três concelhos que são da área da Diocese do Porto: Paços de Ferreira, Lousada e Felgueiras.
Nesse contexto, nós tivemos que tomar as primeiras atitudes a nível nacional, mesmo até dois ou três dias antes de algumas ações tomadas pelo Governo, e isso foi difícil! E foi difícil porque nós não tínhamos um paradigma; não tínhamos um termo de comparação, para fazer o que fizemos.
Houve aí como que uma chamada de atenção para que o Estado se preocupasse, seriamente, com a situação e atuasse em consonância com a dimensão do problema?
Não fiz críticas. Nós sabíamos que a transmissão era, fundamentalmente, de grupo. Nas nossas assembleias dominicais; nas nossas missas… nos funerais. Aliás, os funerais foram das coisas mais difíceis de encarar, isto quando havia comprovada a morte por Covid. Até chegámos a pensámos que tínhamos exagerado nas medidas de prevenção, mas, naquele contexto, o contágio era muito grande, enfim… Tivemos, então, uma atitude dialogante com os sacerdotes e, fundamentalmente, com os bispos auxiliares, e foi sempre no diálogo com eles que fomos tomando essas medidas.
“O TRABALHO SOLIDÁRIO PRATICADO PELA IGREJA MOSTRA A ESSÊNCIA DO CRISTIANISMO”
Mas, o problema da pandemia não acabou. Hoje, muito mais controlada que na altura, até devido à vacinação. Porém, mantém-se a preocupação quanto às vítimas da Covid que ficaram na pobreza, e que recorreram, como ainda recorrem, aos serviços sociais da Igreja, tendo nós como exemplo – e porque foi motivo de uma reportagem pelo Etc e Tal efetuada -, na Igreja do Marquês e o seu serviço de apoio social em termos de alimentação…
Continua preocupante, sim. É verdade que há aqui dois dados: por um lado, esta pandemia não chega a dois anos, é provável que algumas pessoas ainda tenham algumas reservas; por outro lado, aqueles que perderam o emprego em linha de princípio foram pessoas – alguns deles licenciados e até com mestrado e doutoramento – jovens que, normalmente, são sustentados pela família. Portanto, quase sempre não se nota a repercussão social desses casos de pobreza ou até de fome. Mas, que a há, há! Pelo que também há sacerdotes que, nas suas paróquias, têm serviço de apoio de todo o género – seja mediante cabazes, seja mediante o serviço de refeições, tal como o ‘Porta Solidária’ da Igreja do Marquês –, e todos eles falam no aumento do número de pessoas e de situações dramáticas.
O papel da Igreja foi reconhecido por essas pessoas como fundamental para as suas vidas?!
Nós não fazemos isso para nos baterem palmas! Fazemos pela necessidade. Claro que depois essa ação dá nas vistas, como é o caso do que acontece na paróquia do Marquês…
Dá nas vistas porque é importante a ação que está a ser desenvolvida…
…pois, é evidente! E depois é uma dimensão solidária. O Estado pouco dá, ainda que por intermédio do Banco Alimentar Contra a Fome ajude muitas famílias, mas a maior parte desse apoio vem dos cristãos que o dão tudo o que podem de forma a ajudar outras pessoas. É um trabalho solidário que mostra a essência do cristianismo. Essa essência é isso; é a preocupação com o outro, sem perguntar se o outro participa, ou não, da nossa Fé.
“O PAPA FRANCISCO FALA, AGORA, NA ‘SÍNOLADIDADE’ QUE É A CORESPONSABILIDADE DE TODOS POR AQUILO QUE É COMUM”
Estamos numa fase de revolução na Igreja? Há alterações conhecidas e que são significativas, vindas do Papa Francisco. Destaca-se, por exemplo, uma maior intervenção, na Igreja, da pequena paróquia, ou seja os “pequenos” a falarem e a serem realmente escutados, e não algo circunscrito aos que no topo se encontram….Essa forma de ação é, em seu entender, importante?
A essência da Igreja é entendida pelo conjunto dos cristãos a nível mundial. Foi assim no princípio. Depois, um conjunto de circunstâncias da História, que agora não vale a pena estar a escalpelizar, levou a um sistema piramidal: no cimo o Papa que dava ordens; por baixo, depois, os bispos – que tinham um poder de dar ordens no seu contexto – e a seguir os sacerdotes e o povo de Deus, os leigos, os cristãos em geral, que tinham de obedecer a essas ordens.
Este sistema começou a ser posto em causa pela ‘modernidade’ dentro da Igreja, desde há duzentos anos. Depois, de 1960 a 1965, tivemos o chamado Concílio do Vaticano II, que foi uma verdadeira machadada nesse estilo de ser Igreja. A nível dos documentos a reflexão é belíssima, a nível de implantação, da receção do Concílio, não atingiu ainda a dimensão que esperávamos que atingisse.
Agora, o Papa Francisco fala daquilo a que nós chamamos de ‘sínoladidade’, que é a coresponsabilidade de todos por aquilo que é comum. Portanto, o mais humilde, o mais simples dos cristãos tem uma palavra a dizer sobre a realidade que lhe diz respeito, e essa realidade chama-se Igreja. Não é só o Bispo do Porto, ou o Papa, que têm essa responsabilidade. Essa responsabilidade é de todos!
Isso, na prática já está a funcionar, ou ainda vai demorar algum tempo?
O Papa Francisco disse que é uma atitude que caraterizará a Igreja no terceiro milénio (risos). Vamos lhe dar mil anos! Porque não é apenas a reflexão; isso não é como organizar um simpósio, não é como organizar uma assembleia geral… não! É uma atitude que há-de tomar forma no nosso estilo de vida, até que isso, passe para a nossa maneira de ser Igreja, na maneira de nela nos situarmos, com a coragem de dizer e com coragem de escutar. Demorará o seu tempo até tudo se tornar uma realidade. Ora, claro, que o que é preciso é começar!
“JÁ TEMOS COMISSÕES EM TODAS AS DIOCESES QUE ESTÃO A FUNCIONAR QUANTO À QUESTÃO DE EVENTUAIS ABUSOS SEXUAIS”
Entretanto, e tem sido notícia de destaque nos últimos dias, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) anunciou que vai criar uma comissão para investigar a questão de eventuais abusos sexuais na Igreja Católica, em Portugal.
No comunicado final da 201.ª Assembleia Plenária, a CEP revelou que “refletiu sobre a proteção de menores e adultos vulneráveis nos âmbitos eclesiais e na sociedade no seu todo”. Qual a sua opinião sobre este assunto?
Eu pertenço ao Conselho Permanente, e depois cada um de nós tem a função de organizar o diálogo. Este ano, curiosamente, aconteceu quando a presidência era minha. Obviamente que estamos de acordo a cem por cento com a decisão, mas que é mesmo a cem por cento! É mais que importante que a transparência seja uma realidade e uma atitude que há-de determinar a nossa Igreja. Nós já temos comissões em todas as dioceses, e que estão a funcionar bem quanto à questão de eventuais abusos sexuais, Já temos em todas as dioceses – que são vinte, mais uma que não é territorial, mas é das forças armadas e forças de segurança -, um conjunto de peritos, que vão da Psiquiatria ao Direito prontos a dar resposta ao problema…
… já estavam atentos à questão?!
Sim. Que estão atentos ao problema, e, fundamentalmente, a duas realidades: primeiro, fazer formação, para que, no futuro, isso nunca mais aconteça; segundo, investigar até ao limite do possível as insinuações, ou denúncias formais que nos surjam. E todos estão a fazer isso! A Comissão Nacional está à espera do resultado de alguns técnicos já nestas condições diocesanas. Esta decisão vai servir para, por um lado, uniformizar critérios e potenciar atitudes. É, desse modo, conveniente ter um pequeno regulamento para o funcionamento destas comissões. Se vão fazer vinte e um regulamentos, certamente que vão percorrer vinte e um caminhos distintos. Se for uma Comissão Nacional, que crie um único regulamento, que todas aceitem, é um trabalho para a totalidade. E depois, é levar até ao extremo, sem limite de tempo, todas as insinuações; todas as denúncias que quiserem fazer, e que a Comissão vai ter que dar atenção.
“TEM HAVIDO ALGUNS CASOS FEITOS POR MALÍCIA, OU SEJA, FEITOS POR GENTE QUE NÃO PODIA ESTAR DENTRO DA IGREJA”
Mas, já há conhecimento de algumas denúncias? Há casos graves? Aliás, basta um caso para que o problema seja grave…
Eu ia dizer isso mesmo: basta um caso para que o problema seja grave. Os números estão aí, e às vezes a comunicação social fala deles. Tem, na realidade, havido vários casos: uns por malícia, de gente que não podia estar dentro da Igreja; e outros por outras razões… sei lá?! Se fizermos como os bispos de França nos anos 50/60 do século passado, e que de acordo com a mentalidade daquela altura – com destaque para o maio de 68- , um simples toque podia ser mal interpretado e condenado… acho que não! Não quero dizer que esteja a defender quem o fez, nem de longe nem de perto, estou apenas a chamar à atenção que algumas coisas que aconteceram podem não ter sido como se pensava. É muito provável que aquele que foi vítima de um toque, ou outra coisa qualquer, tenha interpretado mal a situação– e com razão. Todavia, da outra parte poderia ter havido algum atrevimento, mas não propriamente um abuso . A História é isso mesmo. A História tem de se construir no seu contexto. Assim sendo, querendo analisar, hoje, alguns dados dos anos 50 comparando-os com os critérios que temos hoje, não dá!
É preciso rigor na investigação para não se cometerem injustiças…
Que fique claro que aqueles casos que aconteceram e foram do conhecimento da maior parte da sociedade, repugna a Igreja. Nós não sabemos as motivações dessa gente, mas sabemos que, em Portugal, por motivo completamente distinto, fala-se muito em ‘infiltração’. Há quem se infiltre numa grande organização ou instituição nacional para obter negócios ilícitos, etc. É, assim, muito provável, que no passado e no presente – oxalá que isso não aconteça -, pessoas se infiltrem, ou se tenham infiltrado, na Igreja com outras intenções.
Já com o objetivo…
…malicioso!
“NÓS NÃO SOMOS ADIVINHOS! NÃO SABEMOS O QUE SE ESCONDE NUMA PESSOA!”
Isso é difícil de investigar…
É, praticamente, impossível. Fui formador num seminário, e aquilo que me preocupa muito, aqui na Diocese do Porto, são três os seminários que temos em funcionamento. Não temos tido casos, graças a Deus. Agora: não temos tido casos… que saibamos! Nós não somos adivinhos, ao contrário do que se pode pensar. Nós olhamos para uma pessoa que é colaboradora, simpática, alegre, dinâmica… mas não sabemos o que nela se esconde. Muitos pensam que os bispos esconderam este ou outro caso… Mas que caso, ou casos? Por motivos óbvios, um individuo esconde de todos o que fez, mas muito mais esconde do bispo. O bispo é efetivamente, e na realidade da vida, muitas vezes, o último a saber desses casos.
Agora, há um espaço para a vítima, com segurança, expor o, ou os, seus casos…
Já havia, mas talvez nós não difundimos bem essa realidade. Agora, imaginemos que acontecia algo na Diocese do Porto, e a pessoa não queria dar a cara, aqui, junto das pessoas que formam a Comissão… , a verdade é que ela já pode denunciar o ocorrido em Lisboa, Braga ou Aveiro… onde quiser. Depois, haverá a respetiva investigação para ver se o caso apresentado tem algum fundamento. Portanto, num primeiro momento, a pessoa pode denunciar em qualquer lado. Estamos a fazer tudo para que alguém não possa dizer que se sentiu coagido e não quis denunciar porque não quis dar a cara, e estamos a fazer tudo também, para que haja segurança das duas partes. Não é chegar aqui uma carta anónima, que revela isto e aquilo, e pronto… Não! A gente tem de investigar.
Pode haver aproveitamento pessoal?!
Tem havido!
“NA DIOCESE DO PORTO HÁ UMA EXTREMA DEDICAÇÃO DO CLERO”
Nestes três anos e meio, o que é que mais surpreendeu D. Manuel Linda, na Diocese do Porto?
No aspeto positivo, surpreendeu-me a extrema dedicação do clero nas suas tarefas. Claro que há casos e casos, mas de uma forma genérica, o clero é absolutamente extraordinário. No sentido negativo, surge esta necessidade de começarmos a dar passos significativos de um regime paroquial para um outro mais geral. Estamos numa zona eminentemente urbana, não é só o Porto, é toda esta franja do litoral, que vem desde Santo Tirso – da Azurara, mais propriamente dito – passando por Vila Nova de Gaia, Espinho, quase até Aveiro… isso é a Diocese do Porto. São zonas que, hoje, não se limitam às fronteiras das paróquias. As pessoas são capazes de ir à missa a um santuário, pedir sacramentos onde se sintam bem. Ora, fazer a passagem de um sistema que, durante séculos e séculos, viveu à base das fronteiras paroquiais para outro que vai ser muito mais global, não está a ser fácil!
Qual a relação da Igreja, neste caso da Diocese do Porto, com o poder autárquico?
Se considerarmos duas paróquias que pertencem, civilmente, ao concelho de Vizela, a Diocese do Porto tem paróquias de 29 concelhos, e dou-me bem com todos os presidentes das câmaras municipais. Temos um bom relacionamento com as autarquias, e com algumas um relacionamento de excelência…
Isto não querendo dizer que, de em vez quando, se registe um puxãozinho de orelhas a esta ou aquela autarquia, por esta ou aquela obra não ter sido realizada?!
Nunca puxei as orelhas a autarcas. Respeito muito a função dos autarcas, até porque sou filho de um autarca. O meu falecido pai foi presidente da junta de freguesia da minha terra, S. Pedro de Paus, portanto sei o trabalho que eles passam, e particularmente, nos outros tempos, em que não havia dinheiros e as obras eram feitas devido à boa vontade das pessoas.
“NUNCA PENSEI SER BISPO”
Sair de Paus, Resende, deixar a sua terra natal, para, como que, ‘abraçar o mundo’, foi fácil?
Foi. Eu fui sempre um pouco aventureiro. Quando fiz a quarta classe, estava assente na minha família que era eu que iria continuar estudos, coisa que naquela altura, e naquele contexto, não era frequente. Houve, então, várias opções e uma delas passava pelo seminário que fica lá, em Resende, na Diocese de Vila Real. Era um Seminário Menor, ou seja, o que ministra ensino até ao, equivalente, fim do ensino secundário. Depois, quando se trata de um curso superior, licenciatura, mestrado, dizemos Seminário Maior. E, portanto, naquele contexto optou-se – até porque a minha mãe queria-me perto dela – por esse seminário menor, em Resende.
Já com o objetivo de ser padre?!
Sim. E com certa clareza! Mas, depois, ao longo da vida nem tudo é uma linha reta… há muitas curvas. Muitas vezes houve ânimo; muitas vezes houve desânimo. No antigo quinto ano, atual nono, havia já uma certa demarcação: aqueles que queriam continuar, continuavam, e os outros saiam. E saíram dois ou três grandes amigos, e eu fiquei assim como que abalado com a situação. A partir desse momento, ou seja, a partir do tal quinto ano, praticamente fui sempre um aventureiro. Estudei longe, até no estrangeiro, e foi assim a realidade da vida…
A realidade da vida chega a fazê-lo passar pela Invicta. Alguma vez pensou em ser Bispo do Porto?
Na realidade nunca pensei ser Bispo. Ser padre somos nós que queremos! Ser Bispo só se a Igreja chamar… Só mesmo se a Igreja chamar é que se pode ser Bispo. Eu propunha-me para não ser Bispo, mas a vida fez-me andar muita das vezes ao contrário. Eu imaginava ser um simples pároco de uma aldeia na serra – a primeira paróquia que tive foi a 1100 metros de altitude, na serra do Alvão, aí sentia-me bem e era lá que queria continuar …
Gostava do contacto mais próximos com as pessoas…
Exatamente! Havia um certo idealismo… Mas, determinadas circunstâncias levaram-me para onde pensava não ir.
“O PORTO NÃO ERA, PARA MIM, UMA REALIDADE DESCONHECIDA”
Quando foi confrontado com o Porto e dele ser Bispo? Qual foi a sua reação?
Houve um conjunto de indícios que começaram a apontar para mim. Por exemplo, o Núncio, em Portugal – o nosso País tem como se sabe relações diplomáticas com o Vaticano -, um dia perguntou-me como estava a minha saúde, com uma insistência muito especial, e eu comecei a desconfiar. Depois, alguém que tinha estado com o Papa disse-me: ‘olha, o Papa falou no teu nome, e disse que para o Porto não nos podíamos enganar. Quem é que tu sugerias para o Porto? Diz-me nomes! E quando pronunciei o teu nome o Papa disse: chega, não é preciso mais, podes ir embora!’
Todo este conjunto de indícios levaram-me a começar a ficar preocupado (risos). Mas essa preocupação na realidade aconteceu. O Núncio chamou-me lá, à Nunciatura, para dizer que ‘com toda a naturalidade, o Santo Padre aposta no seu nome para Bispo do Porto. Você aceita?’. Pedi alguns dias para pensar. E não foram precisos muitos dias, porque quando se perde muito tempo acaba-se por dizer não.
E os primeiros momentos como Bispo do Porto foram bem vividos?
O Porto não era uma realidade, para mim, desconhecida. Estudei cá, depois fui durante muitos anos professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica. De resto, mesmo antes de ser professor, ao Porto vinha muitas vezes, quanto mais não seja ao ao Seminário Maior. Portanto, todo este contexto eu via, sabia, conhecia, mas conhecia por fora, depois quando se chega aqui dentro é que se conhece, com o passar do tempo, a realidade.
Com o que é que se surpreendeu, se é que se surpreendeu com algo?
Não posso dizer que não me surpreendi. Surpreendi-me com muita coisa! Se me permite, deixe contar-lhe que desde que o senhor D. Armindo resignou, por motivos de saúde, até à minha chegada, foram 12 anos, e nesses 12 anos, esta Diocese foi dirigida por sete bispos. O senhor D. Armindo, o senhor D. Manuel Clemente, e o senhor D. António Francisco dos Santos e no intervalo – entre a morte de D. António e a minha chegada -, a Diocese foi servida por administradores, dirigidos por D. António Taipa. Quer dizer que, em tão pouco tempo – em pouco mais de uma década – ter sete Bispos levou a que não houvesse uma linha unitária. Ter um bispo durante demasiado tempo à frente de uma diocese… quinze, vinte anos, cansa! Mas também ter tanto bispo em tão pouco tempo, não há capacidade para dar uma unidade, uma forma global.
E veio dar essa unidade?
Eu não digo que dei, estou somente há três anos. Vamos tentar. Estou a começar! As instituições não são tão maleáveis como são as pessoas. O nosso temperamento pode corrigir-se com relativa facilidade, mas as instituições, que são servidas por largas centenas e até, às vezes, milhares de pessoas, essa ‘correção’ demora muito mais tempo!
“TEMOS UM CONJUNTO DE JOVENS ABSOLUTAMENTE EXTRAORDINÁRIO!”
Dentro dessas centenas ou milhares de pessoas, os jovens, por onde eles andam?
Uma prioridade! Como sempre, e como acontece em toda a Europa, temos, aqui, um conjunto de jovens, absolutamente, extraordinário! Fico impressionado, através das tais vigarias – a ‘vigaria‘ é uma organização que nós temos e que coincide, em termos territoriais, com o concelho – eles apresentam e desenvolvem muitas atividades, encontrando-se jovens de uma dedicação e de uma qualidade extraordinária. Dos setores mais promissores, aqui no Porto, é o setor da Juventude. E essa questão da Juventude tem várias dimensões: tem a dimensão daqueles que se reúnem habitualmente nas paróquias, mas, a verdade, é que há muitos organismos, que a gente não dá conta, e que estão a fazer um trabalho verdadeiramente notável. Os grupos que há aqui na cidade do Porto da pastoral universitária são muitos. Há uma realidade, belíssima, que surgiu em Lisboa, mas que está um pouco espalhada por todas as cidades onde há universidades, chamada ‘Missão País’, que reúne um conjunto de jovens, que, aqui no Porto, chega, sensivelmente, aos três mil, e que ao longo de todo ano se preparam e depois vão em grupos de 50 a 60 elementos, para uma determinada zona, quase sempre fora da Diocese do Porto. No ano passado estiveram em Mesão Frio – durante oito dias, e fazem envangelização porta-a-porta, particularmente, entre os velhinhos. Essa ação tem uma dimensão de espiritualidade espantosa, e tem levado à conversão de muita gente! Isto é: outros jovens que querem ver como isto funciona… eles até nem acreditam muito, mas vão-se aproximando…
“PRECISAMOS DE MAIS PADRES… MUITO MAIS!”
Há um maior número de padres jovens do que o que havia há uns anos ou a coisa continuam na mesma?
Precisamos de mais padres, muitos mais! Nós temos tido uma média que irão baixar nos próximos dois, três anos…
Irá baixar?!
Temos menos gente neste momento. Os futuros padres jovens, dentro de pouco tempo serão menos a ser ordenados. Nos últimos a nos, temos tido seis, sete, oito… muito pouco! Não temos tido mais do que isso. Este número chegava se não fosse um fenómeno que temos: há anos, mais de meia centena de padres fizeram um belo trabalho nas suas paróquias, esses padres são aqueles que, neste momento, estão com 80 ou 90 anos. Isto é: muitos já faleceram; outros estão doentes, e outros retirados. Portanto, para os substituir temos esta dificuldade, porque rigorosamente o número de padres que vai havendo para os tempos de hoje chega, agora, o problema está em mantê-los… isso é que é difícil.
E, entretanto, a Igreja deu-se bem com a internet, com os novos meios de comunicação?
Relativamente ao confinamento, da pandemia, e, depois, quando não havia confinamento mas havia, e há, medos, as informações transmitidas online – pequenos vídeos e mensagens do pároco para os seus paroquianos – ajudou muito a manter o espírito dominante à volta do seu pároco. Até muita gente que se mostrava indiferente, viu que os sacerdotes se preocupavam com as pessoas, etc. Quem diz isto, diz outros contactos. Houve grupos de jovens – e voltamos a falar dos jovens – que na nossa Diocese tomaram a iniciativa de contactar com velhinhos que estavam, mais ou menos, isolados em casa. Fizeram um primeiro telefonem dizendo que ‘sou fulano de tal, o nosso grupo de jovens fez uma distribuição, e se o senhor, ou a senhora, quiser podemos ligar-lhe duas a três vezes por semana’. Muitas pessoas não quiseram, porque tiveram medo: quando a oferta é grande o pobre desconfia! (risos) Mas, a maior parte quis e estabeleceram-se, assim, contactos absolutamente espantosos, de tal maneira que houve velhinhos que disseram que alguns dos jovens eram seus filhos adotivos.
Isto só para dizer que estes contactos personalizados foram feitos, muita das vezes, pela internet e outras vezes por telefone, e mostraram uma Igreja de proximidade. As celebrações não são a mesma coisa, mas para a pessoa que está em casa, e não se pode deslocar, essa ação ajuda a manter uma certa espiritualidade.
“A DIOCESE DO PORTO NÃO TEM DÍVIDAS!”
Em termos de edificado. A Igreja tem o seu património. Há obras a decorrer, ou há dificuldades nesse sentido?
Como se sabe, a Diocese do Porto tinha grandes problemas económicos, que Graças a Deus foram ultrapassados, em grande parte, pelo facto de termos alineado alguns bens; bens esses que, na prática, só davam prejuízo. Portanto esses bens foram alienados para recuperarmos outros. A pandemia não nos deixou avançar ao ritmo que pensávamos, mas fizemos alguns acordos sem alienar, mas para poder ser recuperado. À empresa fazia essa recuperação, nós entramos com o valor que era inerente aquele prédio para, dentro de algum tempo, termos o retorno. Portanto, de momento, a Diocese não tem dívidas, e o Seminário Maior precisa urgentemente de obras, pois trata-se de um antigo convento jesuíta, do século XVI, e que ao longo da história teve muitas coisas, principalmente quando os jesuítas foram expulsos pelo Marquês de Pombal etc. Depois outra congregação, a dos padres Grilos, comprou o edifício… no meio disto tudo, o edifício teve usos completamente distintos. Hoje, não é uma casa adaptada à formação. É uma casa incómoda! Precisa mesmo de obras, porque há certos locais que estão em degradação completa.
“O BISPO É QUE MENOS PODER TEM NA REALIDADE DO DIA-A-DIA”
Entretanto, vai apoiando algumas iniciativas um tanto ou quanto radicais, como o ‘Rally’, do Porto à Guiné-Bissau…
(risos)
Quem o organizou foi um conjunto de sacerdotes aventureiros. Lançaram-me o desafio e aceitei apoiar a iniciativa com muito gosto. Apadrinhei de facto essa iniciativa. Gosto deste género de ações.
Este tema da pandemia também tem as costas largas, mas é a realidade da vida como ela é. E a pandemia, em boa verdade, não nos permitiu desenvolver muita coisa que a gente imaginava que era possível. Eu queria, por exemplo, que os nossos alunos do seminário, antes de serem padres, tivessem uma experiência missionária, naquela que é a realidade de uma Igreja que ajuda as pessoas com o que tem, e o que tem é muito pouco… mas as pessoas dessas zonas, como a da Guiné, ainda têm menos. A Igreja está intimamente ligada com o seu povo.
Em outros países de língua oficial portuguesa também há intervenção da Igreja…
Na Diocese do Porto temos, neste momento, paróquias que estão interligadas com todos os países de língua oficial portuguesa. Temos, assim, ligações de Timor a S. Tomé e Príncipe… a Cabo Verde, passando por Moçambique, onde lá temos um padre que está a fazer um programa, de três a quatro anos no mínimo, e não muito longe daquelas problemáticas de Cabo Delgado, e diz estar feliz…
Normalmente a interligação com esses países, que nós chamamos de missões, passam pela presença, no Verão, de grandes grupos de jovens, e não só, que vão lá exercer uma determinada ação, que pode ser a nível da catequeses, mas não só…
… e saem mais ricos dessas missões…
…sim, é o que eles dizem. Isso encontramos na Bíblia: há mais alegria e mais riqueza em dar do que em receber. Eles dizem que ficam, pessoalmente, mais ricos do que a obra que lá deixaram.
“A VISITA PASTORAL É DOS TRABALHOS MAIS BONITOS QUE SE FAZ”
Gosta de sair à rua?
Sim.
De contactar com as pessoas…
Gosto de sair à rua, sim. Nem todas as pessoas me conhecem, mas as que me conhecem têm tido reações muito bonitas e simpáticas. Não posso dizer que ando sempre na rua, até porque o tempo não dá para isso. Mas, por exemplo, quando posso, gosto imenso de sair daqui à noite, atravessar a ponte Luiz I., e ir até à Câmara de Gaia, e, às vezes, até Santo Ovídio. Mas também gosto andar por Santa Catarina.
E já surpreendeu alguém dos bairros sociais…ou seja, uma visita à parte mais desfavorecida da cidade?
De maneira informal, não! Como sacerdote, sim! Isso acontecia com maior frequência – e agora vamos voltar a fazê-lo – com as visitas pastorais. A visita pastoral pode ser de uma semana inteira para uma determinada zona, e visita-se as entidades, os organismos… as forças vivas da região, mas não só: reúne-se com aqueles que na Igreja participam na catequese. Isso faz parte da nossa missão – o Diretório dos Bispos impõe-nos isso de forma muito clara – visitar os pobres, os doentes, os mais isolados, etc. e esse é dos trabalhos mais bonitos que a gente faz.
Pode concluir-se que é um homem feliz?!
Eu diria que sim. A felicidade plena é no outro mundo. Agora, sou um homem feliz Graças a Deus.
A vida é… Linda!
(risos)
O meu nome vem do holandês, e significa tília. De qualquer maneira, e ao nível da realidade da vida, eu também a considero linda. Vi muitas vezes – e fazia questão de mostrar aos meus alunos, quando trabalhava no Seminário de Vila Real – o filme a “Vida é Bela”.
“É IMPORTANTE VALORIZARMOS AS NOSSAS FAMÍLIAS DE SANGUE”
E estamos numa época muito especial, e em particular para a Igreja, como é o caso do Natal. Quer deixar alguma mensagem especial para os nossos leitores, sejam eles crentes ou não?!
Costumo sempre fazer uma mensagem de Natal, mas, sinceramente, à data, ainda não pensei. De forma global, desejo que o Natal nos ajude a redescobrir este valor insubstituível da Família. Nós pensamos que encontramos a felicidade por nós próprios, seguindo um caminho individual: é mentira! Precisamos dos outros! Mas, precisamos de uma forma especial, daqueles que por laços de sangue constituem a realidade mais próxima de quantas existem, que é exatamente a Família. É importante valorizarmos as nossas famílias de sangue.
Depois, para aqueles que participam da Luz da Fé, o Senhor Jesus que chega do presépio de Belém sofre logo o frio no princípio da vida; sofre as condições de nascer num presépio, numa cabana de animais, não é o mais agradável, mas, entretanto, ele é o Senhor da História. A História caminha para uma plenitude. Devagar, devagarinho, como todas as coisas que são valiosas…
“PRECISAMOS TUDO FAZER PARA QUE A HISTÓRIA SEJA À MEDIDA DA DIGNIDADE HUMANA”
…mesmo com todos os receios que conhecemos e que confrontam, diariamente, a humanidade?
Mesmo com esses receios todos! A Covid, a instabilidade mundial, a hegemonia das potências, com a queda da União Soviética, os Estados Unidos imaginaram-se os donos do mundo, mas, agora, aparece a China, e começamos a falar da Índia… Não obstante tudo, a História tem um sentido. Precisamos tudo fazer para que essa História seja à medida da dignidade humana! A História não pode ser, somente, baseada pelo lado da economia. O Papa Francisco chama à atenção dos frágeis, dos excluídos, dos descartados – expressão que ele utiliza muito… A vida continua e a vida tem metas, e as metas são da felicidade, da alegria e da capacidade de sonharmos com um futuro cada vez mais harmonioso.
Entrevista realizada a 16 de novembro de 2021
01dez21















