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A verdadeira guerra vem depois…

Luís Reina

 

  Área da Antiga Ponte da Cidade Antiga de Mostar

(Bósnia e Herzegóvina, junho, 07 – 2007)

 

O cheiro a pólvora está impregnado nas ruínas em que se encontram os seus belos imóveis neoclássicos e otomanos. O sabor da fome relembra-nos tempos de guerra. Tempos difíceis, numa Europa onde sempre tudo começou. Um povo que hoje não vive, sobrevive. Um povo de crianças, mulheres e velhos que tudo perderam. Um povo que ainda hoje chora os seus mortos. Um povo onde no seu olhar transparece os horrores vividos e sofridos numa guerra que não era a sua. Guerra que acabou, mas que não findou.

Mostar.

O seu nome advém de “Mostarique significa Fortificação. Capital cultural, económica e política da Herzegóvina. Fica situada no belo vale de Mostar e encontra-se dividida pelas águas esmeralda do rio Neretva.

A unir as duas margens o seu mais emblemático monumento – a Ponte Velha com as suas Torres em cada um dos seus extremos. Exemplarmente reconstruída, não pela UNESCO (na altura empenhada na reconstrução de Dubrovnik, na vizinha Croácia), mas pela Turquia.

 

mostar - diaro bordo - foto 1 - 01jul13

Cidade de encruzilhadas entre ocidente e oriente, que caiou de pacífico branco as suas casas. Pese ainda o facto, das marcas do sofrimento ainda serem visíveis, em Mostar respira-se finalmente paz. Apesar do céu azul se encontrar coberto de novelos brancos de algodão, o calor era intenso. A visita à cidade é feita com um guia local, um modo humanitário de as pessoas contribuírem na sua reconstrução.

A alva Mesquita Hadzi-Kurt’s, ou seja a Mesquita dos Curtidores, não fosse o seu minarete de 20 metros de altura, pareceria uma residência. Uma das suas curiosidades é a sua fonte de abluções; nada mais, nada menos do que a ribeira Radobolja que atravessa o seu interior.

 

mostar - diario de bordo - foto 2 - 01jul13

Um dos pontos altos das visitas a esta cidade é a Casa Kaijtaz, casa dos finais do século XVI, expoente máximo da arquitectura civil otomana e hoje transformada no Museu Etnográfico. Do alto das suas varandas de madeira, a vista é de tirar o fôlego.

 

mostar- diario de bordo - foto 3 - 01jul13

Mas é junto à Velha Ponte que as emoções florescem. Recordações de séculos de prosperidade, iniciados no século XVI, que terminaram abruptamente em amargas lágrimas de sabor bélico no século XX, e uma brilhante e esperançosa reconstrução no século XXI. Com um arco em quarto crescente de 28,70 metros, dista 21 metros das rápidas águas que descem do alto das montanhas que circundam a cidade. Agora a atracção principal são os acrobáticos saltos para a água, executados por exímios saltadores.

Liberto e por minha conta, vagarosamente, vagueio pelas estreitas ruas da martirizada cidade velha. As ruas estão vazias, nem locais nem turistas nesta área da cidade. Um homem está sentado num banco de pedra, junto à entrada de uma porta de madeira maciça fumando silenciosamente um cigarro.

É turco e convida-me para entrar. É o recepcionista, o empregado e curador do Museu da Herzegóvina. A lindíssima casa turca encontra-se extraordinariamente bem recuperada, o que não se pode dizer do escasso espólio, danificado, delapidado e roubado por motivo da guerra. Nem bilhetes têm. É mais um contributo para a reconstrução da cidade. O mais impressionante é o pequeno filme sobre a guerra travada nesta cidade, filmado por um jornalista que na altura é atingido terminando o documentário bélico com o rubro sangue espalhado pela objectiva da sua máquina. Chocante. Uma imagem que não dá para se esquecer.

Preciso de paz, pelo que entro na Mesquita Nesuh-aga Vucjakovic’s – a Mesquita por Baixo do Limoeiro, lugar com cheiro cítrico e de uma tranquilidade impressionante. Encontra-se fechada, mas é um balsamo depois do filme visto minutos antes.

mostar- diario de bordo- foto 4 - 01jul13

Prossigo as minhas visitas de máquina fotográfica ao pescoço e entro na Torre Tara hoje Museu da Ponte. Um quase inexistente espólio arqueológico, contudo com uma apresentação de autoria italiana, bem elucidativa. Comprei o livro e como não havia dinheiro para me dar o troco, doei-o à cidade. Nunca vi ninguém tão feliz como a empregada que me atendeu. As óptimas vistas para a Ponte Velha valem bem o esforço da subida. Terminada a mesma decido ir comer.

Sou abordado por uma criança que pede uma moeda. Quando me preparo para abrir o porta-moedas, vejo-me rodeado por uma pequena multidão de olhares traquinos e sorridentes, à espera de algo que lhes vá matar a fome. As lágrimas correm-me pela cara e fujo a sete pés para bem longe sem ter estômago para nada comer.

A verdadeira guerra vem sempre depois.

 

 

Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

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18 Comments

  1. Anónimo

    Bom dia Armindo. Agradeço as suas palavras e nunca é tarde para se ler. Em relação ao espectaculo do Fernando Pessoa espero que tenha corrido bem e já sabe conte comigo, vou ver se consigo arranjar algo para virem ao Porto.
    Abraço.

    PS: aguardo o video

  2. Armindo Cerqueira

    Caro Luìs
    Gostei imenso. Belo texto, com alma pujante de humanidade. Manifesto-me um pouco tarde porque tive que me transformar em Fernando Pessoa, num espectáculo de música e poesia (dele), por mim encenado e levado à cena em 13 deste mês. Se o puder vender para a zona do Porto… Um dia destes envio-te amostras em vídeo.

    Abraço

    Armindo

  3. Elvira

    Olá Luis, obrigado por mais um comentário fantástico. A tua paixão pelas viagens e pela escrita, deliciam-me. Assim, vou sonhando e viajando em pensamento.
    Fica bem,
    Beijinhos,continua.

  4. Anónimo

    Obrigado Charles, espero que continue acompanhando estas minhas viagens, pelas imagens e pelas palavras.
    Abraço

  5. Charles Mcgregor

    Muito bom. Alem de informativo e didactico, continua a dar para viajar…lendo.
    Boas e interessantes, as fotos que complementam.
    Parabens a “dobrar”: para o escritor e para o fotografo

  6. Manuela de casro

    Olá Luis!
    Parabéns, Sempre! As tuas palavras transportam nos….por momentos sentimo nos no local….é incrivel!… O belo (culto do mesmo) existe em ti!… Forte abraço
    Manuela de Casro

  7. Teresa Baptista

    Olá Luis, mais uma grande viagem, cheia de emoções e com os sentimentos sempre à flor da pele. Acredita que só pela descrição dá vontade de marcar uma ida até essas paragens e passar por lá uns tempos.
    Vai-nos deliciando com as tuas descrições que nós vamos tirando partido delas e sonhando com a possibilidade de uma visita, mesmo que tardia.
    Beijinhos, obrigada e continua.
    Teresa

  8. Anónimo

    Obrigado Paulinha pelo teu agrado, nesta primeira incursão na minha nova arte que é a escrita.
    Espero que continues como leitora dos meus textos.
    Bjinhos.

  9. Anónimo

    Obrigado meu amigo Pereira Lopes.

    Quem sabe irmos lá expor. O futuro só Deus sabe. Por isso pode ser que vás conhecer in loco esta cidade maravilhosa de um verde fora do comum.
    Abraço

  10. Anónimo

    Obrigado Manuel.
    Tens razão mas cabe-nos a nós destruir esses senhores da guerra, quanto mais não seja através dos relatos e imagens como este.
    Abraço.

  11. Paula Mendes

    Deixei-me levar pela tua viagem e pela forma como sentidamente descreves os lugares, as pessoas, as coisas!
    Parabéns!!!
    Bjs

  12. MANUEL RIBEIRO

    Maravilhosa a forma como conseguimos viajar e sentir sem termos saído do sitio com a discrição feita.
    Pena é que o mundo seja comandado pelos senhores da guerra que continuam a matar os sonhos de todos nós e daqueles que nem direito a serem crianças podem.
    O Mundo tem que mudar urgentemente…

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