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Abuso sexual de crianças

António Pedro Dores

A discussão sobre a lista de pedófilos foi lançada pela ministra da Justiça e está em debate no parlamento. Independentemente do mérito de trazer à baila o assunto tabu da maior relevância, a crédito da ministra, tanto mais quanto os poderes políticos se têm abstido de intervir neste campo, incluindo aqueles que estiveram directamente envolvidos directamente com diversos escândalos, da maneira como o problema está enviesado não se vai chegar a lado nenhum.

O problema é o de saber como podemos abolir o abuso sexual de crianças. Não é o de saber como a polícia ou o Ministério Público podem controlar melhor os cidadãos. Ou ajudar a constituir grupos civis de vigilância.

casa pia - 01jun15

O abuso sexual de crianças não é apenas motivo de protecção das crianças – o que já seria suficientemente digno de atenção política. Deve ser enquadrado em políticas de redução da violência em sociedade. Nomeadamente em termos de violência doméstica e institucional a que está, evidentemente, intimamente ligado.

O caso Casa Pia mostrou como algumas das crianças abusadas replicam, quando têm oportunidade, os abusos sobre outras crianças. E como o estado se desinteressou tanto pela sua protecção enquanto vítimas como pela sua contenção enquanto abusadores. Pelo contrário, a própria Casa Pia, ao mais alto nível, foi cúmplice de várias redes de recrutamento de crianças para serem abusadas, fornecendo transportes e motoristas, abrindo as portas da instituição para visitas guiadas a angariadores.

Todos assistimos ao esforço do estado e do sistema de justiça para mudar os seus próprios comportamentos. Porém, no fim de contas, as redes de abusadores não foram encontradas. A igreja católica em Portugal não foi atingida pelo flagelo que atingiu a Irlanda, os EUA e o Vaticano. Apesar da incapacidade da justiça de chegar perto dos mais poderosos, actualmente, haverá pessoas condenadas por abusos sexuais de que são inocentes. Não me refiro às declarações de inocência auto-proclamadas. Refiro-me à experiência de advogadas que trabalham estes temas do lado das vítimas e reconhecem que a dificuldade de fazer prova jurídica e servia para ignorar as raras denúncias, antes da Casa Pia, serve agora para condenar tudo quanto tenha um mínimo de credibilidade do lado da acusação.

protecao criancas - 01jun15

As crianças abusadas ficam marcadas para toda a vida com limitações de empatia que transmitem a todos quantos com elas convivem. Do mesmo modo que uma ferida atrai todo o tipo de problemas, e se não for cuidada pode ser fatal, assim uma pessoa abusada contamina a sociedade à sua volta. Nestes casos, a ferida é crónica. Ora, sabe-se como isso acontece com as crianças institucionalizadas, ainda que nem todas sejam abusadas sexualmente. Sabe-se como as instituições que recebem crianças e jovens em risco são, elas próprias, riscos evidentes para quem acolhem. Como se sabe da cumplicidade entre o abusador e outros adultos a quem a criança está a cargo, nas instituições e em casa. Cumplicidade directa, quando há conhecimento do que se passa, e cumplicidade indirecta, quando há negligência da protecção das crianças, agravada quando há ignorância do fenómeno.

A ignorância sobre o que seja abuso sexual de crianças, portanto, não é questão menor. Sem conhecimento sobre como identificar o problema ou o descartar, os abusos continuam a ocorrer sem que os protectores das crianças e a sociedade, em geral, estejam em condições de as defender. Todos somos cúmplices, por ignorância. O que não vale de desculpa nem de consolo à vista dos estragos sociais e pessoais em causa.

Ministra da Justiça: Paula Teixeira da Cruz
Ministra da Justiça: Paula Teixeira da Cruz

O rigor intelectual e a divulgação de conhecimentos, por si só, terão, portanto, efeitos preventivos primários relevantes. E orientarão as acções individuais e institucionais para bem longe da alternância entre o tédio e o desespero, interrompidos por longos períodos de alheamento.

Compreendo que a ministra da Justiça, a quem o assunto é caro, desesperada com a indiferença do governo às suas investidas nesta área, tenha querido atirar uma pedra ao charco. Aproveitou, se bem entendo, a ordem de transcrição de uma directiva europeia orientada para a cooperação internacional na detecção de movimentos de abusadores e de empresas que os servem de crianças para lançar a lebre da lista de pedófilos, para uso interno.

Acontece que em Portugal a maioria dos abusos sexuais de crianças ocorrem na família. As redes internacionais que industrializam o abuso sexual de crianças, procuram-nas onde é mais fácil encontrá-las, em países tolerantes com a miséria como a Tailândia ou Brasil ou Paquistão, ou em locais de catástrofe, onde as crianças sobreviventes vagueiam e as autoridades, por norma, não lhes dão atenção prioritária (na verdade abusam delas de muitas maneiras). Como pode acontecer também nos asilos e orfanatos em Portugal.

Confundir e misturar a luta contra a indústria do abuso sexual de crianças com as práticas privadas e familiares de abuso de crianças é um grave erro político. Não apenas por causa de ineficácia que se introduz no sistema, apenas favorável aos abusadores. Mas sobretudo por via da instigação da ignorância na sociedade sobre o que é o abuso sexual de crianças.

Foto: "Sol"
Foto: “Sol”

A pedofilia é uma doença do foro neurológico. Apenas 5% dos casos de abusos, afirmou Anabela Neves, médica forense, são praticados por pedófilos. Isto é, os pedófilos servem actualmente de bodes expiatórios da nossa indiferença colectiva perante o fenómeno dos abusos sexuais de crianças. Simplesmente preferimos olhar para o lado e imaginar que não temos, cada um de nós, nada a ver com isso. É uma doença que não nos atinge. Porque, evidentemente, em casa de cada um nada se passa de grave.

Porém, o contrário é a verdade: quem pensa que nada tem a ver com os abusos sexuais é objectivamente cúmplice dos abusadores que todos os dias cumprimentam com simpatia toda a gente que encontram. Ninguém deverá estar dispensado de vigilância a respeito do problema. Mas não uma vigilância coordenada pelo estado. Pois a esse respeito o cadastro do estado é de protector dos abusadores, sobretudo dos grandes abusadores, e desinteresse da protecção das crianças. Não só antes do caso Casa Pia, mas também depois do escândalo. Como é evidente pelo lançamento da confusão de uma discussão sobre a lista de pedófilos, em vez de propor um debate alargado, às instituições, às universidades, com apoio da comunicação social, sobre o que é – de facto – o abuso sexual de crianças, a sua relação com a violência contra as mulheres e em geral, e como se pensa um dia estarmos livres desse flagelo.

Recomendo a leitura de http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica%20transformativa

Fotos: Pesquisa Google

Por vontade da autora, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

01jun15

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2 Comments

  1. António Duarte Lima

    Envio os meus parabéns ao autor deste artigo. Denunciar cada vez mais este flagelo é um acto de cidadania consciente.Todos temos a obrigação de o fazer, sejam quais as formas a utilizar não importa.

  2. António Duarte Lima

    Envio os meus parabéns ao autor deste artigo. Denunciar cada vez mais este flagelo é um acto de cidadania consciente.Todos temos a obrigação de o fazer, sejam quais as formas a utilizar não importa.

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