António Pedro Dores
Não é a quantidade de sangue que faz o terrorismo. Tal como na criminologia de Antigo Regime, são os crimes de lesa-majestade, aqueles que pretendem atingir o poder, aqueles que o desafiam, sobretudo quando não parecem ter hipóteses de vencer e podem aparentemente ser esmagados sem temor, os que são considerados terrorismo.
Prova-o o facto de os massacres por todo o mundo serem avaliados pelos media internacionais de formas muito diferentes, consoante a reacção dos governos mais importantes para a globalização. E conforme a distância dos eventos relativamente aos centros de poder global.

A propósito do Charlie Hebdo, discutiu-se o contraste do tratamento mediático e político entre os milhares de assassinatos perpetrados pelo grupo Boko Haram (literalmente do árabe: a educação é um pecado e deve ser proibida) na Nigéria e os terríveis assassinatos de jornalistas e dos meros clientes de um supermercado parisiense. A globalização continua a ser, manifestamente, enformada pela discriminação entre populações, nomeadamente em função da cor da pele e da integridade do estado que controla o território onde as pessoas vivem.
O objectivo do Boko Haram era, e continua a ser, levar as populações a deixarem de permitir que as crianças vão à escola com medo de que possam ser raptadas, violadas, torturadas, assassinadas. O que só será possível se o terror persistir e se milhares de pessoas forem, como estão a ser, atacadas aleatoriamente. Esta estratégia só vinga onde o estado existe apenas como forma de defesa da elite exploradora e as massas vivem por sua conta e risco.
O objectivo em Paris foi o de usar a duplicidade de critérios dos estados europeus a respeito da liberdade de expressão, para os ridicularizar, e explorar o desespero em que vive parte da população ocidental para enfraquecer essa moral decadente. Oitenta mil agentes policiais e soldados à procura de 4 indivíduos sinalizados pelos serviços secretos mostraram como, um estado do centro da globalização, apesar dos meios disponíveis, precisa de se mobilizar ao mais alto nível para mostrar que foi um erro não conseguir defender o seu povo.
Boko Haram continua no terreno há meses, como o exército pró Califado continua no Iraque e na Síria – onde as calamidades humanitárias foram impostas pelo ocidente a populações alheadas da política por regimes autoritários e geopolíticas desumanas, apenas interessadas em petróleo (e outras riquezas que possam ser extraídas). Há europeus, sobretudo os que estão atentos ao que se passa noutras partes do mundo, que vêm no terrorismo uma forma de vingança – que compreendem – da exclusão e discriminação de que são alvos, simplesmente por serem descendentes de famílias de povos anteriormente colonizados.
A revolta contra a exclusão e discriminação interna aos países mais ricos do mundo, que se manifesta quotidianamente, é ocultada como se fosse mera delinquência. O ódio contra si próprios, nas populações excluídas nas sociedades em que nasceram e foram criadas, é fabricado nos motins semanais com as polícias – a que as polícias respondem provocando mais motins, como também acontece em Lisboa. Esse ódio explodiu à vista de todos em 2005, à volta de Paris, e em 2011 em Londres. Ninguém pode dizer que não sabe. Esse ódio suicida é também fabricado nas prisões, concebidas para favorecer a meditação inerte e ociosa com vista à conversão. Se lhes sugerem uma conversão contra as políticas e as sociedades abusadoras, que os tratam como criados e ex-escravos, como faz o chamado Islão radical, como resistir à oportunidade de realizar a vingança?
A generalidade dos europeus usados como bodes expiatórios pelas políticas securitárias, anti-democráticas e contra a liberdade das pessoas e dos povos – a que geralmente se chama a política do medo – não aceite o terrorismo nem a vingança como solução para as suas vidas (e para se livrarem, nem que seja pela morte, da humilhação quotidiana). Nesse aspecto dão lições de humanidade aos estados europeus que admitem e valorizam a vingança e a retaliação como lógicas, legítimas e naturais, tanto no caso de George W. Bush como em Israel. O que os pretendentes ao Califado sabem é que basta uma infinitésima parte dos humilhados e discriminados europeus para tocar o dedo na ferida aberta: os imigrantes, os ex-colonizados, são alvo de todos os ódios ocidentais. Mesmo que sejam apenas os filhos, os netos ou os bisnetos dos antigos escravos, criados, guerrilheiros que se libertaram dos abusos coloniais. Mesmo que sejam europeus de naturalidade e nacionalidade.
Na Nigéria, apesar da maior gravidade da situação, em termos de oportunidade de expansão do poder dos terroristas a soldo do Califado que diz que há-de vir, as mortes de crianças e mulheres são banalizadas por não tocarem em nervo nenhum ocidental. Em Paris, não é o risco de terrorismo mas os ódios e as vinganças que são discutidos – metaforicamente – sublimados em termos da pura defesa de absoluta liberdade de expressão que nunca existiu.
Fotos: Pesquisa Google
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01mar15