António Pedro Dores
A discussão sobre a lista de pedófilos foi lançada pela ministra da Justiça e está em debate no parlamento. Independentemente do mérito de trazer à baila o assunto tabu da maior relevância, a crédito da ministra, tanto mais quanto os poderes políticos se têm abstido de intervir neste campo, incluindo aqueles que estiveram directamente envolvidos directamente com diversos escândalos, da maneira como o problema está enviesado não se vai chegar a lado nenhum.
O problema é o de saber como podemos abolir o abuso sexual de crianças. Não é o de saber como a polícia ou o Ministério Público podem controlar melhor os cidadãos. Ou ajudar a constituir grupos civis de vigilância.
O abuso sexual de crianças não é apenas motivo de protecção das crianças – o que já seria suficientemente digno de atenção política. Deve ser enquadrado em políticas de redução da violência em sociedade. Nomeadamente em termos de violência doméstica e institucional a que está, evidentemente, intimamente ligado.
O caso Casa Pia mostrou como algumas das crianças abusadas replicam, quando têm oportunidade, os abusos sobre outras crianças. E como o estado se desinteressou tanto pela sua protecção enquanto vítimas como pela sua contenção enquanto abusadores. Pelo contrário, a própria Casa Pia, ao mais alto nível, foi cúmplice de várias redes de recrutamento de crianças para serem abusadas, fornecendo transportes e motoristas, abrindo as portas da instituição para visitas guiadas a angariadores.
Todos assistimos ao esforço do estado e do sistema de justiça para mudar os seus próprios comportamentos. Porém, no fim de contas, as redes de abusadores não foram encontradas. A igreja católica em Portugal não foi atingida pelo flagelo que atingiu a Irlanda, os EUA e o Vaticano. Apesar da incapacidade da justiça de chegar perto dos mais poderosos, actualmente, haverá pessoas condenadas por abusos sexuais de que são inocentes. Não me refiro às declarações de inocência auto-proclamadas. Refiro-me à experiência de advogadas que trabalham estes temas do lado das vítimas e reconhecem que a dificuldade de fazer prova jurídica e servia para ignorar as raras denúncias, antes da Casa Pia, serve agora para condenar tudo quanto tenha um mínimo de credibilidade do lado da acusação.
As crianças abusadas ficam marcadas para toda a vida com limitações de empatia que transmitem a todos quantos com elas convivem. Do mesmo modo que uma ferida atrai todo o tipo de problemas, e se não for cuidada pode ser fatal, assim uma pessoa abusada contamina a sociedade à sua volta. Nestes casos, a ferida é crónica. Ora, sabe-se como isso acontece com as crianças institucionalizadas, ainda que nem todas sejam abusadas sexualmente. Sabe-se como as instituições que recebem crianças e jovens em risco são, elas próprias, riscos evidentes para quem acolhem. Como se sabe da cumplicidade entre o abusador e outros adultos a quem a criança está a cargo, nas instituições e em casa. Cumplicidade directa, quando há conhecimento do que se passa, e cumplicidade indirecta, quando há negligência da protecção das crianças, agravada quando há ignorância do fenómeno.
A ignorância sobre o que seja abuso sexual de crianças, portanto, não é questão menor. Sem conhecimento sobre como identificar o problema ou o descartar, os abusos continuam a ocorrer sem que os protectores das crianças e a sociedade, em geral, estejam em condições de as defender. Todos somos cúmplices, por ignorância. O que não vale de desculpa nem de consolo à vista dos estragos sociais e pessoais em causa.

O rigor intelectual e a divulgação de conhecimentos, por si só, terão, portanto, efeitos preventivos primários relevantes. E orientarão as acções individuais e institucionais para bem longe da alternância entre o tédio e o desespero, interrompidos por longos períodos de alheamento.
Compreendo que a ministra da Justiça, a quem o assunto é caro, desesperada com a indiferença do governo às suas investidas nesta área, tenha querido atirar uma pedra ao charco. Aproveitou, se bem entendo, a ordem de transcrição de uma directiva europeia orientada para a cooperação internacional na detecção de movimentos de abusadores e de empresas que os servem de crianças para lançar a lebre da lista de pedófilos, para uso interno.
Acontece que em Portugal a maioria dos abusos sexuais de crianças ocorrem na família. As redes internacionais que industrializam o abuso sexual de crianças, procuram-nas onde é mais fácil encontrá-las, em países tolerantes com a miséria como a Tailândia ou Brasil ou Paquistão, ou em locais de catástrofe, onde as crianças sobreviventes vagueiam e as autoridades, por norma, não lhes dão atenção prioritária (na verdade abusam delas de muitas maneiras). Como pode acontecer também nos asilos e orfanatos em Portugal.
Confundir e misturar a luta contra a indústria do abuso sexual de crianças com as práticas privadas e familiares de abuso de crianças é um grave erro político. Não apenas por causa de ineficácia que se introduz no sistema, apenas favorável aos abusadores. Mas sobretudo por via da instigação da ignorância na sociedade sobre o que é o abuso sexual de crianças.

A pedofilia é uma doença do foro neurológico. Apenas 5% dos casos de abusos, afirmou Anabela Neves, médica forense, são praticados por pedófilos. Isto é, os pedófilos servem actualmente de bodes expiatórios da nossa indiferença colectiva perante o fenómeno dos abusos sexuais de crianças. Simplesmente preferimos olhar para o lado e imaginar que não temos, cada um de nós, nada a ver com isso. É uma doença que não nos atinge. Porque, evidentemente, em casa de cada um nada se passa de grave.
Porém, o contrário é a verdade: quem pensa que nada tem a ver com os abusos sexuais é objectivamente cúmplice dos abusadores que todos os dias cumprimentam com simpatia toda a gente que encontram. Ninguém deverá estar dispensado de vigilância a respeito do problema. Mas não uma vigilância coordenada pelo estado. Pois a esse respeito o cadastro do estado é de protector dos abusadores, sobretudo dos grandes abusadores, e desinteresse da protecção das crianças. Não só antes do caso Casa Pia, mas também depois do escândalo. Como é evidente pelo lançamento da confusão de uma discussão sobre a lista de pedófilos, em vez de propor um debate alargado, às instituições, às universidades, com apoio da comunicação social, sobre o que é – de facto – o abuso sexual de crianças, a sua relação com a violência contra as mulheres e em geral, e como se pensa um dia estarmos livres desse flagelo.
Recomendo a leitura de http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica%20transformativa
Fotos: Pesquisa Google
Por vontade da autora, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
01jun15
Envio os meus parabéns ao autor deste artigo. Denunciar cada vez mais este flagelo é um acto de cidadania consciente.Todos temos a obrigação de o fazer, sejam quais as formas a utilizar não importa.
Envio os meus parabéns ao autor deste artigo. Denunciar cada vez mais este flagelo é um acto de cidadania consciente.Todos temos a obrigação de o fazer, sejam quais as formas a utilizar não importa.