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Eu queria estar na festa, pá!

Pedro Ramajal / Tribuna Livre

 

“Venham leis e homens de balanças

Mandamentos daquém e dalém mundo

Venham ordens decretos e vinganças

Desça em nós o juiz até ao fundo.”

Quantas vezes cantei, com a raiva nos dentes, este poema de Saramago musicado por Manuel Freire, em convívios de associações populares, festas de estudantes, fosse onde fosse que me requisitassem.

“Nos cruzamentos todos da cidade

A luz vermelha brilhe inquisidora

Risquem no chão os dentes da vaidade

E mandem que os lavemos a vassoura.”

E agora, ali estava eu, ainda aturdido com a minha nova vida. Ali estava eu, de blue jeans e blusão vermelho, entre centenas de outros recrutas, uma nota dissonante num mar verde oliva a caminho das salas onde decorreriam os testes psicotécnicos do novo COM.

Chegara ao Calhau dois dias antes, à boleia do meu amigo Toneca no seu Datsun Tri S 1600 GT. Nunca um carro tão veloz andou tão devagar. A pressa era nenhuma, atrasámos o mais que pudemos, demorámos a tarde toda a fazer o percurso Mealhada/ Mafra e quando chegámos ao nosso destino, já noite, tivemos de bater. As portas da guerra, como na rábula de Raul Solnado, já estavam fechadas.

O Calhau. Assim chamavam os cadetes ao convento de Mafra, na altura quartel onde funcionava a Escola Prática de Infantaria e o Curso de Oficiais Milicianos.

“A quantas mãos existam peçam dedos

Para sujar nas fichas dos arquivos

Não respeitem mistérios nem segredos

Que é natural os homens serem esquivos.”

Aquela manhã de Abril, o meu segundo dia de tropa, começou com testes psicotécnicos. E foi já sentado que me chegou a notícia. O Asp. Of. Mil. que distribuía o enunciado ia dizendo enquanto passava pelas coxias, alto e bom som: viva a democracia! E a minha cabeça começou a acelerar, as ideias em torvelinho, ou o gajo é doido ou algo aconteceu. Desde a intentona das Caldas que eu, como tantos outros politicamente mais informados, sabíamos que qualquer coisa estava para acontecer. O regime devia estar por um fio. Havia dúvidas era para que o lado iria tombar, constava que o Kaúlza preparava qualquer coisa.

“Ponham livros de ponto em toda a parte

Relógios a marcar a hora exacta

Não respeitem nem queiram outra arte

Que a prosa do registo o verso acta.”

Quando o aspirante chegou ao meu alcance, sustive-o pela manga. Que se passa, e a resposta veio pronta, o Marcelo já era, agora quem manda é o Spínola. A cabeça a andar à roda, a ter de responder ao teste e, ao mesmo tempo, digerir a informação que acabara de obter. Na noite anterior, um cabo miliciano da minha companhia tinha prevenido os homens do seu pelotão, se ouvirem movimento de viaturas, não se preocupem, é que vamos fazer uma operação stop. Stop ao regime, então seria isso? Teria chegado o dia porque eu ansiava, seria este o dia que eu tantas vezes tinha cantado?

“Mas quando nos julgarem bem seguros

Cercados de bastões e fortalezas

Hão-de ruir com estrondo os altos muros

E chegará o dia das surpresas.”

Findo o teste, ao regressar à parada deparo-me com magotes de cadetes, ouvindo nos transístores os primeiros comunicados, aqui posto de comando das forças armadas. E percebi de que lado soprava o vento quando ouvi o Zeca. Grândola, vila morena, o povo é quem mais ordena. Não, o Kaúlza, nunca escolheria tal senha.

Sim, tinha chegado o dia das surpresas. A festa da revolução. E eu ali encerrado, num quartel de prevenção, de blusão vermelho num mar de verde tropa. De mãos atadas, longe da festa, no dia mais feliz da minha vida.

 

01abr14

 

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1 Comment

  1. Lourdes dos Anjos

    Parabéns meu amigo pela forma magistral como casou poesia de Saramago e a sua prosa de raiva e nevoeiro…a minha geração esqueceu-se de dizer aos filhos a preço da liberdade e caímos todos na libertinagem de uns “escolhidos” , “iluminados” e vendidos ao poder fianceiro.E ontem, num abril longínquo, fomos um povo com direito ao sonho!

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