António Dores
A liberdade e a democracia continuam a ser valores caros em Portugal. Mas são evidentes as ameaças que pairam no horizonte. Freitas do Amaral foi o primeiro, a propósito do comportamento do Bush, a relembrar os espectros do nazismo. Mário Soares passou das declarações de simpatia por Passos Coelho para arrancar cabelos em público e avisar dos perigos da situação europeia. Serão meros marretas, como querem fazer as práticas banalizadas na comunicação social?
Não é provável que se repita o nazismo. Pode ocorrer uma guerra nuclear. Parece mais tranquilizador? Onde está o projecto de paz que sustentaria a integração europeia? Na verdade, onde pára a integração europeia? Os riscos da situação não são evidentes e palpáveis? Não são confirmados pelas notícias, por muito tendenciosas que sejam, da Síria, da Ucrânia, do Egipto? Ou da Grécia, da França e do Reino Unido? Não estão os estados europeus a preparar-se para uma explosão de violência, enquanto os partidos do establishment tentam ver até onde as gentes aguentam?
Como ocorre que só se fala, cada vez mais insistentemente, em finanças e futebol, nos meios de comunicação social e nos gabinetes dos políticos? Acham-se eles livres da violência ou acham que os seus deveres profissionais para com quem lhes paga são prioritários? Porque será necessário os “jornalistas sem fronteiras” organizarem-se (com o indispensável apoio dos leitores) para poderem passar notícias censuradas pelos media dependentes da selecção organizada pelas agências noticiosas competitivas na manipulação da política?
David Graeber – Projecto Democracia – editado pela Presença, explica-nos o abastardamento do conteúdo conceptual de democracia. É uma perspectiva norte-americana e anarquista. Toca num debate urgente: queremos abandonar a democracia, como querem os neo-nazis e quem está a jogar na desestabilização social que o tipo de violência intestina que os caracteriza promove, paralisando os protestos edificantes e valorizando os piores sentimentos humanos, como a xenofobia, a misoginia, a homofobia, o segregacionismo? Ou queremos reconstruir a democracia de uma forma efectiva para o futuro, aprendendo com as formas efectivas historicamente ocorridas?
Democracia, a condução política pelo povo, já aconteceu em Portugal, recentemente, como bem sabem aqueles que tenham perto dos sessenta anos para cima: há quarenta anos atrás não foi apenas a ditadura portuguesa que caiu. Foi também a indiferença das democracias ocidentais pelas ditaduras ibéricas. Apanharam um cagaço.
Com o fim da Guerra contra os nazis, a vitória dos aliados trouxe esperança aos democratas portugueses. Mas enganaram-se. Não foram as “democracias” que trouxeram a Portugal a democracia: foi o povo que transformou um golpe de Estado numa revolução planetária. Sim, planetária. Espanhóis, gregos, brasileiros, imediatamente começaram a sonhar que podiam fazer Portugal lá nos sítios onde viviam. E foi a partir dessa altura que os “democratas” começaram a pensar nas vantagens de evitar novas revoluções dos cravos pela Europa e por outros continentes. Até nos ofereceram um comboio do desenvolvimento, na última carruagem, caso entregássemos o poder a capatazes nacionais de tais políticas. Em troca da democracia. Do poder do povo.
40 anos atrás havia a democracia popular ou poder popular, alinhado com a URSS, e a democracia liberal, que acabou por vencer a Guerra Fria. Hoje vivemos no Ocidente com a estranha sensação de estarmos prensados como deveriam sentir-se os cidadãos soviéticos: o comité central decide e a nós cabe-nos obedecer.
Abastardar a democracia, em vez de a tornar vivaz, tem sido a história da traição da própria democracia pelos “democratas”. Por alguma razão, de vez em quando, lá volta a democracia. Nem sempre pacífica (veja-se o que o Egipto está a fazer ao seu povo, sem que o ocidente intervenha: como acontece por todo o mundo, onde democracia e liberdade ocidentais são uma anedota). A natureza humana sente-se melhor com a democracia. Parece. Face às liberdades dos abusadores – nazis, patriarcas de vários tipos, provocadores de violências em geral, como os políticos actuais para defenderem os seus esquemas corruptos de exploração – a democracia torna-se abolicionista. No caso de 1975, usaram-se as nacionalizações. Mas era preciso um abolicionismo mais profundo: estaremos actualmente em condições de pensar melhor?
Aspiramos à liberdade que nos é negada. Liberdade de organizar uma democracia favorável à liberdade. Por isso, com os sinais mais violentos da política de austeridade, se começou a relembrar a necessidade de outro 25 de Abril. Uma outra época de liberdade. Ela há-de vir.
Obs:Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Fotos: Pesquisa Google
01jun14