Tribuna Livre
O livro “Segredos das Prisões” apresenta um processo-crime contra denúncias sobre o que se passa nas prisões portuguesas. Ao decidir usar a liberdade de investigação, de sociólogo e universitário, para desvendar o mundo das prisões, como tributo à luta desigual dos que a partir das prisões reclamam justiça – sem que as instituições e o público queiram ouvi-los, como se não fossem humanos – confrontei-me, naturalmente, com os limites da liberdade na nossa sociedade.

De nada serve gostar ou não gostar do que fiquei a saber. O principal é que a transmissão dalgum saber que possa construir não é apenas incómodo a quem ouça. É incompreensível. As pessoas, incluindo as mais qualificadas que profissionalmente lidam com os presos, simplesmente desconsideram o que sabem existir, usando desculpas simples, contraditórias mas realistas: “alguma coisa terão feito para estarem presos”; “a pessoas sérias isso não acontece”; “são uns mentirosos”; “instrumentalizam os sentimentos das pessoas para obterem os efeitos que querem”.
Referem-se exclusivamente aos presos, como se não fossemos todos igualmente humanos, igualmente interesseiros, igualmente racionais, isto é, avaliamos os meios mais à mão para atingirmos os nossos fins (sobretudo se forem tão urgentes como a liberdade). Como se fosse justo alguns de entre nós, os despossuídos, estarem muito mais sujeitos aos escrutínio policial e criminal. E os mais influentes acima da lei. Como se não houvesse prisões de primeira e de segunda. Como se o crime não dominasse o meio prisional.
Só um rebate cultural muito forte, como uma mudança de regime político, poderá chamar a atenção das pessoas para o que se passa nas prisões. Não é só as torturas do regime ditatorial de todos conhecidas.
Sabe-se e não se contesta que existiram. Há livros e pessoas a descrevê-las, para quem as quiser ouvir. Mas sobre as torturas que se passam atualmente? Porque as suas vítimas não aparecem a descrevê-las em público? E em vez disso as calam? Como faz o público, quando casualmente alguma notícia é exposta e rapidamente esquecida?
O relatório saído em 2013 do Comité de Prevenção da Tortura do Conselho da Europa diz que dos processos que fiscalizou, praticamente todos estavam desertos de qualquer esforço de investigação criminal. É verdade que, segundo a cultura do antigo regime, infelizmente ainda muito usada, o maior problema dos serviços públicos é precisamente a existência de público. Isto é, a existência de razões para servir, a existência de pessoas fora do serviço e a exigência de responsabilidades profissionais e públicas dos funcionários.
Ninguém, pelos vistos incluindo magistrados, quer assumir a responsabilidade da luta contra os abusos de poder. Segundo uma cultura muito comum nos serviços de segurança, conhecedora do traço cultural mencionado acima e da sua preservação nos meios judiciais, a dispersão das responsabilidades próprias pode ser feita acusando de crime o público interveniente na ocasião da falha grave às respetivas responsabilidades. “To blame the victim”, como dizem os ingleses, acusar a vítima é não apenas uma tendência do espírito humano, para denegrir os “outros” em favor dos “nossos”. É também uma estratégia de discriminação social, do género daquela anedota que se conta sobre o modo de organização à portuguesa: sete chefes dentre de uma piroga discutem entre si porque razão a piroga não anda à velocidade desejada. Depois de algum estudo, culpam o único remador pelo facto de não se sentir suficientemente motivado para remar.
A chefia do serviço, com o mesmo sentido de responsabilidade próprio deste caldo de cultura, evita explicitar – não vá tornar-se pública – a verdadeira razão das respetivas decisões. Na linguagem das prisões, as transferências de guardas, funcionários, diretores, presos, podem ser promoções ou castigos. Cada um que interprete como quiser. O fundamental é que não fique escrito nada sobre as razões ou os critérios usados para formar tais decisões.
E quando alguma coisa tenha de ficar registado, que ninguém pense em debruçar-se sobre a coerência e o sentido. Pode ficar surpreendido, como José Preto em “Estado Contra Direito”, Lisboa, Argusnauta, 2010.
“Segredos das Prisões” é um livro de divulgação científica, baseado na investigação-ação de 17 anos a partir da posição de ativistas dos direitos humanos. Centra-se na defesa da liberdade de expressão, como direito e como processo social de enfrentar e superar os segredos sociais e os segredos institucionais. Essa é uma condição para a construção de um convívio democrático.
O livro procura traduzir para a linguagem corrente a noção de segredo social e traduz, de forma fidedigna, as questões legais suscitadas na prática pelo exercício da liberdade, indispensável ao trabalho científico (e ao ativismo).
Três anos e três editoras depois de finalizado, o livro está disponível para o público. Com os protestos (em privado) das corporações do setor. O segredo também impera para este efeito”.
António Pedro Dores – sociólogo e prof. Universitário (Lisboa)
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