Ana Costa de Almeida
François Louis Ganshof, medievalista e tido como um dos mais reputados especialistas no sistema ou regime feudal, alude, na sua obra “Que é o feudalismo?”, a uma fórmula para redacção de documentos oficiais, inserta num repertório proveniente de Tours (Formulae Turonenses), de tão elucidativa que a respectiva narrativa era, e é, de como um homem livre se colocava sob a dependência, a autoridade e o poder de um outro, mediante o acto jurídico da “recomendação” (ou commendatio). Fórmula, aquela, datada do segundo quartel do século VIII, ainda que o autor considere que, pela forma e pelo fundo, possa remontar a época muito mais antiga.
Evidenciando em que assentavam e como se constituíam as relações feudovassálicas, transcreve-se daquele modelo de documento ou “diploma” através do qual alguém se submetia, até à sua morte, ao domínio de outrem que: “(…) Dado que é inteiramente conhecido de todos que eu não tenho com que me sustentar nem com que me vestir, solicitei à vossa piedade – e a vossa vontade concedeu-mo – poder entregar-me ou recomendar-me na vossa maimbour; o que fiz: pelo que, deste modo, devereis vós ajudar-me e auxiliar-me tanto quanto ao sustento como quanto ao vestir, na medida em que eu puder servir-vos e merecer-vos. E enquanto eu viver vos deverei servir e respeitar como o pode fazer um homem livre e em todo o tempo em que viver não terei poder para me subtrair ao vosso poder ou maimbour; mas, pelo contrário, deverei ficar todos os dias da minha vida sob o vosso poder ou protecção.(…)”.
Como refere Ganshof, “É um contrato-quadro que se ajustava a situações muito diferentes. Na fórmula de Tours a natureza do servitium requerido ao recomendado não se encontra definida; pode ser doméstico, económico, de natureza militar ou tudo simultaneamente. Podem recomendar-se pessoas livres, qualquer que seja a sua condição social; a narrativo da fórmula de Tours põe-nos perante um infeliz que não tem com que se vestir nem que comer: é evidentemente o caso mais vulgar, o id quod plerumque fit”.
Ainda que numa liberdade claramente condicionada pela necessidade, como sobressai na concreta fórmula também aqui transcrita de encomendação de uma pessoa ao poder e à autoridade de outrem, um vassalo (dito, então, homem livre dependente) exprimia a sua vontade ao submeter-se a quem era, comparativamente e face à sua situação, mais privilegiado, sem que o seu “senhor” tivesse que ser abastado. Numa sociedade hierarquizada, com o monarca no topo, seguindo-se os vassalos régios, outros havia que, na base da pirâmide ou desta se aproximando, se submetiam a alguém que até pouco mais tivesse, face à situação de maior carência ou mesmo de miséria em que se encontravam.
Uma das características determinantes do feudalismo como tipo de sociedade era o direito de propriedade sobre a terra, o respectivo parcelamento e as suas formas de exploração através dos lavores na agricultura e na pecuária, fonte de rendimento senhorial (para além de eclesiástico) e a que eram votados aqueles que não tinham outro meio de subsistência, subjugando-se, por isso, aos seus “senhores”.
Em pleno século XXI, ainda há quem explore outrem fazendo uso do trabalho que para si presta na agricultura e na pecuária, sem remuneração e ínfimo respeito por demais direitos e garantias que lhe assistiriam pela prestação do seu trabalho, e, não raro, votando-o, sob o seu jugo, a condições de vida (ou de sobrevivência) indignas, desumanas.
As vítimas daquela conduta, tipificada e punida como crime de tráfico de pessoas, são pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente por força da idade (menoridade), de défices cognitivos e/ou comportamentos aditivos de que padecem, e/ou por não deterem suporte ou apoio familiar, pelo que sendo mais facilmente aliciadas, manipuladas e mantidas sob exploração. E algumas delas servindo os propósitos e os proveitos do traficante, do seu explorador, ao longo de muitos anos (inclusivamente, desde a menoridade), sem que para tanto se tenham disposto, ou sejam sequer capazes de se dispor, de forma livre e esclarecida.
Na senda do que já explanava o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em acórdão de 26 de Julho de 2005, sobre o primeiro caso que lhe foi submetido, por queixa apresentada em 17 de Abril de 2001, sobre o que configuraria (e configurava) já tráfico de seres humanos, para além e a par da atenção que se mostra absolutamente fulcral sobre a especial vulnerabilidade da vítima, o “trabalho forçado” não se reconduz àquele que seja prestado sob a ameaça concreta de um castigo, ou mesmo face a agressões físicas e/ou verbais, merecendo igual consideração o trabalho ou serviço que seja prestado por quem não se tenha disposto voluntariamente para o efeito. O que implica discernimento, capacidade de determinação e de decisão, de forma livre e esclarecida, num contexto e em circunstâncias pautados por “normalidade”.
Mesmo assim, em pleno século XXI, haverá ainda quem possa testemunhar o que representa tráfico de pessoas sem que o percepcione ou compreenda. Pior, como que recuando a tempos outros que nem chegaram a viver de já tão longínquos na História, até poderão alguns ainda entender que a “entrega” de uma pessoa a outrem, ou deixar que este a tome e use em seu proveito, como lhe aprouver e melhor servir, mesmo que ao longo de anos e em condições desumanas, é uma qualquer espécie de bênção para “o desgraçado” que claramente vivencia a servidão, senão mesmo a escravidão.
Felizmente, a esse alheamento grave, mesmo que por ingenuidade, da actualidade e do que é próprio de um Estado de Direito democrático sobrepõem-se já denúncias atentas e esclarecidas de condutas que, para além de consubstanciarem efectivamente a prática de crime(s), logo bem se percebe afrontarem, de forma inadmissível e mesmo desprezível, a dignidade da pessoa humana em que assenta Portugal enquanto República soberana.
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Foto: pesquisa Web
01dez21
Muito obrigada, Caro Senhor Avellino Rosa!
Caro Senhor Avelino Rosa, agradeço muito o interesse e o comentário! Cordiais cumprimentos,
Ana Costa de Almeida
Um ótimo artigo. Obrigado por o partilhar.
Avelino Rosa