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Castro Guedes: “ O Porto está, em termos culturais, irreconhecível! Há grande atividade e de muita qualidade”, mas há também “uma dispersão de meios” e uma (efémera) “política de evento…”

Castro Guedes é um nome incontornável do Teatro em Portugal. Com mais de cem encenações e 49 anos dedicados à arte de representar, o atual diretor artístico da Seiva Trupe é um homem orgulhoso pelo facto de, nove anos depois, ter encontrado um sítio para a sua companhia teatral – Sala Estúdio Perpétuo, na Rua de Costa Cabral paredes-meias com o complexo desportivo e social do Académico FC -, isto após esta ter sido corrida do Teatro do Campo Alegre.

Sala Estúdio Perpétuo

Direto, com uma postura muito própria no mundo teatral, mas não só, Castro Guedes é da opinião que a arte que abraça com paixão e dedicação, ainda não é, em Portugal, “estruturante, estrutural e estruturada”, defendendo uma intervenção do PRR no desenvolvimento do Teatro em Portugal – mas sem ter sido levado em conta pelos governantes -, através uma ideia que envolveria “migalhas” e que “era, de facto, algo de serviço público, de interesse para a juventude, de interesse para a coesão territorial e de interesse para o trabalho artístico em geral”.

Castro Guedes lançou, recentemente, “Textos de Teatro Para Cena II”: uma obra que reúne 11 textos de teatro para cena (ou peças). Esta edição surge na sequência do Tomo I, lançado em 2015 e que em conjunto correspondem, quase na totalidade, à sua produção teatral.

E para que tenha ainda uma mais completa informação acerca deste ‘senhor do teatro’, fique a saber, desde já, que ele iniciou-se no teatro como ator aos 13 anos. Em 1973 integrou o elenco original da Seiva Trupe. Aos 23 anos começou também a trabalhar como encenador, tendo ultrapassado já as 100 encenações.

O nosso entrevistado foi fundador e diretor artístico do Teatro Estúdio de Arte Realista – TEAR, encenador convidado de várias companhias um pouco por todo o país, mas principalmente Lisboa. Estagiário de Jorge Lavelli no Théâtre National de La Colline, em Paris. Professor convidado do Ensino Artístico Profissional e Superior. Colaborador em diversas revistas, boletins e jornais da especialidade e generalistas, nacionais e estrangeiros.

Castro Guedes, em 2019, quando tomou posse como diretor artístico da Seiva Trupe (foto: Luís Navarro)

Em 2019, como o Etc. e Tal reportou, Castro Guedes regressa ao Porto e é convidado para o cargo de Diretor Artístico da Seiva Trupe – Teatro Vivo, por meio do próprio Diretor Histórico, Júlio Cardoso.

 Integra ainda a Comissão de Cultura da Diocese do Porto recentemente criada. É Mestre Em Artes Cénicas pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com 19 valores na defesa de Tese.

E a ‘coisa’ não se fica por aqui, já que Castro Guedes recebeu ainda, e da extinta Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, quatro prémios: Especial pela Inovação de um Clássico (“Inês Pereira”, 1982); Melhor Encenação e Melhor Espectáculo (“Os Encantos de Medeia”, 1983); “As 20 Personalidades de Destaque no Teatro em 10 Anos de Democracia”, 1985).

Foi premiado pelo Instituto Bernardo Santareno com o “Prémio Especial” de Personalidade do Ano de 2011. A peça “Três Mulheres em Torno de Um Piano” foi nomeada para os Grandes Prémios SPA de 2012 na categoria ‘Melhor Texto Teatral Representado’.

Por último, em 2021, Castro Guedes foi agraciado com a Medalha de Mérito Cultural da Sociedade Portuguesa de Autores.

Isto é obra!

E foi com o protagonista dessa obra, e no primeiro ‘local próprio’ da Seiva Trupe, que Castro Guedes dá a conhecer, aos leitores e leitoras do Etc. e Tal, o seu mais recente livro; a sua posição sobre o estado da Cultura e do Teatro na cidade do Porto e no País, entre outras temáticas de interesse…

Uma conversa (a que se segue) … para ler com a devida atenção…

 

 

José Gonçalves              Carlos Amaro

(texto)                                (fotos)

 

Hoje, ao falar consigo, não me posso esquecer de ter acompanhado um pouco a sua carreira no Teatro Estúdio de Arte Realista – TEAR, aqui no Porto, na Rua do Heroísmo, e onde, por exemplo, iniciou carreira o ator António Capelo…

Sim, o Capelo passou por lá. Mas, começou connosco, antes, em Viana do Castelo. O TEAR foi do Porto para Viana do Castelo e depois regressou ao Porto.  Ele começou lá…

O seu mais recente livro, intitulado ‘Textos de Teatro para Cena II’, é um marco na sua carreira? Para já, trata-se de uma homenagem ao crítico Jorge Listopad…

É. E é porque o Jorge Listopad foi dos primeiros críticos – nessa altura, único – verdadeiramente a identificar a matriz do meu teatro, equiparando-a à do dramaturgo russo, tragicamente assassinado por Estaline, Meyerhold. E, isto, numa altura em que muita gente pensava que eu fazia um teatro estranho; coisa que não se percebia bem… Estávamos numa época em que tudo era Brest, tudo achava que esse era o único caminho. A minha própria estética estava influenciada por vários criadores – também pelo próprio Brest -, mas Jorge Listopad considerou que a matriz identitária do meu teatro era a de Meyerhold.

A partir daí acompanhou sempre o meu trabalho. E no meu último trabalho ao qual ele assistiu, disse-me uma coisa muito engraçada, com aquele sotaque checo que ele nunca perdeu – penso que foi um bocado deliberado, até porque lhe dava um certo charme –: ‘então, isso é o princípio, ou é o fim? É o alfa ou o ómega?’ Eu respondi-lhe: ‘eu gostava muito que fosse o alfa de alguma coisa nova, mas, se calhar, é o ómega’. ‘Ai se for o ómega a seguir a isto mais vale vender botões’, disse ele. Eu não o conhecia – conhecia-o de nome, evidentemente –, mas, depois, com o tempo, foi-se criando uma amizade. Portanto, dediquei-lhe o livro; livro que tem nove peças, e dediquei cada dessas peças a vários colegas já desaparecidos, Morais e Castro, Armando Cortês e outros…

FOI “UMA PROCURA DIFÍCIL” ATÉ A SEIVA TRUPE ENCONTRAR ESTE SÍTIO

Portanto, este livro é um marco na sua vida profissional?

De certa maneira, sim! Eu comecei tarde a escrever teatro. Eu comecei a escrever por necessidade de escrever para cena, por isso lhe chamei ‘Textos de Teatro para cena’. O meu editor, em 2015 convidou-me para compilar isso tudo, e publicar um ‘Tomo primeiro’. Entretanto, continuei a escrever. Juntei mais nove textos e fiz, agora, o Tomo II. Que se calhar terá um Tomo III, talvez?! Não sei. Pelo menos tenho mais cinco ou seis ideias, mas não sei se vou escrever…

Quarente e nove anos de uma vida ativa…

É verdade… quarenta e nove anos, como profissional, porque, como amador, comecei aos treze … já vai em cinquenta e cinco anos!

Isto é mesmo paixão?!

É! É uma paixão e como todas as paixões, tem dois lados. Temos o lado da santificação do objeto, e o lado dos momentos de desespero e de desprezo, raiva, pelo objeto da paixão. É essa a minha relação com o teatro. Tem sido sempre oscilante! Há momentos em que me desiludo muito! Atualmente, estou num ambiente, curiosamente, misto … por um lado, este desafio da Seiva Trupe

… que já tem um sítio!

Sim. Temos um sítio, que a Seiva Trupe já não tinha há nove anos.

Foi uma luta difícil?!

Foi uma procura difícil. Não lhe chamaria ‘luta’, chamar-lhe-ia uma ‘procura’… difícil, sim. Mas, conseguiu-se! Este espaço ainda vai sofrer uma grande intervenção, quer em termos de equipamentos de luzes e som, como em termos de prolongamento do palco.

E conseguiu-se este local, para o qual o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, se mostrou imediatamente recetivo e aberto. Evidentemente que essa intervenção foi feita junto dos proprietários, mas foi a Seiva Trupe que a despoletou. E, portanto, sinto-me orgulhoso com isso. Assim como me sinto muito contente com o ‘Perpétuo – Educação e Cultura’, que nos acolheu.

Além desta sala, para a apresentação de duas/três produções por ano, dada a dimensão da sala, vamos continuar a fazer espetáculos um pouco em digressão pelo resto da cidade. Aqui, temos o nosso escritório; a nossa sala de ensaios; temos um pequeno gabinete que serve de armazém, de guarda-roupa, enfim…

“QUANDO O JÚLIO CARDOSO ME CONVIDOU PARA A ‘SEIVA TRUPE’ FOI A PENSAR NUMA RENOVAÇÃO! ELE CONHECE-ME BEM E SABE QUE NÃO VINHA PARA AQUI FAZER MAIS DO MESMO”

O abraço de Castro Guedes a Júlio Cardoso, quando, em 2019, tomou posse como diretor artístico (Foto: Luís Navarro)

 Já têm um sítio, e depois?

Agora, a próxima ‘luta’ é enchermos isto de público! Durante nove anos, as pessoas foram perdendo o rasto…

A ‘Seiva Trupe’ ainda é aquela ideia, isto para a minha geração – hoje, com cinquenta e tais… – da peça ‘Cálice de Vinho do Porto’…

Pois. Mas, isso foi uma época. É uma época que, comigo, não se vai repetir. Tenho ideias completamente diferentes. Aliás, é óbvio: quando o meu antecessor e fundador da Seiva Trupe, Júlio Cardoso, me convidou, foi a pensar numa renovação. Ele conhece-me bem e sabe que não vinha para aqui fazer mais do mesmo.

A Cultura na cidade do Porto, em termos de atividade, mudou…

…mudou muito! Saí do Porto em 1990. Fui fazer a entrada do ano a Lisboa. Vim de Paris e depois transitei para Viana do Castelo, passei pela Póvoa, voltei a passar por Lisboa e Almada, e depois voltei ao Porto, por causa deste convite da Seiva Trupe. Foi um ciclo que se fechou. E, de facto, entre 1990 e os dias de hoje, a cidade do Porto está, do ponto de vista da Cultura, irreconhecível. Para o bem e para o mal! Para o bem, porque há uma grande atividade cultural, porque se passam aqui coisas de muita qualidade; para o mal, no sentido que eu acho que, às vezes, há uma dispersão de meios e uma ‘política de evento’, o que não quer dizer que não seja necessária, mas, às vezes, as coisas ficam reduzidas ao evento: acontecem duas ou três vezes e depois não há mais. A Seiva Trupe tem uma matriz identitária diferente. Mas, as coisas complementam-se! Portanto, o Porto está irreconhecível …

“ENTREGAR O RIVOLI AO LA FÉRIA?! PELO MENOS HOUVE A VANTAGEM DE CHAMAR MUITO PÚBLICO AO TEATRO…”

E muito deve-se ao trabalho da autarquia?!

Sim, deve-se em muito ao trabalho da autarquia. Apesar de ter havido um período um bocado negro, com o anterior presidente a este, que destruiu uma série de coisas na cultura…

Entregou o Rivoli ao La Féria…

Isso de entregar o Rivoli ao La Féria, não tenho o mesmo ponto de vista que a maioria dos meus colegas. Acho que essa foi das poucas coisas que pode não ter sido má. Também não direi que foi a melhor solução…

Não tão dramática quanto aquilo que muitos apontaram…

Exatamente! Pelo menos, teve a vantagem de chamar muito público ao teatro. Agora, houve outras coisas que deixou cair, que não quis saber, inclusive a expulsão da Seiva Trupe do Teatro do Campo Alegre, isto sem haver um projeto alternativo, sólido, consistente, para o substituir. Mas, já anteriormente se vinha a notar uma grande ‘movida cultural’ no Porto, e com a entrada do Rui Moreira essa ‘movida cultural’ foi retomada e tem vindo a ser ampliada.

“HÁ UM EXCESSO DE OFERTA DE NOVOS ATORES! DEVIA HAVER UM CRIVO MUITO MAIS APERTADO PARA SAÍREM AQUELES QUE SÃO MELHORES…”

 Recordo-me do Teatro Experimental do Porto e nada leio sobre esta companhia, Os Comediantes, já não existem… na altura, quando ainda havia o ‘seu’ TEAR, havia também este tipo de companhias de teatro que identificavam a cidade, e que, no fundo, lhe davam vida… teatral! Atenção, que isto não é uma questão de saudosismo, é uma constatação.

Sim, mas hoje, há muitos grupos de jovens, na minha opinião, às vezes, excessivamente, porque, às vezes, são projetos muito eventuais, que não têm consistências. Fazem uma, ou duas, peças e depois o grupo desfaz-se.

Está a falar em termos de qualidade?

Estou a falar em termos de quantidade, e em termos estruturais… as coisas não são muito sólidas, são demasiado líquidas… Efémeras! Mas, em termos de qualidade, o aparecimento de quatro escolas de Teatro no Porto – duas superiores e duas técnico-profissionais – têm contribuído para o aparecimento de jovens talentos e interessados. Também aí, na minha opinião, há um excesso de oferta. É evidente que o Porto não pode absorver oitenta novos atores que, praticamente, saem por ano dessas formações. Devia haver um crivo muito mais apertado para saírem aqueles que são melhores, porque depois sofrem grandes desgostos. Saem cheios de sonhos; cheios de ideais, e depois acabam a trabalhar em linhas de supermercado, ou a vender eletrodomésticos…

Na dita província, o Teatro também tem evoluído?!

Sim. O Teatro fora dos dois grandes centros urbanos tem crescido muito, e tem-se consolidado alguns projetos já antigos, até, por exemplo, aquele por onde passei o Teatro Noroeste, em Viana do Castelo… ainda, recentemente, fui ver um espetáculo da Filandorra, que é uma companhia de teatro tradicional de Vila Real, como têm aparecido – e isso tem sido uma boa opção -, vários jovens que resolvem logo deslocar-se para a província, e isso tem sido bom! Por exemplo, na Holanda, nenhum município pode não ter uma companhia residente de teatro de dança! É obrigatório! É de Lei! Tem que ter um teatro municipal, e tem que ter uma companhia de dança ou de teatro residente, independentemente, de receber outras companhias e outros espetáculos.

Em Portugal, perdemos uma grande oportunidade, com o PRR, não por incúria… Eu mesmo escrevi, quando o senhor primeiro-ministro se queixou, e com alguma razão, que as pessoas da Cultura criticavam muito o PRR não ter nada para a Cultura, mas também não contribuíam com ideias. Eu escrevi essa ideia do PRR, de pegar nos concelhos que existem em Portugal – não em todos, mas numa grande parte deles – e, com incentivos, canalizar esses jovens projetos para esses sítios, dinamizando-os, com uma majoração, em vez de ficarem em Lisboa ou no Porto. Foi uma grande oportunidade que se perdeu e que, no âmbito dos milhares de milhões, era uma gota de água no oceano. Tinha-se dado um grande passo em frente. Mas, enfim…

“VAMOS CRIAR UM ‘ATL’ PARA QUE OS PAIS DEIXEM OS SEUS FILHOS EM SEGURANÇA ENQUANTO ASSISTEM AO ESPETÁCULO”

Castro Guedes numa sala adjacente ao estúdio

Portanto, hoje em dia, a juventude interessa-se pelo Teatro!  

Interessa-se! Nós temos uma situação: o público é muito jovem, ou já com alguma idade. Há uma faixa etária no meio – entre os seus 40 e 55 anos – que vai muito pouco ao Teatro, mas também penso que uma das razões – não é a única -, é uma dificuldade de onde deixar os filhos… Nós, aqui, no próximo espetáculo, que se estreia no próximo dia 07 de outubro, intitulado “Bairro Noite e Dia, ou como Maria e José queria ser boa alma e não podia…” vamos, aos sábados, criar um ATL para que os jovens pais, enquanto estão a assistir ao espetáculo, neste mesmo complexo do edifício, os filhos possam estar nesse ATL com toda a segurança enquanto os pais assistem ao espetáculo. É uma novidade! Isso vai ajudar os pais que se queiram deslocar ao teatro e vai ajudar-nos a ganhar esse público.

Está, de momento, a trabalhar com quantas pessoas?

Neste momento, infelizmente, as estruturas com pessoas fixas são poucas. Neste momento somos oito, e atores são só dois, o que quer dizer que para as peças, o elenco é feito à base de atores contratados de forma precária. Acho isto lamentável. Lá está, é das tais coisas em que as pessoas juntam-se para fazer uma peça e depois dispersam-se. Era preciso – não apenas em palavras; de palavras estamos nós fartos -, na prática, ter uma política estruturante, estrutural e estruturada, que é o que não existe no Teatro português, quer da parte do poder político, quer da parte de outros vários poderes fácticos que promovem o evento.

“NO COMPLEXO QUE ESTÁ A SER FEITO NO EX-MATADOURO DEVERIA HAVER LUGAR PARA UM TEATRO MUNICIPAL”

O Teatro Municipal do Porto pode assumir, na estruturação, uma importante relevância?

Penso que o Teatro Municipal do Porto, nomeadamente as salas do Rivoli e do Campo Alegre, têm sido utilizadas como espaços de acolhimento para estruturas de determinada dimensão. Não parece mal, numa cidade cosmopolita como o Porto o faça, penso que falta é ser complementado com outras coisas. Mas, também tenho que reconhecer, que, aqui, ao fazer uma proposta para uma companhia residente – que não vai ser a única coisa a existir, mas, o facto de o presidente da Câmara ter-se disponibilizado para equipar a sala, é um bom sinal.

Penso também que há ainda muitos outros espaços onde poderiam acolher estruturas que tivessem um certo desenvolvimento. Já não digo só em espaços com a dimensão do Rivoli e do Campo Alegre, mas em outras salas que já existem. Os ‘Palminha Dentada’, por exemplo, tem uma sala excelente. Penso que, neste complexo que se está a fazer no ex-Matadouro Municipal, deveria haver lugar para um teatro municipal…

Está projetado um espaço para a Cultura…

Sim, mas eu penso que deveria haver um teatro municipal que albergasse duas ou três estruturas de jovens que fossem alternando entre si… entre teatro e dança, por exemplo.

E a itinerância? Temos o Theatro Circo, em Braga…

Sim. Em itinerância temos, agora, uma rede nacional de teatros e cineteatros que é um projeto da secretaria de Estado da Cultura, que tem alguns aspetos positivos. Mas, eu penso que o problema do Teatro, fora dos grandes centros, só pode ter uma resposta efetiva com estruturas residentes. Porque ir lá fazer um espetáculo, continua a ser uma política de evento. E, depois, há o trabalho local do teatro para a infância, ateliês, apoios aos amadores, que só as estruturas residentes o podem fazer, e, portanto, eu, nesse aspeto, reservo alguma… não posso dizer ‘crítica’ porque tenho de ver como tudo se vai desenvolver, mas tenho ‘reserva’ relativamente áquilo que foi criado.

Qual é a diferença entre o atual e, digamos, o antigamente, onde apareciam grandes atores e atrizes? Na altura, não havia escolas superiores de Teatro…

A única que havia era a Escola Superior de Teatro e Cinema, antigo Conservatório, em Lisboa. E havia os ‘conservatórios’, que a gente chamava do teatro de amadores, que aqui, no Porto, eram os ‘Plebeus Avintenses’ e o ‘Teatro dos Modestos’, que desapareceu, hoje lá existe um hotel, onde dizem que haverá um auditório, sem saber que destino darão ao auditório. A intensão é boa, agora resta-nos saber o que é que os arquitetos fizeram e que utilização vão dar áquilo.

“DEPOIS DO FUTEBOL CLUBE DO PORTO, TALVEZ SEJA A SEIVA TRUPE, A MAIOR BANDEIRA QUE A CIDADE DO PORTO TEM”

E a ‘Seiva Trupe’ foi sempre uma referência…

Penso que sim. Saiba que para meu espanto, porque estive muitos anos afastado do Porto, de 1990 até 2019, verifico, sem exagero, que entre 10 pessoas com quem eu falo, sete reconhecem o nome ‘Seiva Trupe’, e dessas sete, quatro já viram, pelo menos um espetáculo da ‘Seiva Trupe’. A ‘Seiva Trupe’ é uma bandeira. Depois do Futebol Clube do Porto, talvez seja a maior bandeira que a cidade do Porto tem.

O que nos reserva a Seiva Trupe para o futuro? E o Castro Guedes, em particular, por certo, com a publicação de mais um livro?

Da minha parte, digo muitas vezes que estou na idade de passar de encenador a senador. Estou muito cansado! Evidentemente que até este projeto ter os seus alicerces , que estamos no princípio de construir. Abrimos o buraco, agora, são precisos os alicerces para levantar o edifício. Gostaria de poder acompanhar todos os alicerces, depois, outros que venham, mais jovens, que levantem o restante edifício.

Da minha parte o que se pode esperar é, em princípio, não trabalhar mais como ator. Tenho tanto a fazer ao nível da produção, ao nível artístico, ao nível da captação de públicos aqui, com a Seiva Trupe, e que não me permitem estar a ter a veleidade de trabalhar como ator.

A captação de públicos é completamente de há dois ou três décadas?!

Completamente diferente! Embora haja um aspeto que já há dez anos era desprezado pela maioria das pessoas, e que nós no TEAR e a Seiva Trupe, por si, na altura, o faziam: o público tem que ser organizado. Não basta apenas abrir a porta e dizer ‘está aqui a peça’ e esperar que as pessoas venham. São precisos grandes contactos! Eu quando estagiei no Teatro Nacional de La Colline, em Paris, para minha grande surpresa, fiquei a saber que cerca 60 por cento do público era ‘público organizado’ e organizado através de vários sistemas. Evidentemente que não lhe vou aqui falar dos sistemas, porque cada um que faça como entender, e nós temos a nossa maneira de o fazer. Não tenho nada a esconder para quem queira conversar connosco sobre o assunto, mas, até seria uma massada estar aqui a descrever pormenores.

Seja como for esse estilo de chamar o público, com as redes digitais, obriga a um outro tipo de informação… de convite…

Em muitas coisas, o contacto presencial é fundamental. Arranjar intermediários que nos sirvam, para, numa coletividade, aqui ou ali, conseguir captar público. As redes digitais são muito importante para divulgar, mas são também um bocadinho de ilusão. Nunca me esquece que num evento em Lisboa, quando eu ainda tinha Facebook – já não tenho, a Seiva Trupe, sim, está claro! -, aderi a esse evento e, como eu, tinha mais dez mil pessoas a aderir ao referido evento. Quando o evento chegou… estávamos lá seis pessoas. Portanto, há um bocado de ilusão acerca das redes digitais. Sabe-se, hoje, que há empresas que se contrata para se fazerem ‘likes’. Num concursos qualquer cobre a capital da Cultura de Portugal… um concurso qualquer, eu sei de boa fonte – garanto! – que duas câmaras municipais contrataram empresas para fazerem a promoção por digital para ver se ganhavam a coisa, e o preço não foi barato e, se calhar, se fossem votos de outra natureza – se não fosse uma empresa e tivessem de ser identificados -, a capital teria sido uma terceira, uma quarta ou uma quinta, e nenhum dessas.

“O TEATRO NÃO CRIOU RAIZES NO PORTO PORQUE NÃO HAVIA COMPANHIAS PROFISSIONAIS A NÃO SER O TEATRO EXPERIMENTAL, QUE SURGIU NOS ANOS 50…”

Sempre se disse que o público de Lisboa é mais recetivo ao Teatro que o do Porto. Concorda?

Concordo. É verdade! O hábito do Teatro em Lisboa está enraizado há muitos mais anos. Já o Almeida Garrett dizia que era preciso de criar o hábito do Teatro para que o Teatro possa vingar.

Por que razão essa raiz não foi criada no Porto?

Não foi criada porque o Porto não tinha companhias profissionais, a não ser o Teatro Experimental do Porto, que surgiu nos anos 50. Embora, muito para trás – no final do século dezanove, e princípios do século vinte -, o Porto tinha uma intensíssima atividade teatral, nomeadamente, com operetas. A minha avó materna quando casou, uma das condições que colocou ao meu avô foi a de ir uma vez por mês ao teatro. Ora, para ir uma vez por mês ao teatro é porque, por certo, havia muita oferta.

Depois houve, aqui, um grande vazio com a queda da Primeira República e Lisboa soube, desse ponto de vista, resistir melhor, desde logo, acho que Revista à Portuguesa teve uma grande importância para a manutenção da chama viva do Teatro e para o aparecimento de outras coisas. É, nesse sentido, que eu digo que a presença do La Féria, no Rivoli, embora não seja o caráter que um Teatro Municipal deve ter, a verdade, é que teve importância porque foi chamando pessoas para o Teatro, e as pessoas que vão a esse tipo de teatro vão depois a outros.

Outros teatros, ou seja, teatros com outras caraterísticas…

Claro. Se uma pirâmide estiver assente numa grande base de público só pode ser um ‘teatro ligeiro’ que vai crescendo, depois, como uma pirâmide em que o grau de exigência vai aumentando, até chegar mesmo a um ‘teatro de investigação’. Em Portugal, durante muitos anos, e hoje, felizmente isso já não se está a verificar, houve uma espécie de pirâmide invertida, pelo que tudo tinha que ruir… não era possível!

“O TEATRO ON-LINE É UMA COISA QUE NÃO EXISTE! O TEATRO É CARA-A-CARA, COM AS PESSOAS A RESPIRAREM NA MESMA ALTURA”

Está confiante no futuro, quanto ao desenvolvimento do Teatro na região?

Estou expectante! Penso que esta questão da Covid pode resultar em duas coisas diferentes, mas também vai depender muito do nosso esforço, não é depender apenas do acaso: por um lado, pode afastar as pessoas do hábito das coisas presenciais; ou pode provocar, pelo contrário, a necessidade da presencialidade, porque estiveram muito tempo confinadas. Há, assim, uma janela de oportunidades que é preciso trabalhar e trabalhar bem. Por exemplo, o teatro online é uma coisa que não existe! Pode ser um produto de imensa qualidade – não ponho isso em causa -, mas, o Teatro é cara-a-cara, no mesmo momento, com as pessoas a respirarem na mesma altura… isso é que é o Teatro. Qualquer outra coisa é outra coisa qualquer!

Qual foi o trabalho que o marcou, e que o marca ainda?

É difícil dizer. Há talvez três espetáculos que me marcam muito especialmente: o penúltimo que esteve aqui presente com a Seiva Trupe, ‘Três Mulheres em Torno de um Piano’, ‘Os Encantos de Medeia’, e a ‘Inês Pereira’ que não vai acreditar, mas vai acreditar na minha palavra de honra, que são números verdadeiros: a ‘Inês Pereira’ teve, no ano de 1981/82, na cidade do Porto, 20 mil e 65 espectadores, o que é uma coisa extraordinária, assim aconteceu no Carlos Alberto, e continua a ser no teatro de reportório, não no do ligeiro, a recordista do público.

É interessante, e porque já falou nessa cidade por diversas vezes, é essa ligação, pelos vistos, muito forte, de Viana do Castelo com o Teatro…

Houve sempre… com o TEAR e com o Teatro Noroeste! Viana do Castelo tem muito público de Teatro, e um público, neste momento, sedimentado…

Fiel.

Sim, fiel. Tem muito público!

Portanto, foram esses três espetáculos que o marcaram.

Penso que sim, pelo menos pelas suas caraterísticas. Os ‘Encantos de Medeia’ tiveram os prémios todos que eram possíveis por parte da Crítica. As ‘Três Mulheres’ foi classificado pelo Jorge Listopad, quarenta anos depois, como ‘obra prima’. Ah… e há também um quarto, que também a Crítica se dividiu, com a maior parte a dizer muito mal, e no qual o Jorge Listopad reconheceu uma matriz identitária, que é o princípio da carreira… ‘O Barbeiro de Sevilha’, em 1980.

Está a pensar em ampliar a equipa, aqui, na Seiva Trupe?

Sim. Gostaríamos muito. Primeiro desígnio é conseguir ter, aqui, público. O outro objetivo a seguir é ter uma base de público, minimamente, sustentável, e depois criar uma minicompanhia, em que para além destas oito pessoas, possam entrar mais outras oito pessoas, sobretudo de elencos artísticos e técnicos. Gostaria muito de concretizar estes objetivos. É claro que isso não depende só de nós. De nós até é o menor grau que depende, porque mesmo admitindo que temos… duzentos(!) espetadores por sessão, isso não é possível se não houver um investimento do Ministério da Cultura e do poder político… da autarquia também. Mas, também depende de nós o facto de sermos capazes de mostrar que somos capazes de o fazer, e, nessa altura, as respostas terão de vir do outro lado.

 Foto: 07

O Ministério da Cultura está bem entregue?

Ah… não faço ideia. Foi entregue recentemente. Não há tempo, de maneira nenhuma, para avaliar. Entrou há pouco tempo, e seria, assim, muito injusto dizer que está mal entregue, como seria disparatado, e leviano, dizer que está bem entregue.

Mas, a questão que levantou do PRR, em apostar mais na Cultura, e, em particular, no Teatro…

A ideia que escrevi, teria sido muito interessante se fosse concretizada, e poderia ser muito importante, simultaneamente, para uma forma de também ajudar a dinamizar o interior; era uma forma de dar saída à quantidade de jovens que saem das escolas do Ensino Artístico, e que se fazia com migalhas. Mas, pronto, a Cultura é muito pouco considerada. Por certo, o senhor primeiro-ministro nem perdeu tempo a ler as partes da Cultura, apesar de ter pedido sugestões; ou, o senhor ministro da Cultura não deu atenção, nem chamou à atenção do senhor primeiro-ministro para essas coisas…

Bom, o que se passou, eu não sei, o que sei é que está lá uma sugestão que acho que com muita pena não foi aproveitada, e, como está a ver, é uma sugestão que, para mim – pessoalmente! -, não me traz qualquer benefício. É mesmo uma ideia de serviço público para o País. Eu tenho a Seiva Trupe; não ia sair daqui do Porto; não ia beneficiar em nada disso, nem sequer tem a ver com a minha geração, nem direta nem indiretamente. Era, de facto, algo de serviço público, de interesse para a juventude, de interesse para a coesão territorial e de interesse para o trabalho artístico em geral.

“RECONQUISTAR PÚBLICOS SERÁ UMA VIA-SACRA, DOLOROSA, UMA VEZ QUE NÃO É DA NOITE PARA O DIA QUE SE ESTALA OS DEDOS E QUE VAI APARACER PÚBLICO”

E, por último, um conselho para as pessoas lerem o seu livro, pelo menos, durante as férias…

As pessoas leem pouco em Portugal, e teatro ainda menos. Mas, há uma coisa que pode ser engraçada, que é um desafio que faço às pessoas, e também acontece com um romance, só que com uma peça de teatro uma pessoa pode imaginar como a faria…

E até pode juntar os amigos e fazer a peça…

Olhe até isso! É uma boa ideia… nunca tinha pensado nela. Sim, juntar uns amigos e fazer uma conversa, pode ser um bom serão para, pelo menos uma vez por semana ficar agarrado às únicas coisas que são as coisas do costume que a televisão oferece ao gosto das pessoas. O ‘gosto’ é uma coisa muito discutível… eu não quero entrar por aí, mas, pelo menos, uma vez por semana, reunir os amigos e vamos lá ver como a gente faria isto em teatro… uma excelente sugestão que deu!

Uma das salas do novo sítio da Seiva Trupe
Sala para arrumos
Guarda-roupa

Quer acrescentar algo mais a esta nossa conversa?

Quero agradecer-lhe esta entrevista, e posso dizer que tenho a consciência que reconquistar os públicos será uma via-sacra, dolorosa, uma vez que não é da noite para o dia que se estala os dedos e que vai aparecer aqui público. Vai ser preciso paciência; persistência; coragem para aguentar o refluxo da maré, mas não se pode deixar de nadar, e quando o refluxo for grande tem que nadar, tem que se boiar, para depois se retomar as braçadas, e isso, já o aprendi a fazer com esta idade e até ao limite das minhas forças irei fazê-lo.

 

 

27jul22/14ago22

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 Comment

  1. Miguel Sopas

    Força e toda a sorte do mundo para o Seiva Trupe e o Castro Guedes, que muito tem feito pela maravilhosa e imprescindível arte do Teatro em Portugal!

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