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O 25 de Abril e o Direito à Cidade

Maria Rodrigues / Tribuna Livre

A cidade é uma história. Nessa história, o 25 de Abril abriu um ciclo muito importante. No caso do Porto, no decorrer do período revolucionário, as lutas populares urbanas pelo direito à habitação e pelo direito à cidade, inicialmente centradas na melhoria das condições habitacionais, evoluíram no sentido de um movimento social que pôs em causa o modelo de crescimento urbano existente que produzira profundas desigualdades no processo de apropriação do espaço urbano.

O levantamento militar de 25 de Abril de 1974, pondo fim a 48 anos de ditadura, provocou uma imediata explosão de apoio popular e marcou o início de um tempo de vigorosa participação política dos cidadãos anónimos nos processos de transformação da sociedade. O período revolucionário que então se iniciou favoreceu a emergência de movimentos reivindicativos de todo o tipo e o desenvolvimento de movimentos sociais, dada a perspectivação das necessidades individuais numa dimensão colectiva.

mfa

O programa do MFA expressava um projecto político de instauração da democracia e do pluralismo e apontava para a aplicação de um programa social progressista. Prometia o lançamento de uma política social de apoio às “classes mais desfavorecidas”. Era então uma proposta mobilizadora de uma cidadania em que a legitimidade revolucionária prevalecia sobre a legalidade tradicional.

Em 1974, a questão da habitação era uma componente importante da questão social: segundo os dados do INE de 1970 e conforme o próprio Plano de Fomento elaborado para o quinquénio de 1974-1979, o deficit de habitações em Portugal estava estimado em 450.000 e eram 100.000 os agregados vivendo em barracas ou em prédios sobreocupados.

No Porto, as carências quantitativas eram agravadas pelas carências qualitativas, ou seja, a gravidade da situação não se limitava à falta de casas e os problemas habitacionais não se esgotavam na sobreocupação dos prédios. Havia a consciência de uma discriminação social aliada à segregação espacial do alojamento popular.

Os moradores das “ilhas”, para além de viveram em habitações degradadas, vivenciavam uma forma peculiar de segregação espacial, a da ausência de visibilidade do seu alojamento, dado que as suas exíguas casas se situavam em parcelas de terrenos que se ocultavam por trás dos prédios construídos à face das ruas. Era uma “cidade escondida”, cuja remota origem se pode buscar em finais do século XVIII, que se expandiu na segunda metade do século XIX e que se manteve no decorrer do século XX, apesar das operações de pretensa “renovação urbana” que visaram principalmente desocupar solos com alto valor de troca, expulsando os estratos populares residentes em zonas centrais para zonas periféricas do Porto.

sublocação

Também essa ameaça de expulsão do local tradicional de residência, pela forte pressão fundiária, pesava sobre os moradores pobres do centro histórico, onde as chamadas “casas colmeia”, maioritariamente em condições de sobreocupação, eram habitadas por agregados vítimas das práticas de sublocação. As “subalugas” ou “sugas” eram maioritariamente mulheres intermediárias entre os senhorios e os moradores, no geral famílias carenciadas, mas também trabalhadores pouco qualificados e contratados à semana ou gente vivendo de expedientes precários. A “luta contra as subalugas” foi assumida pelo conjunto dos moradores da cidade, tendo sido invadidas as instalações da Câmara Municipal a 30 de Novembro de 1974, na sequência de grandiosa manifestação partindo do Terreiro da Sé, organizada pelas comissões de moradores de várias zonas urbanas contra os “parasitas”, protestando pelo atraso na publicação de legislação regulamentadora, que viria a ser publicada em Janeiro de 1975, suspendendo finalmente as acções de despejo com base em sublocação, contra meros ocupantes sem título legal, relativas a prédios situados no concelho do Porto e freguesias urbanas de Gaia, Gondomar, Maia e Matosinhos. Todavia, só a 16 de Maio de 1975 a sublocção se torna ilegal.

A mobilização popular pelo direito à habitação eclodiu logo em Abril de 1974, pois a ruptura do poder político possibilitou a libertação das tensões latentes nos numerosos bairros camarários do Porto. De facto, os movimentos reivindicativos nos bairros camarários antecederam as mobilizações nas “ilhas” e nas casas sobreocupadas, cujas dinâmicas se diferenciam.

bairros camararios anos 60

Os antecedentes desse primeiro movimento reivindicativo dos moradores dos bairros camarários remontam a lutas do período imediatamente anterior ao 25 de Abril, visando impedir despejos e transferências compulsivas, acções essas baseadas na aplicação de um Regulamento de Ocupação das Casas de carácter fascista, o chamado “regulamento Abel Monteiro”, cujo artigo 10º afirmava ipsis verbis “os ocupantes das habitações podem ser desalojados sempre que se tornem indignos do direito concedido”.

Os bairros camarários foram maioritariamente construídos em zonas periféricas da cidade existente. Esse facto decorreu da lógica inerente aos programas salazaristas de construção de habitação social levados a cabo nos anos 40, 50 e 60 do século passado, programas que visavam a demolição de grande parte das ilhas das zonas centrais da cidade e a apropriação dos terrenos onde se implantavam essas ilhas para projectos de renovação urbana do interesse dos grupos sociais dominantes.

A localização periférica dos bairros camarários correspondia a uma segregação espacial dentro da cidade e era sentida como discriminação social por parte dos seus residentes. Tratava-se de um alojamento desequipado do ponto de vista dos serviços, sem áreas de utilização colectiva, sem estruturas relacionais, um alojamento constrangido, cujos moradores eram severamente controlados pela Câmara Municipal, entidade que administrava os bairros e exercia vigilância, sendo esta assegurada por uma rede de informadores designados “fiscais”.

No Bairro de S. João de Deus se situava o “Tarrafal”, assim chamado por nele existir o “bloco dos condenados”, para onde eram transferidos os moradores desalojados de outros bairros por motivo de infracção face ao dito regulamento. Foi nesse bairro de S. João de Deus que, logo a 30 de Abril, foi elaborado o primeiro caderno reivindicativo entregue no Quartel -General no 1º de Maio de 1974.

Quero afirmar que o surto de lutas sociais pela casa partiu da conscientização das injustiças e desenvolveu-se pelo efectivo exercício dos direitos de reunião, de manifestação e de associação. Que as movimentações pela apropriação do espaço urbano partiram de reuniões espontâneas: reuniões de casa, reuniões de rua, reuniões de ilha, reuniões de zona degradada… Que as primeiras acções foram deliberadas por assembleias que aprovaram os primeiros cadernos reivindicativos e elegeram comissões “ad-hoc”.

Quero salientar que são inequívocos os indicadores de se tratar de movimentações espontâneas: em primeiro lugar, a rapidez das movimentações e a sua diversidade. Em segundo lugar, a ausência de concertação na emergência dessas movimentações populares urbanas. E finalmente, a especificidade das acções concretizadas nas diferentes cidades: Porto e concelhos limítrofes, Lisboa, Setúbal, Coimbra, Lagos…

No Porto e nos concelhos limítrofes, moradores dos bairros camarários, moradores das “ilhas” e das zonas degradadas, moradores dos prédios sobreocupados e em situação de sublocação, moradores de “clandestinos” e de “bairros de lata”, embora enfrentando problemas habitacionais diferenciados, tomaram consciência da existência de condições conjunturais favoráveis à resolução dos seus problemas e desencadearam dinâmicas colectivas de imposição das suas reivindicações.

Quer recorrendo ao discurso de rua, ao panfleto, ao cartaz ou ao mural, quer reunindo-se para debater questões concretas e constituir comissões de moradores, quer organizando desfiles cívicos e manifestações de protesto, quer elaborando boletins informativos ou jornais de bairro, os moradores organizados exerceram pressão sobre os poderes públicos no sentido de uma nova política social de habitação.

saal

O período pré-constitucional foi caracterizado pela maior intervenção do Estado nas políticas urbanas, tanto a nível da produção de legislação como ao nível do fomento da produção directa da habitação. Programas inovadores como o SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), criado por despacho de 31 de Julho de 1974, ou como o CRUARB (Comissariado para a Reabilitação Urbana da Área da Ribeira- Barredo), criado em Setembro de 1974 ou como o programa designado Contratos de Desenvolvimento para a Habitação (CDH), criado em Novembro de 1974, são bem representativos de uma política de habitação voltada para a resolução das carências habitacionais das populações de fracos recursos e para a reabilitação das zonas degradadas.

Esses programas viriam a ser asfixiados a partir de 1976, após a chamada “normalização democrática”. Os governos constitucionais implementaram outro tipo de promoção da habitação, como as Cooperativas de Habitação e os chamados Empréstimos às Câmaras, sendo esta oferta dirigida a estratos solventes e a sua construção realizada por promotores privados.

Entre todos os programas de política de habitação o SAAL foi o mais interveniente nas políticas urbanas, tendo o processo SAAL-Norte sido uma componente do Movimento de Moradores e tendo-se articulado com os avanços e recuos do processo revolucionário mais geral.

O SAAL desenvolveu uma nova racionalidade técnica e introduziu um novo discurso político – era um serviço estatal que se articulava com o tecido social. Baseando-se na autonomia das populações e no diálogo destas com o corpo técnico, o SAAL constituiu uma forma alternativa de intervenção na cidade. Dirigindo-se este programa à efectiva construção (ou reconstrução) em zonas de habitat degradado, era claramente um travão à tendência especulativa imobiliária. No Porto, outros traços fundamentais do SAAL-Norte foram determinantes nas intervenções efectuadas, a saber:

– a fixação da habitação popular em tecido urbano, ou seja, a garantia do direito ao local, fora do quadro especulativo, o que levou à afirmação do poder de decisão sobre o uso do solo por parte dos moradores;

– a ruptura com a invisibilidade do habitat operário, ou seja, a exteriorização das ilhas, puxando as casas populares à face da rua, assumindo uma dignidade cívica e um sentido de pertença urbana;

– a valorização da tipologia tradicional das “ilhas”, ou seja, a opção pelas casas em banda, com espaços de uso colectivo, atribuindo  valor de património cultural aos modos relacionais de vizinhança e ao estilo de vida popular.

O SAAL foi extinto por despacho de 28 de Outubro de 1976. Mas desde 1975 fora objecto de vários bloqueamentos por parte dos serviços ministeriais, das direcções regionais e das câmaras municipais: aos entraves às expropriações e aos atrasos no desbloquear de verbas para os financiamentos das obras de construção juntavam-se ataques à metodologia e calúnias aos intervenientes no processo.

O Movimento de Moradores do Porto evoluiu ao longo de 1974 e 1975, tendo os múltiplos conflitos suscitado a necessidade de formas de coordenação. Do alargamento dos objectivos iniciais e da diversificação dos eixos de luta resultou a constituição de instâncias decisórias e com legitimidade representativa: da Comissão Central dos Bairros Camarários e do Plenário das Comissões de Moradores ligadas ao SAAL-Norte passou-se à Comissão Coordenadora das Comissões de Moradores e finalmente ao Conselho Revolucionário de Moradores do Porto, colectivo formado por dois representantes de cada uma das Comissões de Moradores e das Associações de Moradores. O seu secretariado permanente era constituído por 6 membros, votados em plenário.

lavadouros publicos

A relação entre o Movimento de Moradores e o poder autárquico foi tumultuosa. A Comissão Administrativa pluripartidária, presidida por Artur Andrade, nomeado pelo PPD, manifestara, ao longo de 1974, incapacidade de gerir a burocracia municipal e ineficácia nos serviços prestados à população. Fossem as obras nos arruamentos ou nos fontenários, a instalação de lavadouros ou de banhos públicos, a limpeza do espaço público ou a remoção de lixos domésticos, eram as comissões de moradores que respondiam às solicitações dos moradores das zonas degradadas, recorrendo frequentemente aos representantes do MFA, verdadeiros protagonistas de um universo simbólico de libertação colectiva.

No campo específico da habitação, os poderes municipais não fiscalizavam as situações de arrendamento ilegal, não impunham aos senhorios a realização de obras e, sobretudo, não desbloqueavam os processos de expropriação ao abrigo do disposto no programa SAAL.

Na Primavera de 1975, o brigadeiro Corvacho, na qualidade de comandante da Região Militar do Norte, nomeou uma Comissão Administrativa Militar, constituída por seis oficiais do MFA, que aceitaram as comissões ou associações de moradores como órgãos de colaboração com o poder local, reconhecendo o direito de participação política aos moradores organizados. Foi na vigência desta Comissão Administrativa Militar que, a 4 de Julho de 1975, foi formado o Conselho Municipal, uma assembleia consultiva “mandatada pelo povo portuense”, resultante de uma anterior estrutura informal, a chamada Comissão Consultiva, “assembleia de representantes dos trabalhadores da cidade” que fora constituída por três representantes das Juntas de Freguesia, três representantes da própria Câmara Municipal e seis representantes do Conselho Revolucionário de Moradores do Porto.

Durante três meses e meio funcionou regularmente o Conselho Municipal do Porto, verdadeira estrutura de participação plural em que tinham lugar os representantes dos Bombeiros Voluntários e Sapadores do Porto, da União de Sindicatos do Porto (Intersindical) e, evidentemente, do Movimento de Moradores do Porto, numa situação de real partilha de poder. Este órgão municipal foi ilegalizado a partir de 15 de Setembro de 1975, pela nova Comissão de Gestão da Câmara Municipal, nomeada pelo Governador Civil, Mário Cal Brandão. A ilegalização do Conselho Municipal e a consequente proibição do uso das instalações camarárias para reuniões motivou a convocação para 19 de Setembro de uma manifestação de protesto à qual se seguiu a invasão do edifício camarário pelas massas populares. A data ficou assinalada por forte carga policial, “à boa maneira fascista”, segundo o número de Outubro/Novembro de 1975 do Boletim da Comissão de Moradores de Contumil.

movimento moradores do porto

Terminado o período pré-constitucional, as novas câmaras a eleger viriam a ser consideradas como “legítimas” e “exclusivas” representantes das populações. As formas de democracia directa, embora previstas no texto constitucional de 1976, foram desvalorizadas. O controlo popular do poder local passou a ser considerado desajustado às novas condições políticas. A política de habitação sofreu uma inflexão liberalizante. No seio dos moradores, verificou-se uma gradual desmobilização para “as lutas de rua”.

Para concluir, quero reafirmar que o Movimento de Moradores do Porto foi um movimento de protesto político que, dada a intensa mobilização das populações em torno da defesa do direito à cidade, atingiu o patamar da construção de um projecto conjunto de transformação global da sociedade. Esse projecto revolucionário não foi uma conquista irreversível. No entanto, as práticas sociais do período revolucionário, contestando a hierarquização social, alteraram a cidade vivida. Essa conquista do espaço social, que correspondeu à reinvenção das práticas, permanece viva na nossa memória colectiva.

 

Por vontade da autora, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

Fotos: Pesquisa Google

 

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