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Noiva “malcriada”

José Manuel Tavares Rebelo

 

 

 

Estas gentes do Norte podem trocar os bês pelos vês, podem ter um falar abrutalhado, com uso frequente de palavrões e de frases pouco ortodoxas, mas são gentes com o coração nas mãos e que cultivam a amizade, a solidariedade e a lealdade.

 

 

“Pára lá com o tango, carago!”, dizia uma vendedeira do Bolhão, com cesta de hortaliças à cabeça, ao ver impedida a sua caminhada, no passeio da rua Sá da Bandeira, por um conhecido empresário de S. Miguel, de passagem pelo Porto. Como às vezes acontece, pusera-se a desviar da mulher, ora prá direita, ora prá esquerda, passos dados em simultâneo, numa desastrada dança que fez disparar a frase para o atónito ilhéu.

 

Aqui há anos procurou-me o Manuel Cantor, funcionário auxiliar numa escola de Matosinhos. Nascera no Pico, donde a mãe era natural. O pai, homem do Porto, fora mobilizado como expedicionário nos anos 40, tendo permanecido dois anos no Faial. Saíra da ilha, com os pais, tinha pouco mais de um ano de idade. Considerava-se açoriano com muita honra. Vivia em Pedroso, a poucos quilómetros da cidade Invicta.

“Não sei nada da minha ilha e da família que lá tenho, veja se descobre!”.

Forneceu-me alguns nomes e uma morada. Passados alguns meses, veio uma carta da Horta.

Curiosamente (veja-se como é difícil retirar do imaginário das pessoas o império centralizado na capital), no envelope estava escrito, abaixo do nome do destinatário: Matosinhos – LISBOA.

(Pausa para palmas ao carteiro, que, mesmo assim, entregou a carta à pessoa certa).

 

Era um rol de lágrimas de alegria, notícias represadas por tantos anos, mortes e casamentos, casas destruídas por sismos, idas para a América, vidas sofridas, fotografias e promessas de reencontro. Carta assinada por uma irmã da mãe. Manuel, que escrevia mal, pediu-me para responder. Assim fiz e o contacto foi restabelecido entre familiares desencontrados há que tempos…

 

Cerca de um ano mais tarde, Manuel Cantor e Raquel tiveram mais um filho (já tinham 4). Vieram ter comigo: “O padrinho tem de ser açoriano!”. Claro que aceitamos, eu e minha mulher.

Sebastião foi baptizado no Mosteiro de Leça do Balio.

A relação tem-se mantido durante todos estes anos.

No passado mês de Janeiro telefona o afilhado. Ia casar e queria que fôssemos padrinhos de casamento.

O nosso afilhado, trabalhador de construção civil, ia casar com Vanessa, jovem operária numa empresa têxtil. Foi marcada a data. Numa manhã de Sábado primaveril, estávamos, eu à porta da noiva, na freguesia de Olival, minha mulher à porta do noivo, em Perafita, cada um de nós encarregados de transportar os noivos para a igreja onde se realizaria o casamento.

 

Estaciono. Vanessa aparece bonita, branca, brilhante. Entra e senta-se atrás, a menina das alianças, pequena duns 5 anos, senta-se ao meu lado, a chorar como uma desalmada. Não queria levar as alianças, queria era ir brincar com os primos. E berrava portentosamente.

Com receio que a miúda se atirasse do carro abaixo, chamo a mãe, mulher polícia com ar perfeitamente normal.

A mãe aproxima-se e mete a cabeça pela janela do carro: “Ou levas as alianças ou levas nas trombas!”. A menina cala-se de imediato e dali a pouco está a rir.

Enquanto isso, as amigas enfeitam o carro com fitas e flores. Colocam uma grande coroa de flores em cima do capot (“nove contos, padrinho!”) e eu a pensar: “como vou ver o caminho com este ramalhal à frente?”.

Já vou terminar, mas aviso desde já que, não havendo por aqui “pis” como na tv, seria melhor que as pessoas mais sensíveis parassem a leitura agora.

Depois não digam que não avisei!

Uma coisa: a florista não tinha informado que era preciso fixar o ramo ao capot com umas ventosas de borracha que lá existiam…

 

Começa o cortejo a avançar em direcção à igreja. Atrás de nós ia um primo da noiva chamado Joaquim que era guarda republicano (talvez tentado a observar se os meus pneus estavam carecas mas não o conseguindo porque, logo de manhãzinha, bebera uns copitos de vinho americano em casa da noiva e já não enxergava bem).

 

Como ia dizendo, o cortejo de carros avança com as buzinadelas do costume (menos a minha), inicia-se uma descida, o carro ganha mais velocidade e às tantas o ramo, mal seguro, solta-se, raspa no vidro, passa rastejante pela capota, pula para o asfalto e é estraçalhado por completo pelas rodas do carro que nos seguia, tudo isto numa fracção de segundos.

 

Observo a cara da noiva pelo espelho retrovisor. Segue o trajecto do ramo com aflição, coradíssima. E da sua boca mimosa saem as seguintes palavras: “Porra, padrinho, o Joaquim fodeu-me o ramo!”.

 

Nota – Nesta crónica descrevo factos verídicos, conquanto tenha trocado nomes, lugares e datas.

 

 

 

(01jun12)

 

 

Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a ortografia tradicional portuguesa.

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