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Comunismo democrático

António Pedro Dores

Um dos problemas da esquerda actual é a sua indefinição relativamente ao modelo social desejável, na prática, e à definição de democracia. A institucionalização de um Rendimento Básico Incondicional permite fazer convergir as esquerdas disponíveis para melhorar a vida dos populares, num quadro de luta política democrática contra a direita, cujas liberdades devem ser mantidas.

Divisão das esquerdas

A falta de propostas mobilizadoras decorre do fim do efeito libertador da era das revoluções. O espírito revolucionário deixou de ser visto como um heroísmo para ser visto como um dogmatismo. A recomposição social entre a sociedade com classes operárias crescentemente influentes, vigentes entre meados do século XIX e o terceiro quartel do século XX, para a sociedade com analistas simbólicos produtivos, as sociedades da informação e do conhecimento, deixou de valorizar tanto o espírito fusional, próprio das massas operárias e militarizadas, masculinas, e passou a valorizar mais o espírito rizomático, desenvolvido nas redes de afinidades particularistas que dão sentido à vida mais intelectualizada dos trabalhadores dos símbolos ou escritórios.

maio 68

Desde Maio de 1968 se sabe haver uma desejável aliança entre estudantes e operários que nunca funcionou duradoira ou eficazmente. Desde 2000, através do Fórum Social Mundial, sabe-se como a expulsão dos partidos das actividades de contestação às políticas neo-liberais representa uma crise da teoria leninista de representação para organizar a revolução e legitimar a perda de direitos políticos da direita. Com a implosão da União Soviética, a crise da teoria política da representatividade estabeleceu-se e ainda não se resolveu.

Há quem tenha notado, com razão, a influência leninista na construção das teorias de representatividade política adoptadas na Europa ocidental: os mais organizados e empenhados politicamente constituem-se em vanguardas candidatas a governar, em nome de quem neles vote. Por isso as eleições têm sido a pedra de toque ideológica das nossas democracias: de x em x anos as vanguardas podem mudar de turno no governo, caso as bases eleitorais mudem. É essa a diferença entre a democracia social-democrata e a democracia popular.

À evidência, este leninismo democrático está actualmente em crise, sobretudo porque, como o leninismo genuíno, também produz nomenklaturas. O centrão, a classe política, a casta, as sociedades secretas, são alguns dos nomes usados para designar a nomenklatura ocidental. E o reconhecimento da sua existência como abcesso social, digamos assim, tem levado muitos a imaginar ser possível transformar beneficamente a sociedade alterando o regime eleitoral – através da introdução de novas regras para fazer passar as vanguardas para os órgãos de estado. O que, evidentemente, é apenas uma manobra para algo mude para que tudo fique na mesma.

leninismo

A unidade das esquerdas não se fará à força da concentração do poder das vanguardas mais populares. Como também não se fará pela manutenção da regra da proporcionalidade. A unidade das esquerdas far-se-á através da convergência de finalidades práticas das suas políticas, contra as direitas, num quadro de luta mobilizador para os cidadãos. Isto é: a questão política actual, à esquerda e à direita, é sobretudo social, depois económica e só no fim política. A questão central é, como se costuma dizer, o que fazer do Estado Social. Como reduzir custos e manter serviços de qualidade e acessíveis a todos?

Transformação social

Socialmente há uma evidente transformação em curso, em particular com uma concentração de força de trabalho e de capacidade de análise simbólica nos centros do capitalismo e da finança. Com consequências também evidentes em termos dos desequilíbrios dos poderes dos estados entre si, em função das respectivas potencialidades instrumentais para o regime global financeiro instalado e politicamente protegido por cúpulas vanguardistas não eleitas.

Em Portugal, é evidente o abandono do chamado interior do país, a sua venda a quem o possa modernizar, explorar e abandonar depois de esgotado. A mesma frase serve para explicar o que acontece com as camadas da população mais capazes de servirem o sistema económico: o abandono do país por parte dos jovens mais competentes e activos para integrarem os processos mais avançados de modernização, exploração e abandono dos povos europeus.

alianca operaria

As metrópoles são grandes plataformas aeroportuárias, do mesmo modo que no tempo da instalação das linhas de comboio cada paragem constituía-se em origem de uma nova localidade. Representam o abandono dos países à especulação e a vontade de colaborar no desenvolvimento de vanguarda, competitivo, organizado em torno do sistema financeiro global.

Neste momento de crise profunda e prolongada, todos sentimos que não se trata apenas de um necessidade de mudança de governo ou sequer de políticas. É preciso e procuram-se mudanças de vida. Precisamos de aprender a viver de outra maneira. De maneira a libertarmo-nos das teias burocráticas, administrativas, conflituais e litigiosas, que têm servido para separar os privilegiados – acima das leis e das regras – do comum dos mortais, cuja vida perde sentido com um golpe na bolsa de valores.

A aliança operária e camponesa não faz sentido. A aliança entre os operários e os analistas simbólicos, ainda que desejável, revelou-se apenas uma ilusão. As políticas realistas e institucionalistas próprias destas últimas décadas (desenvolvimento da convergência entre países e regiões, manutenção dos direitos adquiridos, negociação entre trabalho e capital das mais valias) estão esgotadas pela corrupção e pela ganância, inerentes ao sistema económico montado e pelo modo como as vanguardas ocidentais entendem merecer uma vida superior à do comum dos mortais.

As esquerdas têm por base social de apoio os funcionários que resistem à destruição do Estado Social e, os resultados eleitorais comprovam-no, estão a deixar-se eliminar com ele. Pela simples razão de as vanguardas, mesmo de esquerda, quando têm poderes executivos, simplesmente destroem o poder do Estado Social para não porem em causa o sistema concentracionário em torno do sistema de transportes aéreos.

Assistimos a uma mudança de clima social e político à medida que a crise se desenvolve. A legitimidade política das vanguardas não pára de se dispersar em variados casos de imoralidade e a ideia de organizar poderes rizomáticos, constituídos por redes interactivas e permanentemente activas, persiste, apesar de ninguém saber como tornar efectiva a noção.

Se isto é um facto, significa que a política das vanguardas deixou de conduzir os destinos sociais (como tinha antes deixado de conduzir os destinos financeiros, por vontade própria). A esquerda é quem mais sofre, porque é também mais ideologicamente fiel ao vanguardismo – a direita prefere um vanguardismo personalista, distante das massas mas, ao mesmo tempo, moralmente mais sincero do que o politicamente correcto colectivismo selectivo das esquerdas.

Comunismo democrático

Trazer novos protagonistas vanguardistas ao sistema político é uma esperança para os espanhóis, mas não tanto para os portugueses. Em Espanha está em causa a constituição, forjada pelo regime franquista em decadência e sem a participação dos povos periféricos do reino. Abrir o regime à discussão da chefia do Estado e do lugar das autonomias, desobrigando-se da corrupção e do pagamento da dívida austeritária, é um vasto programa político de democratização do regime.

podemos

Em Portugal, a democratização não passa por transformações do regime político, sem pôr em causa a sua relação estrutural com a sociedade. As esquerdas têm sido elas a escolher estarem fora do arco da governação. Não podem com credibilidade vir dizer, como dizem os espanhóis do “Podemos”, que queremos ser nós a ter oportunidade de governar. O “Podemos” apresenta-se como pró-democracia, pró-europa, pró-euro, nacionalistas, sem querer saber das conversas da casta (não se apresentam a competir na disputa esquerda-direita).

Em Portugal nada disso seria possível. Porque também a situação política em Portugal, o acantonamento das esquerdas como polícias ideológicos das acções de protesto e em defesa do regime, tem impedido o desenvolvimento e organização de movimentos sociais estáveis, e ideologias novas, ao contrário do que ocorreu em Espanha.
rendimento basico incondicional

Em Portugal estamos condenados, pelo sucesso da nossa revolução de Abril de 1974, a não estabelecer políticas substantivamente inovadoras. Precisamos de criar novas condições sociais favoráveis ao desenvolvimento de uma democracia mobilizadora das liberdades e dos entusiasmos das pessoas singulares. O que se faz não no plano estritamente político mas no plano económico-social. Fazer política há-de passar a ser uma actividade legítima e não apenas um pretexto para enriquecer depressa. Para o efeito é preciso que fique claro para que serve a política. É preciso construir uma resposta firme e óbvia contra quem voltou a defender em Portugal que a nossa política é o trabalho honrado; à direita e à esquerda. O comunismo democrático pode ser essa resposta. O Rendimento Básico Incondicional o seu instrumento.

Juncker, o luxemburguês com nome de esquentador, acusado de organizar a partir do conselho de ministros do seu país a fuga ao fisco de grandes empresas globais, no discurso de tomada de posse como presidente da Comissão Europeia, prometeu que nenhum europeu ficaria sem rendimentos. A necessidade de um rendimento básico é, portanto, reconhecido por todos. Para fazer face a um sistema incapaz de assegurar a integração social de todos, mesmo com o Estado Social a funcionar. O Rendimento Básico Incondicional (RBI), porém, é outra coisa.

Não se pretende com o RBI esmolar cidadãos em risco de pobreza. Pretende acabar-se com a discriminação nas escolas primárias contra as crianças beneficiárias de apoios sociais. E as humilhações habituais nessas circunstâncias para as crianças visadas e respectivas famílias. Todos os cidadãos, por direito universal, com o RBI passarão a receber obrigatoriamente um valor em dinheiro considerado ao mesmo tempo possível de suportar pelo orçamento de estado e capaz de satisfazer as necessidades de subsistência digna de todos e cada um, independentemente do seu estilo de vida.

Porque é que este é um programa comunista?

David Greaber, antropólogo, ao estudar a genealogia do mercado, distingue três regimes de relações económicas: o comunista, o hierárquico e o de mercado. Apenas este último se relaciona obrigatoriamente com dinheiro. O hierárquico tem apenas uma direcção: do subordinado para o superior, como se faz tradicionalmente perante os deuses, de que beneficiam as igrejas ou no estado, figuras úteis ou importantes. O regime comunista é muito praticado pelas famílias, quando cada um traz para casa o que consegue fora e disponibiliza (dinheiro ou outros bens) para quem necessita, entre o grupo familiar.

familias em crise

Manifestamente, na actualidade, são as famílias os parentes pobres da economia global. A degradação das crianças e das mulheres e dos idosos, de uma maneira geral pessoas socialmente isoladas, que constituem o grosso das vítimas da pobreza na Europa, afecta não apenas a elas mas a toda a sociedade. Tendo-se tornado problemas morais a que ainda não se deu suficiente atenção.

Tratar todas as pessoas com igual dignidade não é apenas uma questão moral. É uma questão cívica e económica. Sabe-se como a indignidade e a discriminação gera violências de todo o género, como o enfraquecimento do sistema imunitário fragiliza um corpo humano, em que todas as doenças parecem ir atacar. Os custos para o estado social de lidar com problemas sociais e de saúde evitáveis seria poupado. Mas, sobretudo, o estado social poderia dedicar-se a tarefas de prevenção – muito mais satisfatórias e baratas – e reduzir drasticamente as tarefas de remedeio e manutenção, que ocupam actualmente praticamente a totalidade dos trabalhadores sociais, de forma quase sempre ineficaz.

forca do trabalho

As relações sociais saudáveis assim libertadas constituirão formas de aumento da capacidade produtiva geral, independentemente de essa capacidade se vier a instalar nos sectores público, privado ou social da economia. As experiências conhecidas de implementação de regimes RBI mostram como pessoas anteriormente inactivas, com base no RBI, se tornam mais activas economicamente. Escolherão motivações extrínsecas – por exemplo, colaborando com terceiros na mobilização de capitais para instalar novas actividades – ou motivações intrínsecas – criando as suas próprias actividades. Os três sectores da economia, dos quais o sector social tem sido submetido a limites extremos de recursos disponíveis e a subordinação a interesses estranhos, poderão entrar em competição justa entre si para captar força de trabalho e investimentos.

Porque é que este é um programa democrático?

A democracia económica, tantas vezes reclamada pelos comunistas, na prática do comunismo real tornou-se uma economia pública monopolista. Apesar da constituição portuguesa reconhecer mérito igual aos três tipos de economia, a verdade é que a economia social se mantém sob controlo de forças sociais baseadas seja nos estados seja em grandes empresas privadas. O RBI permitirá a independência de actividades cooperativas, sobretudo para as pessoas que desejem povoar o interior do país, em vez de estarem sistematicamente na posição de submissão em função das fontes de financiamento.

Em termos políticos, a libertação de forças produtivas por via da economia comunista e da nova oportunidade de concorrência leal entre os três sectores da economia, certamente apoiará novas formas de participação e regulação, no futuro. Entretanto, a direita não é excluída do processo de criação e implementação do RBI. Pelo contrário: deve ser chamada e integrada no processo de transformação que o RBI estimula, em liberdade mas também obrigada a reconhecer o fim dos privilégios, nomeadamente o monopólio da criação de emprego que pretende impor.

Fotos: Pesquisa Google

 

Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

01jan15

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