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A Sorte bateu-me à porta!

António D. Lima / Tribuna Livre

Muitas vezes, os traumas a que estamos sujeitos, leva-nos a que esqueçamos partes importantes da nossa vida. Comigo também aconteceu ter sofrido um trauma que está na origem do esquecimento de alguns retalhos da minha vida, num passado recente.

Não me lembro do dia, mês ou ano. Eu, deveria ter talvez, (este é um dos meus lapsos de memória) uns sete meses. Os meus donos, colocaram-me dentro do carro, pensei que ia-mos dar um passeio como algumas vezes o fizeram, abanei a cauda de contente. Nem por ser noite suspeitei de alguma anormalidade, ainda andamos um bom bocado, ao passarmos junto de uma bomba de gasolina pararam o carro, atiraram comigo para a rua e, arrancaram a alta velocidade.

caes abandonados 01

Como ainda era muito nova, não tomei consciência do que me acabara de acontecer, algum tempo depois e muito lentamente, foi ganhando forma a ideia de que tinha sido abandonada, mas, ao mesmo tempo, era uma ideia que eu não queria acreditar, ser abandonada? Não, não era possível, naturalmente os meus donos foram a algum lado e, como eu não podia ir, deixaram-me ali, naquele local que era abrigado do frio e da chuva e cheio de movimento de humanos, por isso, estava segura. Mais tarde viriam apanhar-me, pensei.

O tempo ia passando, as minhas preocupações começaram a abalar o meu sentimento de esperança. O regresso dos meus donos ia-se diluindo. Fiquei ali, parada no tempo, sem saber para onde ir, nem o que fazer, não conhecia o caminho de casa, não sabia se morava longe ou perto, nem tão pouco, me lembrava do meu nome. E agora o que vou fazer? Interroguei-me, vou esperar, pensei.

Já começava a sentir frio, procurei um local onde me pudesse deitar, assim fiz, deitei-me e enrosquei-me sobre mim mesmo, aproveitando o calor do meu corpo, aquecia a esperança de que tudo não passava de um pesadelo. A esperança que tanto queria acreditar, começou a arrefecer, tal como o meu corpo também arrefecia.

cadelas de caca 01

Convenci-me definitivamente que eu era mais um animal que iria fazer parte da longa lista negra das estatísticas dos animais abandonados. Iria deambular pelas ruas, sem rumo, lutar pela minha sobrevivência com os outros cães, sofrer os maus tratos dos humanos.

De fome não deveria morrer, já que, diziam, eu ser uma cadela de caça, por isso, deveria com o meu faro, arranjar sempre qualquer coisa para comer. Na verdade, diziam! Mas seria? Então porque me abandonaram?

Questionei-me:-Será que as minhas características como caçadora não eram suficientes? Estava com estes pensamentos, de olhos fechados, mas pressenti o aproximar de alguém, abri um olho, vi que se aproximavam de mim dois humanos, um homem e uma mulher, ainda novos. O homem ficou de pé, a mulher abaixou-se e estendeu a mão na minha direção.

Eu estava com frio, mas com mais frio fiquei quando a vi a estender a mão na minha direção, conheço muito bem este gesto, este gesto, foi repetido por mais do que uma vez pelos meus donos, era o gesto de bater, eu pensei, pronto, vai começar o meu martírio, mas não, foi um gesto que não conhecia, foi um gesto de carinho, de afago, fui acariciada com meiguice, a mulher disse:

– Ó pequerrucha o que estas aqui a fazer? Foste abandonada? És tão bonita, coitadinha!

– A mulher olhou para o homem que estava de pé, perguntou.

-Ò Rui, é bonita não é?!

-É! – respondeu o Rui. – Olha que deve ser de caça, é esguia e tem as orelhas em bico.

-Levamo-la?

As minhas orelhas arrebitaram, logo me coloquei de pé, fui invadida por uma ligeira esperança, a minha cauda abanava para todos os lados.

– Por mim tudo bem, se a queres trazer trá-la, disse o Rui. – A mulher pegou em mim, afagou-me dizendo. – Estás tão magrinha pequerrucha. – No imediato fez uma espécie de revista ao meu corpo e seguidamente comentou.

-Rui, parece que não tem parasitas mas, é melhor leva-la ao médico para ser vista, que dizes?

-Acho que sim Paula, pelo menos ficamos a saber se a pudemos levar para casa, lembra-te que temos lá a Gaia. – Foi através deste diálogo, que fiquei a saber o nome destes benfeitores, ela era a Paula, ele era o Rui.

caes ao colo

A Paula comigo no colo e o Rui, caminharam na direção de um carro, entraram, ela estava sempre a acariciar-me, ao mesmo tempo ia-me falando. Neste momento nem ouvia o que a Paula dizia de tão envolvida que estava com os meus pensamentos.

De todos estes pensamentos, havia um que me estimulava e, ao mesmo tempo, deixava-me agoniada. Era a incerteza se na verdade eu iria ter novos donos. Pelas carícias e mimos que estava a receber, sentia-me a cadela mais feliz do mundo, queria muito que ficassem comigo, mas….

– Chegamos, – disse o Rui, quebrando assim o meu pensamento. Não sei porquê mas, tive uma vontade enorme de beijar a Paula, era como se estivesse a implorar que ficasse comigo, no entanto, a decisão iria ser do médico. Não sabia o que era um médico, os meus donos nunca foram comigo a nenhum.

Um homem vestido com uma bata branca, perguntou. – Então o que se passa? – A Paula disse-lhe que eu tinha sido abandonada e queria saber se estava tudo bem comigo.

O homem vestido de branco, o tal médico, pegou em mim, virou-me, revirou-me, abriu a minha boca, viu os meus dentes, fez-me uma infinidade de coisas que eu já nem sei o que ele me fez, de tantas voltas que me deu. Recordo, isso sim de ele dizer à Paula.

– Esta tudo bem com a cachorra, o que ela precisa é de comer.

– A Paula e o Rui voltaram a pegar em mim, saímos daquela casa, voltamos ao carro e seguimos para casa deles.

Chegados a casa, a primeira coisa que fizeram foi darem-me banho, nunca tinha tomado nenhum, para ser franca não gostei lá muito, até pensei, foi para isto que eles me trouxeram? Receei que ia voltar a ter tormentos.

Depois do banho secaram-me com uma toalha, na verdade senti-me como nunca me tinha sentido, mais confortável, como não tenho outra forma de agradecer, comecei a abanar a cauda, atirava-me para a Paula, lambia-lhe o rosto, depois atirava-me para o Rui também lhe lambia o rosto. Neste momento fiquei com a certeza de ter encontrado, para felicidade minha, um novo lar. Deram-me uma comida muito boa, nunca tinha comido nada assim, o que eu comia eram restos.

carinho a caes

Este início de uma nova vida não foi muito fácil. A Gaia era uma cadela como eu, também tinha sido abandonada e, foi igualmente recolhida pela Paula. Eu compreendo-a, se calhar eu também não gostaria que alguém invadisse os meus domínios, o meu espaço, nem que fosse comer ao meu prato e beber na minha tigela.

A Paula e o Rui, ambos têm uma personalidade muito forte, ralharam à Gaia e disseram que, a partir daquele momento éramos irmãs e, como tal, tínhamos que nos dar bem porque íamos todos viver debaixo do mesmo teto.

O meu pai Rui, admiram-se de eu dizer o meu pai! Eu agora tenho uma família que é constituída por o meu pai Rui, minha mãe Paula, minha irmã Gaia. Damo-nos bem, de todos talvez eu seja a mais orgulhosa e ciumenta, tenho um feitio muito personalizado, julgo que estes meus amuos ainda fazem parte do medo de voltar a ser abandonada. Creio que com o tempo e, a incerteza passar a certeza, isto passa. No caso de não passar, a Paula dar-me-á um raspanete que até fico zonza e, coloco de imediato a cauda entre as pernas em sinal de submissão, mas… não me livro de ficar de castigo.

Eu e a minha irmã, vamos muitas vezes para a cama dos meus pais brincar com eles.

Adorava que não acontecesse casos como o meu, como o da Gaia, e como de muitos e muitos outros animais que são abandonados e, não têm a sorte que nós tivemos.

Não é só no meu mundo que há muitos maus exemplos. No mundo dos humanos também há muitos e muitos maus exemplos. Tomara que todos eles acabassem.

Para terminar esta minha história de vida, falta dizer que fui rebatizada.

 

Fotos: Pesquisa Google

01-fev-14

 

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