António Pedro Dores
A discussão política tem vindo a ocupar cada vez mais os portugueses, e os europeus. O tempo da normalidade democrática, isto é, da indiferença porque são “todos a mesma coisa” (na verdade, “não tenho tempo para a política: quem manda que se desenrasque”) está a chegar ao fim. Todos o pressentimos. Mesmo quando os níveis de abstenção nas votações se mantém altos.
As novidades, de um governo de esquerdas e da entrada de um novo partido no parlamento, são sinais inequívocos de mudança, mais desejada e sentida do que instalada no terreno. Infelizmente continua-se a fugir dos assuntos fundamentais: o bem-estar das populações e do meio ambiente.
E as ameaças maiores: as políticas de extrema-direita favorecidas a nível europeu e global, à procura de bodes expiatórios para justificar a organização da (lucrativa) guerra. Assim, esperam, não será possível discutir as violências do extrativismo, isto é, o uso do planeta para o esventrar (incluindo às pessoas que estejam no local errado) para obter lucros, através do sistema global de controlo financeiro.
A conversa dos vigaristas que explicavam que a União Europeia foi feita a pensar em ser um garante da paz (de facto, começou por ser um cartel do carvão e do aço, como todos podem facilmente confirmar) deixou de ser ouvida. Porque seria ridícula nas actuais circunstâncias. Porque a guerra financeira e social está persistente e deliberadamente a ser instalada, entre gerações, entre Estados, entre privados e os Estados, entre o Sul e o Norte e o Leste, contra o interesse do bem-estar dos povos. E a guerra militar está instalada, cada vez mais violentamente, nas fronteiras.
Ensinaram-nos que o Império Romano caiu por causa da invasão dos bárbaros. À luz do que se passa hoje com a U.E., vale a pena lembrar que a decadência romana durou pelo menos duzentos anos. A escolha de um episódio da decadência para explicação última, corresponde a um evento e registou para sempre a ideia de ter sido um ataque externo (o que é falso) aquilo que espoletou o fim. Como os bancos, ou as organizações globais, as organizações demasiado grandes para falirem são elas próprias a causa principal da sua falência. Porque mais ninguém o poderia fazer. Como aconteceu com a União Soviética. Como está a acontecer com a União Europeia.
Não é por acaso que a duríssima crise financeira não pôs directamente em causa a coesão dos Estados membros da UE. Foi a invasão de um pequeno grupo de refugiados que fez com que a questão do desmantelamento da União fosse levantada por altos dirigentes políticos. As aparências de uma Europa respeitadora dos direitos humanos caíram com a tortura a que a UE sujeitou os povos do Sul, sobretudo a Grécia.
Com a crise dos refugiados, os direitos humanos foram substituídos pela violação dos compromissos internacionais nessa matéria, por parte da UE. Os gritos de morte aos infiéis, infelizmente tão dramaticamente relevantes no Levante e no Norte de África, ecoam também do lado europeu do Mediterrâneo. Sobretudo a internet divulga propaganda nazi, com sucesso.
Defende-se a segregação entre as pessoas, por qualquer motivo, sexo, religião, situação económica, cor da pele, cultura. Seja o que for. E nas ruas e nas escolas, mas também em casa de cada um, as escolhas estão a ser colocadas perante nós: o que fazer perante a irracionalidade da xenofobia mobilizada pelo racismo pró-nazi? Quando a conversa não adianta, perante o sectarismo social dos que dividem a humanidade entre os nossos (família, nação, partido, club desportivo) e os outros, desmerecedores de qualquer empatia, o que se pode fazer para nos protegermos da violência e, no final, da guerra que assim se anuncia?
Na fronteira norte, entre a Suécia e a Noruega, ao longo do mês de Outubro de 2015, as carreiras de autocarros deixaram de passar sem controlo, entre países amigos. Passaram a ser sistematicamente controladas. Os cidadãos de nacionalidade síria, famílias inteiras, são apeados e levados por simpáticos polícias de fronteira não se sabe exactamente para onde. Naqueles países, as notícias não informam da ocorrência e o parlamento não verifica o que se passa. Passa simplesmente desapercebido. Como passaram desapercebidas as atrocidades cometidas pelas autoridades nórdicas durante a Segunda Grande Guerra.
A Alemanha e a Áustria abriram fronteiras e fecharam-nas de seguida. Os países de passagem anunciaram medidas brutais para reter os migrantes e os refugiados. Os muros, como os da Califórnia ou da Palestina, são erguidos com cada vez maior rapidez em várias partes da Europa. Os sobreviventes mais capazes encontraram um caminho ártico (cada vez com menos gelo) para atingir o norte da Europa, sem enfrentar os muros. O inverno matará muita mais gente do que já morreram, até agora. Serão muros para ficar durante quantas décadas, como o muro de Berlim?
A Hungria tornou-se estrela por ter um governo que diz o que pensa. País reduzido a um prostíbulo pela queda da União Soviética, as alternativas políticas existentes são, aos olhos ocidentais, todas intoleráveis (mas toleradas), no desprezo pelas mulheres e todas as minorias, como os ciganos ou nacionalidades terceiras. É injusto ostracizar os húngaros por isso. Fazê-lo seria replicar aquilo que se condena.
Mas será indispensável saber-se mais e melhor o que se passa nos outros países da UE. E não se sabe. Como pode haver democracia sem imprensa livre? Actualmente, como pode haver uma UE democrática sem imprensa pan-europeia plural e crítica?
Nunca se falou tanto do 25 de Abril. Como chegámos a este beco sem saída? Por que quisemos ser parceiros europeus numa Europa Imperial com sinais de decadência? Quem inventou e para que efeitos a teoria dos bons alunos, de aceitar e calar, efectivamente praticada nas últimas décadas? Revela-se hoje, cada vez mais clareza, como uma continuidade salazarenta não só abafou o atrevimento revolucionário que espantou o mundo, em 1974/5, mas vive na matreirice popular de entregar aos poderosos as responsabilidades das decisões.
A democracia, registe-se, não é incompatível com o espírito anti-democrático. Exactamente por ser democracia, tem de oferecer lugar para todos.
Os regimes anti-democráticos perseguem os democratas. Os regimes democráticos integram os anti-democratas. Mas os regimes democráticos em decadência, como o nosso, precisam de correntes de ar. Como aquela que se viveu no Parlamento aquando do derrube do governo Cavaco-Passos Coelho-Portas. Na verdade precisam de reinventar a democracia. O que só será feito com a colaboração da vontade popular.
A democracia é um exercício permanente de liberdade por parte dos democratas. E os democratas, por estes dias, não estão a conseguir passar a sua mensagem.
Ser democrata não é um estatuto. É um trabalho. Há quem lute pela democracia: pela liberdade dos outros a serem quem querem ser. Na esperança de que a democracia possa ser acarinhada mesmo pelos que preferem mandar ou ver alguém a mandar.
O masoquismo e a imbecilidade são invenções humanas. E muitas vezes basta não fazer nada – por exemplo, quando eles veem buscar os sírios – para a imbecilidade se manifestar espontaneamente: como quando assistimos à condução de milhões de europeus para os campos de extermínio, fazendo todos os esforços para fingir acreditar que era justo o que estava a acontecer. Como quando assistimos à estigmatização dos comunistas que querem apoiar um governo de esquerda em Portugal.
Sejamos claros: estou longe de ser partidário do comunismo. Mas por ser democrata, estou de acordo com Almeida Santos (nunca imaginei dizer isto) quando disse que a recuperação dos direitos políticos plenos da esquerda do PS representa o fim da revolução do 25 de Abril. Sim. Claro. O que se passar hoje, daqui para a frente, não será mais uma herança de Abril. Teremos de ser nós a construir o que formos capazes para as próximas décadas. Que seja uma democracia mais clarividente e forte contra os que usam a democracia para fins privados.
Fotos: Pesquisa Google
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01dez15