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Excesso de zelo…?!

Ana Costa de Almeida

A final do seu depoimento, a testemunha insistiu em indagar o Tribunal sobre o motivo para que tivesse sido detida e algemada frente à sua casa; mantida algemada durante toda a viagem a caminho do tribunal, dentro de veículo da Guarda Nacional Republicana; e, para maior enxovalho, assim igualmente encaminhada até à sala de audiências, perante todos quantos ali se encontravam, como se de “algum criminoso” e “perigoso” se tratasse.

Respeitosa, ainda que visivelmente indignada, aquando do relato junto do Tribunal de a quanto tinha sido sujeita naquela manhã, a testemunha segurava religiosamente em suas mãos prova de que, quando notificada para comparecer em julgamento, havia justificado a sua falta. A inevitável e justificada atenção para com o sucedido, que a testemunha fazia questão em que fosse esclarecido, levou a que se apurasse, naquele momento, que a mesma tinha efectivamente apresentado requerimento com vista à justificação da sua falta à sessão de julgamento para que anteriormente tinha sido regularmente convocada. No entanto, ali igualmente se verificou que o Cidadão pensara poder justificar a sua falta em juízo, como fez, no prazo de cinco dias após a sessão de julgamento para que fora convocado, quando, em rigor, deveria ter comunicado ao Tribunal a sua falta, imprevisível e imprevista, nos próprios dia e hora da sessão de julgamento a que não pôde comparecer, podendo, por motivo justificado, demonstrar por que motivo faltara até ao terceiro dia útil seguinte.

tribunal

A testemunha confundira quanto constava, a título de advertência, da própria convocatória, mas, ainda assim, tivera o cuidado de comunicar e demonstrar por que não havia podido comparecer em audiência. O mandado de detenção fora, de todo o modo, mantido e, no que se mostrava (e mostra) especialmente perturbante, executado da forma descrita, com membros das Forças de Segurança a votar a testemunha a tratamento descabido e abusivo, notoriamente humilhante e afrontoso da sua honra, mesmo quando vinha aquela munida de documentação elucidativa de que havia feito por justificar a sua falta em audiência.

Será que bastará aludir a possível excesso de zelo, como forma de retractação perante testemunha assim tratada, ou mesmo como que em jeito de desculpabilização da actuação dos elementos das Forças Armadas em causa? Afigura-se logo por demais insuficiente se nos permitirmos o exercício mental, sempre profícuo, de nos imaginarmos no lugar do outro, do Cidadão assim tratado, e aferirmos o que sentiríamos, bem como os danos que assim nos seriam causados.

Para além disso, é por demais sabido que outro comportamento se exige por parte de quem, no exercício de funções policiais, deverá servir o interesse público, defender as instituições democráticas, proteger todas as pessoas contra actos ilegais e, como bem vincado no próprio Código Deontológico do Serviço Policial, respeitar os direitos humanos.

Como princípios elementares por que deve reger a actuação tanto de militares da Guarda Nacional Republicana (GNR), como de pessoal da Polícia de Segurança Pública (PSP), diz-se no aludido Código Deontológico que, enquanto “zeladores pelo cumprimento da Lei (…) cultivam e promovem os Valores do Humanismo, da Justiça, Integridade, Honra, Dignidade, Imparcialidade, Isenção, Probidade e Solidariedade”, e que, para além de a quanto obriga o Código, “devem absoluto respeito pela Constituição da República Portuguesa, pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pela legalidade comunitária, pelas convenções internacionais, pela Lei”. Mais, destaca-se, expressamente, o primacial dever de respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana e, bem assim, de quem esteja detido, numa especial atenção para com quanto implica e pode propiciar tal condição.

Acrescenta-se, como princípio igualmente sublinhado, que de uma actuação dos membros das Forças Armadas conforme às disposições do seu Código Deontológico dependem o “direito ao apoio activo da comunidade que servem e ao devido reconhecimento por parte do Estado”. Trata-se de uma evidência prática, mas, ainda assim, expressa no próprio Código Deontológico.

Para além do mais por que se devem pautar o desempenho e a conduta dos membros das Forças de Segurança, como pressuposto do próprio respeito e do reconhecimento pelo e no exercício das suas funções policiais, determina-se no Código Deontológico do Serviço Policial que “Em especial, têm o dever de, no uso dos poderes de autoridade de que estão investidos, se abster da prática de actos de abuso de autoridade, não condizente com um desempenho responsável e profissional da missão policial”, bem como abster-se de actos que possam pôr em causa a credibilidade e o prestígio da instituição.

gnr - 01fev16

Em suma, do próprio Código Deontológico do Serviço Policial se retira a censurabilidade da actuação dos militares da Guarda Nacional Republicana que sujeitaram a testemunha em causa a tamanha e descabida humilhação, afrontosa não só da dignidade e da honra daquela, como do respeito e da credibilidade que deverá merecer a instituição. Aliás, reforçando o que já seria, naquele caso, evidente conduta abusiva no uso de autoridade, outras testemunhas foram alvo de mandado de detenção para comparência em audiência no exacto mesmo processo judicial, sem que a execução de tais mandados por elementos daquela mesma instituição se tivesse transformado ou subvertido num despropositado espectáculo de rebaixamento frente a suas casas, tão pouco numa entrada em pleno tribunal algemadas, sem que se vislumbre (ou pudesse vislumbrar) mínima justificação para a discrepância no tratamento daquela testemunha.

Certos, desde logo expectáveis e consumados, terão sido os danos decorrentes para a testemunha de tal actuação por parte de alguns membros de força de segurança de natureza militar, insusceptíveis de ser minorados com mera alusão a possível excesso de zelo, como se fosse normal e, assim, prática corrente e aceitável, quando antes aquela conduta afronta os próprios princípios e deveres deontológicos a que os militares em causa estavam e estão, como todos os demais, vinculados no âmbito das suas funções.

E, consequentemente, ficou o exercício de um dever cívico por parte da testemunha ferido por desrespeito maior dos seus direitos enquanto Cidadão, da sua dignidade e da sua honra. Mancha escusada no seu contributo para a realização de Justiça, que compreensivelmente perdurará para a mesma, face a quanto acarretou.

Fotos: Pesquisa Google

Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

01fev16

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1 Comment

  1. Henrique Guimaraes

    Antes de tecer qualquer comentário, quero aqui apresentar os meus parabéns pela forma que retrata o abuso de poder, que um pouco por todo país vamos assistindo impávidos e serenos, pelo que me congratulo com estas vozes da Razão e do Direito.
    O relato aqui divulgado remete-me de imediato para estados comportamentais de sociedades tipicamente absolutistas, como o Congo, ou Coreia do Norte e em última ratio para os tempos idos do colonialismo.
    De facto o Estado precisa de grandes reformas, logo a começar pelas Forças de Segurança em que a admissão de efetivos deverá passar pela formação altamente qualificada e constante, ao nível do Direito e não da antiga 4ª classe segundo os pressupostos do antigo regime.
    Forças de Segurança SIM, mas QUALIFICADAS.
    A FORÇA PELA FORÇA NÃO TEM LUGAR NA NOSSA SOCIEDADE.

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