José Manuel Tavares Rebelo
Segundo Mário Mesquita, Cristóvão de Aguiar é um dos principais responsáveis pela afirmação cultural dos Açores após o 25 de Abril. Da sua vasta obra, destaca-se a trilogia “Raiz Comovida” (Prémio Ricardo Malheiros) e a crónica diarística “Relação de Bordo” (Grande Prémio de Literatura Biográfica da APE/CMP). É duas vezes vencedor do Prémio Literário Miguel Torga, com “Trasfega” (2003) e “Tabuada do Tempo” (2006). Em 2001 foi agraciado pelo Presidente da República com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique.

“Cães Letrados” é o seu último livro para o qual tive o privilégio de ser convidado a fazer a apresentação na Fnac de Matosinhos (2008).
Afirma o escritor na Nota Prévia que “os textos que compõem este livrinho….foram extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros (seus) onde essas histórias sobre cães e cadelas se encontram…”.
A primeira vez que me falou do título – Cães Letrados – pensei para mim “ou ele está a chamar “cães” a um grupo de pessoas letradas (o que, conforme o ângulo de visão, tanto poderia ser um insulto como poderia ser um elogio) ou estará a por em letra de forma histórias sobre os fiéis amigos do homem.
Iniciando a sua leitura logo constatei que a efabulação tecida pelo autor nos 19 contos sobre “a canidade”, isto é, a qualidade de ser cão equiparada a “humanidade”, a qualidade de ser homem, continha em si os ingredientes necessários para levar o leitor ao prazer duma leitura amena e divertida, intercalada com uma observação do quotidiano em que a personagem cão desempenha diversos papéis demonstrativos duma grande sensibilidade social.
Estes cães e cadelas têm sentimentos, amores (nunca ódios), almas e olhares de gente e, tal como tantos da espécie humana, são bem ou mal tratados, bem amados ou desprezados. Quase todos rafeiros, neles encontramos dignidade e nobreza de carácter.
Nas 19 histórias/crónicas ou o que se lhe queira chamar, como em toda a obra do escritor, a Ilha está muitas vezes presente porque, mesmo longe, vai nela peregrinando nos seus pensamentos, quando, por exemplo, refere “a praga bíblica de coelhos por toda a Ilha”, quando a acção tem por cenário “um domingo de arraial de Império do Divino Espírito Santo”, quando recorda o seu pai nas “aventuras de caça por matos, pastagens e grotas da Ilha” ou evoca a comida dos pobres, “o chicharrinho assado na sertã… com pão de milho enqueijado” ou o malvado senhor Agostinho da Glória que “ia empurrando a comida com um bochecho de vinho de cheiro”, enquanto fazia negaças ao seu cão Ligeiro.
O cenário da ilha, no entanto, não é mero figurino para dar um colorido local ao que relata. Na história da cadela Girafa, a mais pungente do livro, Cristóvão de Aguiar relata, com emoção e beleza, as injustiças e desigualdades sociais que eram o quotidiano da ilha por meados do século XX e que obrigaram à emigração de milhares de açorianos para o Novo Mundo. É neste conto que se encontra, a meu ver, um dos mais belos pedaços de escrita, reveladores da sua alma sensível de poeta/escritor: a morte da Girafa (pp. 32/33).
Para além de revelar amizade sem limites aos cães e cadelas que passaram pela sua história de vida, Cristóvão de Aguiar mostra respeito pela terceira idade canina e partilha essa amizade e respeito com outros donos, como aquele José Jacinto a quem morrera o Isquininho, “já com dez anos de canidade, (equivalentes) a cerca de setenta de humanidade”.
Este livro, a que o autor chama “livrinho”, sendo pequeno nas dimensões, é grande para os amantes da boa escrita, em que Cristóvão é mestre, mas é grande igualmente para quem gosta de cães. Por outro lado é notável pela equiparação constante, nas várias histórias, entre o mundo cão, bastas vezes enaltecido e o mundo homem, tantas vezes rebaixado.
Os cães, “povoadores de solidões acumuladas”, no dizer dum velho professor citado na crónica “Cães de Esplanada”, são também motivo de gargalhada nas três crónicas intituladas “Cães Universitários” em que Cristóvão faz uma crítica mordaz, através dos seus amigos de quatro patas, aos costumes e manias dos professores da velha Universidade de Coimbra, onde foi ele mesmo docente até à sua aposentação.
Diz o autor que “Uma Universidade que se preza, seja ela clássica, privada ou nova, não pode dispensar os cães refastelados nos átrios das respectivas faculdades ou nos amplos passeios e largos fronteiros às entradas principais” (p. 100). Mais à frente afirma que “a canzoada universitária absorve as idiossincracias das diferentes faculdades que frequentam”. Mas o seu humor atinge o delírio na Parte 2 desta crónica universitária, quando estabelece a diferença entre “os cães das Letras” (p. 101), “os cães de ambos os sexos da Faculdade de Medicina”(p. 105) e “o cão do futuro” (p. 107), ou seja, aquele “que habita na Faculdade de Ciências e Tecnologia”.
“Os cães das Letras, por exemplo, alguns com direito a coleira e cabeção, exibem, por desfastio, um ar distante e distanciado de intelectual atentamente distraído, afundado, nunca naufragado, em fundos pegos de cogitação.” Num ataque bem humorado à tagarelice catedrática de certos lentes das filologias, nos quais se notam, segundo o autor, “certas reminiscências estruturalistas no ladrar de alto”, Cristóvão de Aguiar transcreve, segundo diz, incautamente, “um arquitexto exemplificativo de certos ladrares linguísticos de alguns cães e cadelas da semiótica…”.
Quanto aos cães da Faculdade de Medicina, é referido “o cão hospitalar de raça pura e o que lá vai apenas para farejar o ambiente, após o que alça a perna, elegante, emite um jacto altivo e assim delimita o seu território”. Pouco depois, é tecida uma crítica mordaz aos banquetes oferecidos pela indústria farmacêutica. Finalmente os cães de Direito, essa raça canina pejada de “mastins que enxameiam os amplos átrios e antecâmaras do poder”. Diz Cristóvão que a canzoada de Direito “possui um ladrar enfático, recheado de parágrafos únicos”.
Mas é quando o autor fala dos cães da Faculdade de Ciências e Tecnologia que parece colocar em paralelo o futuro da canidade e o futuro da humanidade, utilizando um sarcasmo “cherbonilizado”, de acordo com a palavra que usa. Ora reparem: “Segundo tudo leva a crer, esse novíssimo cão vai deixar de ter instinto. O ganir, o morder, as necessidades fisiológicas… serão totalmente informatizados. Eis o cão criado à imagem e semelhança da tecnologia de ponta…”.
Futuro da canidade? Futuro da humanidade? São as interrogações que aqui são deixadas.
Cristóvão de Aguiar, Cães Letrados, Calendário Editora, 2008
01fev14
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