Ana Costa de Almeida
Têm vindo a assumir evidência na Sociedade Portuguesa prática e mentalidade por demais perigosas e censuráveis de assunção, e mesmo fomento, do que mais não é do que uma séria afronta ao princípio fundamental da presunção de inocência.
Em assistidos e reiterados desrespeito e subversão do que são valores e garantias por que se rege o sistema penal português, em que deve assentar e dos quais depende a própria realização da Justiça, há quem já não se iniba minimamente de lhes sobrepor acusações, julgamentos e condenações de outrem na praça pública, causando ou agravando danos praticamente irreversíveis para a honra e a consideração de quem visam e assim é exposto publicamente.
Se já deve repugnar a quem tenha sentido do que seja um Estado de Direito o desrespeito pelo princípio elementar da presunção de inocência, e pelo que se exige seja um processo equitativo, maior gravidade assume uma divulgação pública de elementos constantes de investigação sujeita a segredo de justiça. Mediante a prática de crime e com manifesta desigualdade de armas, investe-se contra cidadãos, por norma num intuito notório de incutir juízos públicos de culpa e, por acréscimo, devassando despudoradamente a própria reserva da vida privada e familiar.
Em 2003, um jornalista suíço publicou um artigo em que, visando e expondo um arguido detido, divulgava elementos constantes de uma investigação criminal sob segredo de justiça. O próprio Ministério Público despoletou investigação e procedimento criminais contra o jornalista, que viria a ser punido pelos Tribunais Suíços. Invocando que tal condenação consubstanciava violação do direito à liberdade de expressão, como consagrada no artigo 10.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Individuais, o jornalista apresentou queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra a Confederação Suíça.
Por Acórdão publicado em 29 de Março do ano corrente, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em intervenção do tribunal pleno, veio adoptar decisão final sobre aquela queixa votando a alegação e a pretensão do jornalista a insucesso, por considerar não ter a respectiva condenação pelos Tribunais Suíços representado, no caso, violação do direito à liberdade de expressão.
A fundamentação do decidido em Estrasburgo assume inultrapassável maior importância, desde logo na ponderação feita sobre a colisão daquele direito à liberdade de expressão com o direito ao respeito pela vida privada e familiar, consagrado no artigo 8.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Individuais. Acresce, com igual relevância, a atenção que é dada, no Acórdão de 29 de Março de 2016, ao facto de a condenação do jornalista pelos Tribunais Suíços se ter também justificado pela forma como a conduta daquele pôs em causa um adequado funcionamento do sistema judicial, bem como o direito de qualquer arguido a um processo justo e equitativo.
Como expresso na Recomendação Rec(2003)13 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, ainda que assista a um jornalista o direito e até o dever profissional de informar sobre o que seja verdadeiramente de interesse público, a coberto da liberdade de expressão, o direito a um processo equitativo e o direito ao respeito pela vida privada e familiar, protegidos e assegurados, respectivamente, nos artigos 6º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, “constituem exigências fundamentais que devem ser respeitadas em qualquer sociedade democrática”.
Plasmada no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a presunção de inocência está igualmente consagrada, como direito humano e processual de relevância basilar no sistema judicial penal, no n.º 2 do próprio artigo 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Individuais. Não se compreende, nem se pode aceitar, que tais preceitos sejam esvaziados de valor e que haja quem assim até já o defenda e mesmo interiorize, qual presunção própria, desconforme à condição e à interacção humanas, de que nunca poderá ser visado por um procedimento criminal.
Tão pouco se pode admitir, em grosseira violação do direito a um processo equitativo, e de direitos individuais, tanto com protecção constitucional como impostos por instrumentos privilegiados do direito internacional público, que a liberdade de expressão, nesta compreendida o direito a informar, se transforme em meio de ofensa e de devassa da vida privada e familiar. Para mais, ainda, mediante acesso a elementos e informações processuais sujeitos a segredo de justiça, para uso e divulgação a bel-prazer, em prejuízo de um devido funcionamento do sistema judicial. Tal o entendimento e o defendido pela Confederação Suíça, através das suas Autoridades Judiciárias, a que anuiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos termos do aludido Acórdão de 29 de Março de 2016.
Num Estado de Direito Democrático, não se presume a culpa, nem tal pode, ou deve, ser consentido, muito menos fomentado e incentivado, numa regressão calamitosa de princípios, manifestamente prejudicial para a serenidade e a equidade com que a Justiça deve ser – e só assim pode ser – verdadeiramente administrada.
Fotos: Pesquisa Google
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
01jul16
Ainda não analisei com o devido cuidado o Acórdão do TEDH de 29 de Março de 2016, mas tenho por seguro que a jurisprudência deste Tribunal, quer sobre o segredo de justiça, quer sobre a presunção de inocência, não se encontra devidamente refletida no texto da minha querida Colega Dra. Ana Costa Almeida, por quem tenho a maior estima e consideração.
Muito sinteticamente, adianto que a jurisprudência do TEDH sobre o segredo de justiça considera que nem este instituto, nem os direitos e interesses com ele colidentes devem ter-se por absolutos. Para esse Tribunal, o segredo de justiça, rectius, os bens subjacentes a este instituto devem ser balanceados com as liberdades de transmitir e de receber informações, tendo-se em conta as circunstâncias do caso concreto. Assim, por exemplo, se o arguido for uma figura pública, maxime um agente político, e/ou a matéria sob investigação for de interesse público, por princípio, devem prevalecer as liberdades de transmitir e de receber informações. Recordo, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do TEDH de 03/10/2000, caso Du Roy e Malaurie vs. França, de 25/04/2006, caso Dammann vs. Suiça, de 07/06/2007, caso Dupuis e outros vs. França, de 24/04/2008, caso Campos Dâmaso vs. Portugal, e de 19/01/2010, caso Laranjeira Marques da Silva vs. Portugal.
Já quanto à presunção de inocência, o TEDH tem entendido que, por princípio, a mesma apenas pode ser agredida pelo Estado, uma vez que o jus puniendi é monopólio estadual. Perante particulares, designadamente frente à imprensa, o suspeito e o arguido podem invocar outros direitos, designadamente o direito à vida privada e familiar, mas não o direito à presunção de inocência, sendo certo, adiante-se, que mesmo aquele direito haverá de ser balanceado com as liberdades de informar e de ser informado, à luz das circunstâncias do caso concreto. Apenas assim não será se se estiver perante uma campanha objetivamente suscetível de influir na decisão de um tribunal. Nas palavras de Irineu Cabral Barreto (2010: 176), ex-juiz do TEDH, terá de se estar diante de «violentas campanhas de imprensa que tenham por efeito levar o tribunal a adquirir um juízo desfavorável sobre o arguido». O que, ainda segundo o TEDH, dificilmente será de admitir se o tribunal for constituído apenas por juízes de carreira e não por jurados. Em jeito de ilustração, remeto para os Acórdãos do TEDH de 10/02/1995, caso Allenet de Ribemont vs. França, de 29/08/1997, caso Worm vs. Áustria, de 24/04/2008, caso Campos Dâmaso vs. Portugal, e de 19/01/2010, caso Laranjeira Marques da Silva vs. Portugal.
Na verdade, como sublinha o Prof. Medina de Seiça (2001: 646), «aceitar que a divulgação dos termos de um processo implica uma limitação à presunção da inocência deveria estender a reserva a todas as fases processuais, incluindo as de audiência e julgamento».
Em suma, como conclui o Dr. Cunha Rodrigues (1997: 556), ex-agente do Governo português junto do TEDH, ex-perito junto do Comité dos Direitos do Homem do Conselho da Europa e ex-Procurador Geral da República, «[a] conexão entre segredo de justiça e presunção de inocência, frequentemente invocada, é improcedente, desde logo porque o sigilo cessa nas fases preliminares do processo e a presunção de inocência acompanha o arguido até à decisão final».
A presunção de culpa é a prática tristemente habitual dos “justiceiros” da nossa opinião pública. Que se reúnem agora muito no Facebook, transformado em mesa de café e maledicência.
É uma atitude que diz respeito à formação cívica e moral de cada um, ou à falta dela. E que nada tem a ver com a JUSTIÇA. Que, mais vezes do que seria minimamente aceitável, parece de algum modo deixar-se influenciar por ela. Ou, pelo menos, os seus agentes, pelo que “todos” pensam… E ela sem eles na prática não existe.
Saúda-se, pois, com ardor, quem batalha pela Justiça, pelo seu cumprimento e aplicação, pela sua isenção. Isenção também da presunção de culpa irresponsavelmente, ou com intenção dolosa, espalhada pela chamada opinião pública.