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Casa Torre da Lagariça versus “A Ilustre Casa de Ramires”

Lurdes Pereira (*)

Imortalizada por um dos grandes vultos da literatura portuguesa, a “Ilustre Casa de Ramires” antes de ser uma memória escrita, ela foi e ainda é memória física a conjugar o verbo Resistir até ao último sopro. A sua majestosa identidade aguarda a sensibilidade humana para aqui, achar o potencial particular ou coletivo por excelência.

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“Agosto findava: e o demorado estio amarelecera toda a relva, as pastagens famosas do vale (…)”* de S. Cipriano, em Resende.

“Nos começos de Dezembro, com o primeiro número dos «Anais», apareceu a «Torre de D. Ramires». E todos os jornais, mesmo os da oposição, louvaram esse estudo magistral (…)”*

O largo portão da quinta abriu, e os Olhares da Serra registavam, nas suas máquinas, todos os pormenores que, por vários motivos, marinam a eminencia da solidão.

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Longo foi o caminho em direção à casa, apetecida pela curiosidade entre a história e o palco do romance de Eça de Queirós. As avenidas ainda emanam o perfume dos registos religiosos de uma Via-Sacra. Num lugar de descanso, num outro caminho, desagua o largo romântico, recheado de bancos rústicos de pedra meia tosca adensados por uma torre, uma réplica da Torre da Lagariça. O silêncio é ensurdecedor, nada mais nos circunda, apenas silêncio a fazer companhia às folhas do nobre bosque. Um largo majestoso onde as frondosas mimosas namoram as pedras soltas, acariciando-as, às escondidas nos seus fortes abraços.

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“Junto à fonte mourisca, entre os ulmeiros, A cavalgadura pára…”*

Paramos, pois! É de facto um excesso, a arte do homem na pedra esculpida. Cravadas na parede fortificada, três pomposas gárgulas em forma de agulha e pedra talhada jorram uma já sedosa água fresca. O quadro pitoresco pincelou aguadas de frescura da fonte fria a contracenar com a ainda verde vegetação que lhe assalta a testa como frondosas e onduladas franjas.

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Enfim, chegamos à tão merecida meta, à Ilustre Casa e Torre da Lagariça. Os Olhares da Serra hipnotizaram-se de sentimentos descontrolados pelo avolumar de beleza, história e a arte. “A torre, antiquíssima, quadrada e negra, sobre os limoeiros do pomar que em redor cresceram, com uma pouca de hera num cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoura bem cortadas no azul de Junho, robusta sobrevivência do Paço acastelado da falada Honra de Santa Ireneia solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X.”(*)

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O objetivo da fundação da dita Torre terá sido a defesa da linha do Douro na altura da Reconquista. Contudo, após o estabelecimento da fronteira a Norte, esta função Militar terá anulado a importância para a qual havia sido edificada.

Conta a história que a Torre foi pertença da família Pinto, no séc. XVI, sendo vendida novamente em 1610, mantendo-se em família de geração em geração.

Terá sido, então, pelo séc. XVII a adaptação de uma ilustre casa à antiga torre. Uma casa senhorial que perdura no tempo e no espaço mantendo a sua mais fiel identidade. De salientar que, apesar da já inutilidade para a qual fora erigida, nenhuma alteração terá sido oferecida à torre. Continua assim, original, de fenestras fechadas que o estilo faz sobressair das paredes austeras e linhas robustas na sua imponente verticalidade. Apesar dos séculos que as distanciam, todo o conjunto, casa e torre, comunga de uma harmonia coerente entre o curioso medieval e a construção seiscentista.

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“Acordou muito cedo, com a enredada lembrança de um pesadelo em que falara a mortos: – e, sem a preguiça que sempre o amolecia nos colchões, enfiou um roupão, escancarou as vidraças. Que formosa manhã! uma manhã dos fins de Setembro, macia, lustrosa e fina; (…) e o sol já pousava nos arvoredos, nos outeiros distantes, com uma doçura outonal.”**

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As bignónias treparam o gradeamento da faustosa escadaria rumo à capela. Uma espécie de marquise em género de miradouro que lhe dá acesso. Capela ou apenas Oratório. É exígua, mas comunga toda uma singularidade. Já não há flores e as velas já queimaram toda a sua existência. Os frescos não se deixaram inferiorizar pelo sépia nem se intimidaram pelas artes dos aracnídeos. Estão lá, cantam as saudosas missas e orações daquele tempo em que os dissabores se diminuíam nas longas conversas a Deus.

O altar conserva alguns recantos de dourado entre o entalhado branco puro icononizado pela simbologia da “Pomba”. E, a velhinha cadeira da oração espera alguém, que na sua fé, exerça um lírico cântico à capela.

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Noutro terreiro, abre-se a porta envidraçada da sala de jantar. O conjunto de espelhos duplica e mantém vivos os encaixilhados nobres anfitriões do passado. E depois das majestosas arcadas, alguém folheia um álbum de retratos monocromáticos, gravuras e estampas contando a evolução da história daquele momento fugaz. E porque “Nenhuma notícia chegou à Torre – e o fidalgo passou a lenta quinta-feira à janela (…)”**

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Abrem-se as gavetas do romance, abrem-se em fendas por onde se vão escapulindo frases soltas a roçar os indícios numa ponte entre o passado e o romance. Como naquela “doce tarde dos fins de Setembro, Gracinda (…) descansava na varanda da sala de jantar, estendida sobre o canapé de palhinha (…)*

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Ainda nos mobiliários existentes, assalta-nos a figura de “Gonçalo, que durante todo o dia preguiçara, estirado no divã de damasco azul (…)* Saí, ou melhor, “Desceu ao pátio, onde as árvores adensavam a sombra do crepúsculo, carregado de fuscas nuvens. E abria o portão, (…)*

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Perfeito! A natureza no seu estado de maior esplendor. Preencheu-se de cores nobres acariciadas de ilustres verdes embalados numa suave brisa como compete à sempre calorosa estação que serve de apanágio e espelho de um místico lugar.

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Glamoroso, romântico, elegante foi esta tarde na Ilustre Casa e Torre da Lagariça. S. Cipriano é a sua mais fiel morada dentro do concelho de Resende. Terras cavalgadas por D. Egas onde a História, o Romance e Arte se tornaram uma obra singular. Foi aqui, neste excesso de cor e natureza, neste excesso de paz, silêncio e elegância o lugar onde se afirmou a Torre da Lagariça ou melhor, ”A Ilustre Casa de Ramires”, o palco escolhido para um romance de Eça de Queirós. O lugar goza de todas as potencialidades, e uma coisa é certa: Seja qual for o seu papel no futuro vai, certamente, ter um lugar de merecida excelência.

(*) Texto e fotos

(**) In “Ilustre Casa de Ramires”, Eça de Queirós

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4 Comments

  1. Anónimo

    A minha família materna é da “Lagariça”, terra que fica ao “lado” da casa da torre, o meu sogro, quando moço, também foi caseiro da quinta, ou seja, apesar de ser um quase filho da terra, só recentemente, por volta de 2011, tive o privilegio de visitar a casa na companhia de um dos seus herdeiros, o Sr, Luís Cochofel, que gentilmente me fez uma visita guiada e me concedeu “livre transito” para visitar a casa sempre que necessitasse. Na altura estava a tirar o mestrado em arquitetura e como o tema era a “intervenção no património edificado”, desenhei toda a casa com máximo de pormenor possível e, sendo um trabalho académico, propus um novo uso ligado à musica. Mas, de todas as vezes que fui lá, a envolvente, o som da água do ribeiro Cabrum, o percurso até à casa…. é realmente algo que deve ser preservado a apreciado por todos.
    Só quem tem o privilegio de ver e sentir o local é que entende o que se escreve.

  2. Lurdes Gomes

    Olá Marciano Ferreira, obrigada pelo seu depoimento.
    Ainda bem que este artigo lhe assaltou o olhar e a curiosidade. Foi a minha estreia nesta geografia que me fez parar. E se me despertou sentimentos inexplicáveis, imagino a intensidade com que o mesmo o afectou. Apesar do estado, não perdeu identidade, ganhou alma. E um dia terá o seu passado glorioso num presente restaurado.Assim espero eu, e todos nós que temos um olhar sensível sobre o nosso património.

  3. Marciano Ferreira

    Resta-me apenas uma grande saudade da Torre da Lagarica onde passei a minha mocidade, na companhia dos meus pais como caseiros nessa quinta, nesse tempo eram os donos da então conhecida Ilustre Casa de Ramires o casal Álvaro Pinto Coxofel e a Dona Maria Angelica, ainda me lembro de que a pedido do Senhor Coxofel, tantas vezes estive em cima dessa casa reparando o telhado porque lhe chovia dentro de casa,ainda guardo recordações do lindo Jardim junto à referida casa,o tanque das murtas conhecido como o tanque das 4 bicas, o caminho chamado a carreira com a respetiva Via-sacra e fechada por 2 portões chamados Porteira da Cerca e Porteira da Torre sendo a porteira da Cerca ao fundo do povo de Matos e a porteira da Torre junto à famosa Mata a qual se mantinha fechada e os caçadores só podiam lá entrar a convite do Senhorio. Beleza rara digna de ser visitada.

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