António Dores
Roma caiu. Dizem que foi a invasão dos bárbaros. Em Constantinopla também terá sido uma invasão, enquanto a elite imperial discutia o sexo dos anjos. Em Roma, a desculpa moralista vai para a licença de liberdades sexuais que terão distraído os romanos (não vai parar muito longe da explicação oriental).
Não faço ideia de qual será a explicação sobre a queda do império do nosso tempo. Mas não será a patética declaração de guerra ao Estado Islâmico do presidente norte-americano no 13º aniversário dos atentados da Al Quaeda em solo dos EUA e no 41º aniversário do golpe de Pinochet contra a democracia chilena, em representação dos interesses norte-americanos e da política actualmente conhecida por globalização neoliberal.
Tal como os desvarios de Nero passaram a ser recordados como episódio isolado, para explicar a perversidade do poder imperial, é mais provável que os instintos bélicos do democrata afro-americano façam passar à história uma imagem de arrogância – com aquele queixo levantado – tornada grotesca pela desilusão dos seus simpatizantes, ao descobrirem haver razões para o pintar como o pintam os seus arqui-inimigos do “Tea Party” (por diferentes razões). Como um diabrete, cheio de truques e defeitos de carácter.
Se fosse com a selecção nacional de futebol, o homem já se tinha demitido: equipe que falha os seus compromissos e passa a vida a ser derrotada por pingentes menores, como diria o nosso (deles) Manuel Serrão, é melhor ir-se embora para não contaminar tudo o resto à volta. Na guerra imperial, estamos sempre a aprender, todas as derrotas que dão lucro ao único sector lucrativo – o sector bélico – são bem-vindas. Apesar dos incómodos para os militares ocidentais e dos danos colaterais genocidas.
Que importa que o Iraque se tenha tornado não numa democracia mas no berço do Estado Islâmico armado com formação e material de guerra norte-americanos? Não foi o mesmo que já tinha acontecido antes com a Al Quaeda, organização financiada globalmente pela especulação galopante e pela aliança militar entre os EUA e quem quisesse combater os russos no Afeganistão?
Só os inimigos dos EUA, como a) os torcionários de Abu Grahib que se tornaram realizadores de filmes caseiros de tortura, “selfies” da perversidade generalizada;[1] b) o soldado Manning ou o espião Snowden, enojados com os crimes de guerra e de espionagem organizados ao mais alto nível; c) os relatores do relatório que fez com que o Presidente que foi incapaz de fechar Guantanamo tivesse que reconhecer que algumas das torturas realizadas por agentes do estado norte-americano são justamente chamadas tortura; só este tipo de gente terá coragem para pensar que pode haver alguma coisa a correr mal pelos lados do Império.
Os negócios da guerra, do encarceramento, da tortura e das penas de morte são dos raros sectores de bens transacionáveis (sim, mesmo as prisões podem ser exportadas para qualquer parte do mundo) disponíveis para alavancar (não é assim que se diz?) o crescimento económico, sem o qual os pobres (coitados; infelizmente ninguém sabe o que fazer por eles) continuarão a ser o sector não transacionável em maior crescimento. Como dizia o presidente que lançou o excesso de tortura, que agora foi denunciado pelo seu sucessor, há que fazer a guerra tão longe quanto possível. Aparentemente tinha razão.
O ar mais simpático do seu sucessor não o impede de continuar no mesmo programa de animação da economia: a) pressionar os preços da energia fóssil para baixo; b) assegurar a fidelização à sua moeda dos países com potencialidade de fornecimento global; c) pagar as despesas com os lucros e subornos dos bombardeamentos sobre populações civis e armas com fartura para todas as guerras civis.
Sem surpresa, o milagre não está a acontecer: mais do mesmo sobre a crise declarada não faz outra coisa que não seja espalhar a crise como uma doença infecciosa.[2] A corrupção, por exemplo, custou, desde Janeiro até ao meio do Verão de 2014, 100 dólares/ano a cada pessoa, crianças, idosos, desempregados, pessoas que estão a morrer à fome ou à sede, antes de impostos.[3] O desígnio do milénio de reduzir a pobreza traduziu-se, na prática, no seu aumento estruturado e estrutural.
Quando o império cair definitivamente há-de haver almas caridosas a escrever as nossas memórias de modo a que, daqui a uns séculos, quando uma nova Idade Média acabar com os ideários de posse da Terra para a destruir, a ideia de império volte a ressurgir, quiçá sob a forma de Cruzadas ou Guerra Santa.
Pensando melhor, poderá muito bem ser o próprio império, reconhecendo o seu próprio estertor – mais do que ninguém – esteja, ao mesmo tempo que abandona o trem em movimento suicidário para o descalabro, a escrever uma história conveniente: não foi Washington, o Pentágono nem o Banco, perdão, Reserva Federal e seus aliados que organizaram a destruição do império, como um menino mimado que perdeu ao monopólio (porque já não há quem aceite jogar com ele) e atira tudo para o chão. Foram seus os inimigos, na verdade amiguinhos de escola habituados a ser rufias e bem pagos para continuarem a sê-lo, quem entrou lá em casa e deitou fogo àquilo que já estava a arder.
Podia ser uma metáfora das teorias da conspiração sobre o que se passou no 11 de Setembro. Mas é uma realidade no terreno. E nem muita propaganda e muitos comentadores papagaios podem impedir que a história verdadeira possa vingar: o império sucumbiu asfixiado no seu próprio vómito, pois o volume do estomago não lhe permitiu bolsar para o lado o tampão do seu sistema respiratório.
Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Fotos: Pesquisa Google
01out14
[1] A tortura dos norte-americanos no Iraque é igual à que se faz nas cadeias norte-americanas Robert Perkinson (2004) “Some US prisons as bad as Abu Ghraib” em Straits Times Interactive <http://straitstimes.asia1.com.sg> by perk@hawaii.edu.
[2] Blog: Rumores da Crise, Post: O crédito, as bolhas e a crise do capitalismo
Link: http://rumoresdacrise.blogspot.com/2014/09/o-credito-as-bolhas-e-crise-do.html
[3] “Trillion Dollar Scandal”; http://www.one.org/scandal/en/


