Menu Fechar

Furadouro: Uma antiga e teimosa Luta contra o Mar

José Lopes (*) / Tribuna Livre

A consolidação da malha urbana tal como hoje a conhecemos no Furadouro (Ovar), é afinal o resultado de uma secular luta do homem com o mar na disputa de terreno (neste caso de dunas milenares) para se fixar, sempre, o mais perto possível do oceano.

Mas se a luta com a fúria do mar era o meio de sobrevivência das comunidades piscatórias, que começaram a povoar o Furadouro com seus barracos de madeira que o mar ou o fogo destruíam, mas logo eram erguidos e assim reafirmada a determinação de um povo em não recuar, bem pelo contrário, como veio ficando comprovado com a erosão e o avanço do mar no último século ao colocar a nu, elementos como poços que testemunhavam o impressionante território que antepassados tinham tido ao dispor para se instalarem com o mar bem lá ao fundo.

Casinha de 1893 que resiste na Av. Central do Furadouro
Casinha de 1893 que resiste na Av. Central do Furadouro
Palheiros que restam para venda de terreno entalado por edifício
Palheiros que restam para venda de terreno entalado por edifício

A necessidade de melhores condições de vida e habitabilidade, foi substituindo barracas e palheiros por casas construídas com adobos, de rés-do-chão e mesmo primeiro andar, mas sem querer ceder um palmo da frente já conquistada pelos antigos povoadores deste território à beira mar.

Vieram depois os “empreendedores” dos tempos modernos, sustentados na consolidação do território, mesmo com avanços e recuos. O tempo era da especulação imobiliário e dos designados “patos bravos”. Ocuparam todo o território que havia disponível, mesmo os baldios vendidos a tuta-e-meia pelos autarcas locais, que assim, de forma vergonhosa, se desfizeram de um valioso património ambiental já nos anos setenta e oitenta, que só mesmo, as ainda que frágeis fronteiras da florestas do Estado, fizeram delimitar a área urbanizada do Furadouro.

Nem um palmo de terra deixaram para uma área verde no centro desta zona balnear do concelho de Ovar que recebe veraneantes dos vários concelhos do interior. A pressão do betão sobre o mar foi um autêntico crime impune na gestão do território. O projeto mais polémico foi mesmo o edifício Barramares, autorizada que foi a sua construção numa linha de costa já discutível ao abrigo de legislação limitadora mesmo na época (anos 90).

Casas sociais que alojaram famílias de casas abarracadas
Casas sociais que alojaram famílias de casas abarracadas
Construção de muro frontal em betão
Construção de muro frontal em betão

Tudo acontecia numa praia já com um vasto historial de luta com o mar, em que andamos há “cem anos à pedrada” contra, “Golias” como diz Álvaro Reis, no seu livro “A Praia dos Tubarões”. Recurso à pedra,trazida à memória também pelo historiador Alberto Sousa Lamy em “Datas da História de Ovar (922 – 2005)”, quando se refere aos acontecimentos dos dias 13 e 14 de outubro do ano 1969 quando, “o mar destruiu cerca de 80 metros de esplanada da Avenida Infante D. Henrique, na Praia do Furadouro. Em Novembro, o mar atingiu dois palheiros e um prédio térreo, enorme armazém servindo de abegoaria. Nos princípios de Dezembro foi derrubada a parte que restava do chalet da família Matos, situado ao sul da praia. Neste mês, perante novos avanços do mar, ficaram desalojadas 15 famílias, num total de 57 indivíduos”.

Entre 1857 e 1969, o mar acabaria por destruir, no Furadouro, 106 palheiros. E a 27 de janeiro de 1971 voltaria a causar elevados prejuízos na Avenida Infante D. Henrique, “chegando o tema no dia seguinte à então Assembleia Nacional, o que levaria o Governador Civil à época anunciar abertura de concurso público para adjudicação das obras”, que na altura chamaram de definitivas, da defesa da costa.

Dava-se então início a uma prolongada opção de enterrar pedra sobre pedra na areia do Furadouro, com as obras pesadas entre 1971 e 1974 para construção da muralha frontal aderente e 3 esporões, que até aos dias de hoje, como se veio a testemunhar, nunca poderiam ser definitivas. Bem pelo contrário, foram o inicio de uma já longa dura luta com o mar, que vem descaraterizando extraordinariamente a paisagem da orla costeira de Ovar, tal como acontece no litoral português sem uma estratégia verdadeiramente articulada a nível nacional, apenas se limitando a ir adiando ou empurrando o problema para o vizinho.

As intervenções em curso na orla costeira ovarense, de Esmoriz ao Furadouro, apesar do significativo e determinante financiamento da União Europeia, não deixam de ser consensualmente encaradas como, apenas mais um esforço neste último meio século para salvaguardar equipamentos e bens face às investidas do mar e às suas dinâmicas que certamente há muito o Homem deixou de respeitar com a sua teimosia em ocupar território que vai ficando visivelmente transformado num cabo talhado pela continuada erosão costeira.

jl 05 - 01set14

Entre a fúria do mar e dos incêndios

Do mar os pescadores nem sempre traziam pão, porque já em 1796 os registos são de que, foi um ano de fome, “de penúria, de más safras na costa do furadouro, de Fevereiro a Junho venderam-se para comer as sardinhas salgadas destinadas a estrume, a quatro vinténs”. Tal como veio a acontecer em 1847 em que a fome alastrou-se á Vila ou em 1856 em que a fome voltou a repetir-se e a classe piscatória foi a mais atingida pelas epidemias, que no ano 1891 trouxe a varíola, tifo e gripe. Ainda que tenha havido anos mais animadores e abundantes, como 1840, em que no Verão a sardinha era tanta “que chegava a arrolar e a cobrir a borda; apanhava-se a ancinho!” e uma década depois em 1852 registou-se “uma pesca milagrosa na Praia”. Nas redes veio uma quantidade enorme de corvinas “.

Resultado de uma ida ao mar da companha
Resultado de uma ida ao mar da companha

Os naufrágios tornavam-se um pesadelo entre uma comunidade piscatória, que só no Furadouro, em 1763 trabalhavam entre 480 a 640 homens, atingindo em 1838 cerca de 1200 e três décadas depois eram 2000, voltando a reduzir no início do século XX com cerca de 900 entre 1911 e 1928. Época de crise na pesca que obrigou a 9 de Maio (1918) um grupo de pescadores, a irem a Ovar reclamar “farinha ou pão por preços mais baixos”. Uma indignação bem mais pacífica da que tinha ocorrido em 19 de Junho (1737) em que os pescadores e o povo amotinado apedrejaram a casa do juiz ordinário e prendeu o escrivão da Câmara “lançaram tudo pelas janelas para a praça”.

As Alminhas do Carregal, a sua construção por volta de 1808 terá estado na origem da perda de onze homens num naufrágio. Episódios dramáticos que se repetiram, marcando profundamente as gentes da praia até aos dias de hoje, não só pelos riscos e perdas que existiram ao nível da arte da xávega, mas vários outros barcos que na costa do Furadouro naufragaram.

Furadouro
Furadouro

Em terra o mar também não dava descanso, repetiam-se as suas fúrias sobre as ermidas e palheiros que em 1827 já totalizavam quase 400 e por volta de 1869 com a construção da estrada de ligação a Ovar, o Furadouro tornou-se o “maior conjunto de palheiros de todo o país” ainda que em alguns casos, tal como hoje a pressão do betão, eram edificados bem perto do mar, resultando em várias tragédias ao longo dos tempos quando o mar lambia as frágeis habitações das famílias dos pescadores no areal. Foram destruídos pelo avanço do mar entre 1857 e 1969 mais de uma centena de palheiros. Mas foram os dramáticos e gigantescos incêndios os fatores que mais contrariavam a teimosia dos pescadores em se fixarem bem perto do mar que “lavravam” na procura do pão.

Equipamento urbano que o mar destruiu
Equipamento urbano que o mar destruiu

Entre os anos 1881 e 1948 arderam cerca de mil habitações no Furadouro. Até ao fatídico ano de 1881, “o Furadouro era um grande amontoado de palheiros de madeira, dispersos pela duna, frente ao mar” e foi neste ano a 31 de Julho que um pavoroso incêndio devorou cerca de 400 palheiros. Seis anos depois mais 66 palheiros foram devorados pelo fogo. Tragédias que se foram repetindo com o aproximar do final do século XIX que ficaria assinalado com mais 200 palheiros, armazéns de salga (fábricas de sardinha) e depósitos de sal destruídos num incêndio a 7 de Julho (1892) e 40 também consumidos pelo fogo do dia 15 de Junho (1899).

jl 08 - 01set14

Iniciado o século XX a fúria das chamas continuava a provocar violentíssimos incêndios que alteravam a humilde paisagem do povoado que a 15 de Março (1925) se viu amputado de outras duas centenas de palheiros, “deixando sem abrigo 300 pessoas e seis ruas completamente obstruídas pelos escombros”. Cadeia de acontecimentos trágicos durante dois séculos em que um povoado determinado a viver lado a lado com o mar, resultou na necessidade de um Plano de Urbanização concluído em 1962, mas, que se tornaria algumas décadas depois, insuficiente para evitar que o Furadouro se transformasse de novo num amontoado, mas de betão sobre o mar.

Bibliografia

Laranjeira, Lamy – O Furadouro o povoado, o homem e o mar, C.M. de Ovar.

Lamy, Alberto Sousa – Datas da História de Ovar 922 – 2005, C.M. de Ovar.

Lamy, Alberto Sousa – Monografia de Ovar, C.M. de Ovar.

Lírio, Padre Manuel – Monumentos e Instituições Religiosas, Subsídios para a História de Ovar.

Araújo, Padre José Ribeiro de – Poalhas da História da Freguesia e Igreja de Ovar

 Fotos: José Lopes (*)

 

(*)Correspondente “Etc e Tal Jornal” em Ovar

 

O “Tribuna Livre” é o seu espaço. Aqui pode dizer de sua justiça, abordando, ao pormenor, assuntos que lhe sejam caros e de interesse geral. Sempre respeitando o Estatuto Editorial deste jornal, pode enviar para a nossa caixa de correio eletrónica (etcetaljornal.site@gmail.com) até ao dia vinte de cada mês, o seu artigo, escrito em Microsoft Word e acompanhado, se assim o entender, da sua fotografia, neste caso em formato JPG ou JPEG.

Contamos com a sua colaboração. Este é um Espaço de Liberdade responsável…

 

Partilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.