Esta entrevista é uma reedição da publicada, em exclusivo, pelo “Etc e Tal Jornal”, na edição de 01 de abril de 2014…
Texto: José Gonçalves
Fotos: António Amen
É uma entrevista extensa. Agrada-nos o facto de ser exclusiva, mas mais, o de termos falado com uma pessoa aberta, humana, séria, corajosa, presente, ativa e lutadora. Castro Carneiro era capitão, com os seus 28 anos, quando há quatro décadas, se deu o 25 de Abril, e, na altura, comandou as tropas libertadoras nas ruas do Porto.
Tripeiro, mas criado em Sernancelhe, o, agora, coronel Castro Carneiro vive e contesta os momentos de austeridade impostos pelo Governo. Relevando a sua passagem por Angola em tempo de Guerra Colonial, o nosso convidado, também dirigente da Associação 25 de Abril, revela a insatisfação que grassa nas Forças Armadas, e que um novo 25 de Abril só poderá ser feito pela sociedade civil, tendo esta como sua arma: o voto.
Uma entrevista com muitos pormenores curiosos, os quais relatam a vida de quem hoje está muito atento à vida que se vive neste País. Para ler com atenção.
Quem é o senhor coronel, e quem é o senhor Castro Carneiro?
“Essa pergunta é difícil de responder. Nasci no Porto, fiz os meus estudos até ao 7.º ano no D. Manuel II. Chegado ao 7.º ano concorri à Academia Militar, onde estive três anos, terminando o curso em fevereiro de 1967. Fiz o Tirocínio em Mafra…
…e foi na Academia Militar que esteve com o Salgueiro Maia, o mais conhecido capitão da Revolução do 25 Abril?!
“Foi. Estive com ele desde o primeiro ano. O Salgueiro Maia entrou comigo na Academia Militar, na Amadora, em outubro de 1964.”
O CAMARADA … SALGUEIRO MAIA
E, então, fica pela Amadora até 1967?!
“Sim. O meu curso foi reduzido pela rápida necessidade de terem de arranjar oficiais para irem para a guerra, e, de fevereiro a setembro, estive em Mafra – uma vez que sou de Infantaria -, o Salgueiro Maia esteve, nesse mesmo espaço de tempo, em Santarém, porque era de Cavalaria. Independentemente desse facto, na Academia Militar, como os cursos de Infantaria e de Cavalaria são as armas combatentes mais ligadas à manobra militar, eu e o Salgueiro Maia tivemos muitas aulas juntos. As únicas aulas que tínhamos diferentes eram as táticas.
Qual foi, concretamente, a sua relação pessoal com o Salgueiro Maia, aquele que é, no fundo, um ícone do 25 de Abril de 1974?
“Foi um camarada que conviveu muito comigo… que viveu comigo. Fizemos tudo juntos! Na, altura, éramos cadetes e o Salgueiro Maia era um homem do meu curso. Entretanto, terminado o Tirocínio em setembro e a14 de novembro de 1967 parti para Angola. Eu e mais cinco camaradas, e isto sem saber para que região ia.”
Era aspirante?
“Sim. Aspirante do quadro. Fiz o Tirocínio como aspirante, no final do curso fui promovido a alferes e mobilizado para Angola, depois disso, e já em Angola, é que escolhemos os sítios para onde íamos.”
Vocês é que escolhiam os sítios?
“Sim. Apresentamo-nos em Angola, fomos ao Quartel- General, e dos cinco que foram daqui e do meu curso, eu fui dos primeiros. Havia cinco sítios para a gente poder escolher, o mais antigo foi o primeiro a escolher – na tropa funcionamos muito pela antiguidade – e assim por diante.
DE SERNANCELHE PARA A GUERRA
Recuando no tempo e retomando a minha pergunta inicial, uma vez que do resto da história relacionada com Angola falaremos daqui a pouco. Pergunto: quem era o senhor Castro Carneiro antes de partir para a guerra e até, antes de ser militar?
“Julgo que era um jovem como qualquer outro jovem do meu tempo.”
Mas, já tinha – digamos assim – o “bichinho” da carreira militar?
“Sim. Concorri três vezes à Academia Militar, portanto, era mesmo aquilo que eu queria. Depois de ter terminado o Liceu e não ter chumbado um ano, comecei a concorrer à Academia…”
Teve, por certo apoio familiar em termos financeiros, porque naquela altura não era fácil chegar-se ao liceu, quanto mais conclui-lo e candidatar-se a uma Academia. Não era para qualquer um…
“Sim, mas, a verdade, é que não vivíamos com tanta largueza como pode pensar. Tive, porém, algumas facilidades. O meu pai e a minha mãe sempre me apoiaram nessa escolha. A minha mãe com mais problemas que o meu pai, porque sabia que ia para a guerra, considerando, assim, a hipótese das coisas não correrem tão bem quanto o esperado”.
E Sernancelhe, concelho do distrito de Viseu, quando é que aparece na sua vida?
“Há nascença. O meu pai era de lá.”
“NASCI NO PORTO, MAS AS COSTELAS TODAS SÃO DE SERNANCELHE”
Aliás, teve da Câmara Municipal de Sernancelhe uma Medalha de Ouro…
…é verdade! É uma medalha que recebi com muito orgulho, porque foi a primeira Medalha de Ouro que o município atribuiu a um munícipe. Eu considero-me de Sernancelhe. Tenho, realmente. duas localidades da minha naturalidade: nasci no Porto e fui batizado na Vila da Ponte (Sernancelhe). A minha irmã, por exemplo, nasceu na Vila da Ponte e foi batizada aqui no Porto. Sernancelhe é, realmente, aquela que deveria ser a minha terra de origem.”
Quais as recordações que tem de Sernancelhe?
“Era o sítio onde ia passar as férias de estudante, quer à Vila da Ponte – à casa dos meus avós -, quer no Carregal, que é também uma freguesia do concelho de Sernancelhe, onde moravam aqueles que foram os meus avós de facto… que foram os meus padrinhos para toda a vida. É como lhe digo: nasci no Porto, mas, se calhar, as costelas todas são de Sernancelhe.”
Retomando agora a nossa conversa de há pouco, ou seja na altura em que vai partir para Angola…
“Parti para Angola em 1967, onde fiz uma Comissão no leste do país, região que escolhi. Na verdade, não sei bem se isso foi uma escolha, mas as escolhas na tropa faz-se por antiguidade e, por isso, a escolha é sempre relativa. Antes de mim escolheram três ou quatro e eu tive que escolher o lugar que estava em terceiro ou quarto na lista. Eles, no fundo, precisavam de mais gente no leste e menos gente no norte. Portanto, dos cinco que fomos, quatro foram para o leste”.
E a guerra, nessa altura, estava ao rubro?
“Tenho um pouco essa ideia, nomeadamente, no leste em que o MPLA estava bem implantado e começava a ocupar o território.”
RELATOS DE ANGOLA (LUVUEI)
Um jovem oficial chega ao terreno, depara com aquele cenário de guerrilha e para esse jovem Castro Carneiro a coisa, por certo, não foi fácil?!
“Não foi fácil, porque eram coisas com as quais não estávamos muito habituados, nem muito preparados. A Academia Militar preparou-me para comandar Divisões da OTAN (NATO). O tirocínio deu-me algumas noções sobre como comandar pequenas unidades – ou seja pequenas unidades até ao nível do pelotão -, e este estágio, porque ele tratou-se disso mesmo, dar-me-ia a possibilidade de vir a ser um comandante de Companhia em condições. Fui, assim, colocado na Companhia de um capitão do Quadro, que, por acaso, já tinha sido meu professor na Academia, e isto no leste de Angola, mais concretamente no Luvuei”.
E depois, como foi o confronto com a realidade?
“Todos vocês já ouviram dizer, mesmo aqueles que não estiveram na guerra, que a guerra tem coisas esquisitíssimas, e eu também tive algumas. A primeira com que me deparei foi a seguinte: quando cheguei ao Luvuei, à Companhia, o capitão que ia encontrar – o capitão Pimenta – estava de férias, pelo que o alferes miliciano que, na altura, estava a comandar a companhia, a primeira coisa que me disse foi que, devido a ser mais antigo e porque era do Quadro e ele miliciano, é que seria eu, a partir dessa altura, o comandante da Companhia. Não fazia a mínima ideia como aquilo funcionava…”
E nem conhecia o terreno?
“Nada! Tive que passar pelo Luso, onde estava o Quartel-General da Região Militar Leste onde quiseram levar-me desarmado para o Luvuei. Eu, e outro camarada que ia comigo, recusamo-nos a ir desarmados! Então, lá nos arranjaram uma espingarda, que, depois, a gente devolveu. Portanto, a ideia que eu tinha da guerra era um pouco aquilo que a gente ouvia contar: não podíamos ir desarmados para lado algum, sujeitando-nos a levar um tiro, sem nos podermos defender. É, evidente, que era uma ideia perfeitamente exagerada! Na realidade, não havia grandes problemas em ir numa coluna de reabastecimento e ir desarmado. Às vezes, essas colunas eram flageladas, mas não havia grandes problemas até porque levava-se sempre uma escolta.”
NOS “CUS DE JUDAS”…
E Luvuei era uma terra inóspita?
“Para as pessoas terem uma ideia sobre a região, há um livro muito engraçado do António Lobo Antunes, que esteve em Ninda, um sítio onde também estive. Não estive com ele, pois ele foi render o meu Batalhão, mas escreveu um livro intitulado “Os Cus de Judas”, e nessa obra descreve um sítio onde eu estive e passei uns maus mas também uns bons bocados, até porque na guerra não só há maus bocados.”
Esteve lá quantos anos?
“Estive um ano. Foi um estágio considerado comissão. Foi um ano para aprender a ser comandante de Companhia, e julgo que aprendi o suficiente… e bem.”
E passado esse ano?
“Passado esse ano regressei à metrópole e fui colocado nas Caldas da Rainha, no Regimento de Infantaria 5, que, na altura, dava cursos para sargentos milicianos, onde estive dois anos até ser promovido a capitão, isto em 1970. Depois fui, novamente, mobilizado para Angola.”
M’POZO: UMA “PORRA”!
Nessa altura já não sentia algo de anormal nas Forças Armadas e, neste caso concreto, no Exercito?
“Não. O que sentia, nos camaradas mais velhos, que já estavam com três Comissões, é o que se ia ouvindo, ou seja, da inutilidade daquela guerra! Era uma guerra perdida e que se tinha que resolver politicamente, mas ainda se discutia muito …”
Então, depois das Caldas foi mobilizado, uma vez mais, para Angola.
“Sim. Formei Companhia em Abrantes e Santa Margarida e, em agosto de 1971, fui para Angola outra vez. Chegado a Angola foi atribuído ao meu Batalhão o setor Noqui, que era a povoação que separava, na altura, Angola do Congo ex-belga.
Mas, eu acabei por ir para o M’Pozo que era um dos sítios que ninguém queria escolher. O meu Batalhão tinha dois capitães do Quadro: eu e o Garcia da Fonseca, e ainda um capitão miliciano. O comandante só nos colocou a hipótese – a mim e ao Garcia da Fonseca – de um de nós ir para o M’Pozo que era, como referi, considerado o pior sítio.
Acontece, e ainda hoje falo nisso com os meus camaradas, que, ao contrário do que se pensa, que me ofereci para o M’Pozo para ganhar medalhas, a verdade, é que o Garcia da Fonseca – estávamos a lançar granadas em Santa Margarida – apanhou com um estilhaço numa vista e portanto não pôde ir connosco no barco devido ao facto de estar internado no hospital. Como ele não estava no barco, o “Vera Cruz, a escolha foi feita entre mim e um alferes miliciano. Como ninguém queria ir para o M’Pozo… jogamos à sorte!
Foi tipo Roleta Russa?!
“Não. Foi jogar à Porra. Joguei à Porra e a mim calhou-me o M’Pozo!”
Mas que grande porra?!
“Mas que grande porra! (risos). Mais uma vez não tive sorte ao jogo (risos).Se calhar hoje, e pensando bem não tinha jogado, uma vez que não era só eu que lá estava em jogo…”
“QUEM DEFENDEU AS POPULAÇÕES LOCAIS FOI A TROPA E NÃO OS COLONOS!”
E eis o M’Pozo.
“O M’Pozo não tinha ninguém. No M’Pozo éramos nós, a FNLA – na altura chamados de “terroristas” – e os bichos. Não havia civis. Tudo aquilo que não fosse nosso era para dar tiros. Se fosse bicho a gente matava para comer, se fosse inimigo matava para viver.”
Esse contacto direto com a realidade foi difícil?
“É aquilo que torna adulto um homem aos 25 anos. Eu cresci depressa. Fui obrigado a crescer depressa. Depressa demais! Não havia outra hipótese! E penso que todos os oficiais do 25 de Abril viveram essa circunstância.”
Perguntou-se, na altura, sobre o que é que por lá estava a fazer? Que causas estava a defender?
“Sim. Era inevitável que essa pergunta aparecesse. A gente às vezes não se apercebe bem disto, mas, realmente, se alguém defendeu as populações locais, até um pouco contra a colonização portuguesa, foi a tropa e não os colonos. A nossa colonização não foi tão exemplar como, às vezes a gente pensa. Nem nada que se pareça”.
Com estas experiências foi formando-se…
“…exatamente!”
“SOU UM HOMEM DE ESQUERDA…”
Isso não era, com certeza, fácil. Com quem é que desabafava?
“Não foi fácil. Desabafar? Falava muito com o meu comandante de Batalhão, que desde sempre, e por aquilo que eu lhe ia dizendo, achava que tinha uma preparação política já suficientemente desenvolvida para a altura, o que não correspondia à verdade. Ele julgava que eu era um homem de esquerda…”
…na altura não era?
“Não. “
Agora é?
“Agora sou! Na altura falava o militar e fiquei com a noção muito clara, até por tudo o que tinha aprendido na Academia Militar, que aquilo não era português; aquilo nada tinha a ver connosco…
Fala em Angola?
“Sim. Angola, as populações, ou seja, o elemento humano que compõe Angola nada tinha a ver connosco. Aquilo que lá estava e que se podia aproximar, minimamente, seriam os colonos brancos, ou até os naturais, filhos dos primeiros colonos, mas que não funcionavam da nossa forma.”
Era a guerra deles…
“No mato!”
Onde se fizeram diversas atrocidades?!
“Eu não diria isso, até pelo facto de termos travado uma guerra de baixa intensidade…”
De guerrilha, que é a pior que a convencional.
“Pois, mas mesmo como de guerrilha, a guerra era de baixa intensidade, porque, nem nós tínhamos a possibilidade de escalar muito na guerrilha, nem eles tinham o apoio suficiente para isso. Aliás, onde as coisas evoluíram mais, e mais rapidamente, foi na Guiné, e, aí, a intensidade não era assim tão baixa quanto isso. Muito embora a gente tivesse tido baixas comparáveis, ou superiores até – isto em termos percentuais – aos norte-americanos no Vietname, a verdade é que esta guerra durou muito mais tempo.
Bem, no fundo, não sentia Angola como minha e, como tal, era difícil arranjar justificações para estar ali a arriscar a vida.”
“MELO ANTUNES FOI A PRIMEIRA PESSOA QUE OUVI DIZER QUE A GUERRA NÃO SE RESOLVIA MILITARMENTE E QUE SE TINHA DE ACABAR COM O ESTADO NOVO!”
A história em Angola não fica por aqui. E retomando o fio à meada, devido a problemas com o gravador que regista a entrevista, voltemos ao M’Pozo…
“Dizia-lhe, na altura, que quando cheguei, pela segunda vez a Angola, e fiquei a comandar a minha Companhia. Várias desgraças, posteriormente, me aconteceram, entre elas, a menor: ter-me rebentado o paiol da Companhia. Houve feridos, mas não se registaram mortos. Mesmo assim, foi um pandemónio. A segunda desgraça, que me deu a noção que nada tínhamos haver com aquilo: foi uma cena mais macabra que eu pedia o favor que não publicasse…”
…ficou perturbado com a situação.
“Isto deixa marcas. Há coisas que ficam para a vida toda!”
Continuemos e ainda com o tal ataque…
“O ataque foi uma coisa complicada – isto a propósito da minha tomada de consciência política. Na altura, o meu batalhão estava integrado num setor – uma espécie de Região Militar –,fiz a mensagem do ataque para o setor e para o batalhão, mas no setor não acreditaram muito que aquele ataque tivesse a importância que estava a transmitir na mensagem. De maneira que mandaram lá um oficial de operações, para analisar se estava, ou não, a inventar. O oficial de operações era só o major Melo Antunes. Ele foi a primeira pessoa que eu ouvi na minha vida a dizer: isto não se resolve militarmente! Isto só se resolve, politicamente. Temos de acabar com estes gajos!” Foi a primeira vez que ouvi da boca de um oficial que era preciso acabar com o Estado Novo.”
Terá dito, para si, que já havia alguém que alguém partilhava o seu pensamento?
“Não. Fiquei com cara de parvo a olhar para ele. Nunca me tinha passado pela cabeça – acredite – que a solução para a guerra era uma solução política e não militar. Estávamos em mundos diferentes. Só que o major Melo Antunes era dos poucos militares formados politicamente, coisa que eu não era. Aí terminou a minha Comissão.
O M’Pozo era um sítio complicado e um local que precisava de ter gente com experiência, que, no meu caso, não era muita mas já alguma. O capitão que me foi render era um dos do CCC (Curso de Capitães Cadetes). Tratava-se de oficiais milicianos que faziam aqui o seu curso e depois iam quatro meses a Angola ou a outra “província” qualquer. fazer uma espécie de Tirocínio junto de capitães do quadro. Era um bom sítio para aprender depressa!
Antes da Companhia regressar, ou seja, antes de terminar a Comissão Liquidatária, esse capitão que me substituiu, teve uma emboscada e perdeu 17 homens, e isto por uma razão, extremamente simples: na minha Companhia era preciso ir buscar tudo – comida, lenha, água, etc – e os homens que foram para a lenha levaram as armas debaixo da lenha… ficaram lá dezassete, assim de uma vez!”
Quando terminou a Companhia regressou à metrópole?
“Ainda não. Tive, entretanto que entregar os papéis, e tudo isso ficou lá. Chamava-se a isso Comissão Liquidatária, isto já em Luanda, por lá fiquei eu, o primeiro sargento da Companhia e mais um furriel ou dois. E um dia à noite, estava num dos cafés mais frequentados pelos militares em Luanda, quando aparece o capitão Moreno, que tinha sido meu camarada na Academia. Ele abeirou-se de mim e convocou-me para uma reunião na Companhia de Comandos e Serviços do Quartel-General de Luanda. Nessa reunião assinou-se o tal documento e depois regressei à metrópole.
Fui, então, colocado no Centro de Instrução de Condução Auto N.1 (CICA), junto ao palácio, no Porto, onde se encontra atualmente uma valência do Hospital de Santo António. Esse foi o Quartel-General do 25 de Abril aqui no Porto”.
“QUEM MANDAVA MAIS NÃO ERAM OS GENERAIS, MAS OS CAPITÃES!”
Disse há pouco que não sentia Angola como sua. Essa Ideia era comummente aceite pelos seus camaradas? Terá sido essa uma das razões para a revolta do 25 de Abril?
“Isso é mais complicado. Aquilo que nunca se daria sem esta guerra, era o facto de nós termos partido num exército em que quem mandava mais não eram os generais, mas os capitães!”
Há quem diga que o 25 de Abril surge, porque os capitães estavam a perder mordomias. Costa Gomes e Spínola eram uma referência mas estavam ligados ao regime?!
“Não. Quer o Costa Gomes – que, na altura comandava Angola e que até chegou a visitar-nos no M´Pozo-, quer o Spínola – que comanda a Guiné. O que a gente sentia, é que com mais ou menos comissão, aquilo estava perdido.”
“HOUVE ALGUÉM QUE SE ORIENTOU À CONTA DA GUERRA? HOUVE, POR EXEMPLO, O VALENTIM LOUREIRO”
Quando é que se dá o “clique” para a revolução?
“Isso foi a evolução do movimento dos capitães. O 25 de Abril começa por um problema que só diz respeito a militares. Nada com capitães e com as tais mordomias que falou há pouco. Só para sua informação, e em relação às mordomias, há muita gente que tenta espalhar essa ideia, mas, como alferes, no Luvuei, ganhava menos que um polícia em Teixeira de Sousa, uma cidade do noroeste de Angola. Alguém se orientou à conta da guerra? Se calhar. A gente até conhece os nomes e vocês também os conhecem a todos, como por exemplo o Valentim Loureiro. Agora, que eu conheça militares ricos à conta da guerra? Não conheço um.”
Alguns, sabe-se, até se encontram-se em situação crítica.
“Sim. Muitos estão a ser tratados de forma perfeitamente indecente por estes governos. Mas, enfim!”
Isso da perda das mordomias é mentira.
“É mentira, e tanto é porque quando se fez a Revolução do 25 de Abril, já o Estado Novo, com o Marcelo Caetano e os respetivos ministros, tinha prometido aos militares aumentos de vencimentos. Portanto, o 25 de Abril foi feito já com essas promessas, e, mesmo assim, nós não mudamos de rumo por causa disso.”
Regressemos à história no terreno.
“Durante dois anos fui atacado numa altura em que os movimentos de libertação foram à ONU apresentando provas de que tinham prisioneiros, que dominavam o território e a situação em Angola. A minha Companhia, que estava a 15 quilómetros da fronteira com o Congo ex-belga, foi, então, atacada no quartel por forças da FNLA, Felizmente não conseguiram apanhar ninguém da minha Companhia, mas, mesmo assim, tive um morto e seis feridos”.
Essas forças eram, ou não apoiadas pela, então, União Soviética?
“Não sei se a FNLA era apoiada pela União Soviética. O MPLA talvez fosse. As únicas armas que apanhei no norte eram de fabrico soviético (Kalashnikov e Simonov). As minas não eram soviéticas… eram europeias ou americanas… não me recordo.”
“EU SABIA QUE SE MORRESSE (EM COMBATE), ALGUÉM IRIA TOMAR CONTA DA MINHA FAMÍLIA, AO CONTRÁRIO DO QUE AGORA ACONTECE”
Como é que conseguia mobilizar as suas tropas quando, você próprio perguntava-se sobre o que ali estava a fazer?
“Há princípios que nos distinguem – e isto não quer dizer que seja melhor ou pior – da sociedade civil. O militar cumpre missões, Se eu não quiser fazer isso só tenho uma solução: é ir-me embora!”
Quase tal como um padre?
“Eu não queria ir tão longe, porque a gente pode casar-se. Mas, se eu fui mobilizado para Angola, tinha de levar a missão que aceitei até ao fim.”
Mas, havia, para com quem partia, um sentimento de compaixão, do “tadinho que lá vai ele”. Isso devia ser perturbador?!
“Não. Essa hipótese, para mim, nunca existiu porque havia uma certeza que, agora, estão a tirar aos militares: eu sabia que se tivesse o azar de ter algum problema grave – por exemplo: morrer em Angola – alguém iria tomar conta da minha família. Isso era uma garantia. Garantia essa que, agora, não estão a dar os militares.
Não se pode pedir a um militar que vá para o Afeganistão, sujeitando-se a levar um tiro, e depois dizer-lhe: olha se levares um tiro, a tua família morre à fome!”
Mas também dizem que se esses militares não levarem um tiro e não morrerem… ganham um balúrdio.
“Ganham um balúrdio, mas não é o Estado português que lhes paga.”
Então quem paga?
“Paga a OTAN –NATO e outras organizações internacionais a ela ligadas, e, mesmo assim, os militares portugueses devem ser dos que menos ganham de todos aqueles que lá estão. Esse balúrdio é sempre um balúrdio ao nível português”.
“NA GRÉCIA PARTIRAM TUDO E NÓS, AQUI, NADA PARTIMOS. VAI SER PRECISO PARTIR!”
Todas estas coisas têm perturbado as Forças Armadas, mas também as de segurança que, à data desta entrevista, se manifestam em Lisboa. Isto, na realidade, não são coisas com que se deva brincar…
“… é verdade! Mas, os governantes têm brincado demais com essas coisas, e só tem brincado demais, porque, realmente, nós somos pacíficos por natureza. O que está a acontecer revolta-me de uma maneira que você não imagina.”
Acha mesmo que somos pacíficos depois de guerras civis, de um regicídio, de assassinatos e por aí fora, e isto só no período de um século e tal… em meados do de XIX e no anterior?
“Isso foi na I República. Agora, já no século XXI, quando este pacto (Troika) começou, na Grécia, eles partiram tudo, e nós aqui nada partimos.”
E era preciso “partir”?
“Eu acho que vai ser preciso partir. Não tenho dúvidas. Vai ser preciso partir, porque eles não partem. Temos o Presidente da República e o primeiro-ministro que não partem coisíssima alguma! Eles estão lá de pedra e cal até destruírem isto tudo!”
CICA: O QUARTEL-GENERAL DA REVOLUÇÃO DO 25 ABRIL NO PORTO
Retomemos a sua história e a ligação à Revolução de há 40 anos. Regressado à Metrópole é colocado no CICA que, como disse, foi o Quartel-General do 25 de Abril, no Porto. Ora, muita gente não sabe que esse foi o Quartel-General da Revolução na cidade Invicta…
“…foi! Foi aí planeado o 25 de Abril no Porto”.
Regressa, assim, à sua terra natal.
“Na altura, havia algum cuidado nisso, porque eles percebiam que não dava para aguentar indefinidamente o “ir lá para fora”. É que estávamos aqui um ano e íamos dois lá para fora. Quando a minha filha mais nova nasceu eu estava fora…”
…quantos filhos têm?
“Tenho três. Duas raparigas e um rapaz. O rapaz é o do meio.
Algum deles seguiu a carreira militar?
“Não! Graças a Deus… não. Eles nada têm a ver com a vida militar.”
Portanto, é colocado, então, no Porto, no Centro de Instrução de Condução Auto (CICA)…
“…e no CICA começaram a realizar-se certas reuniões. Era, na altura, comandante o coronel Coelho e era segundo comandante o major, agora general, Azeredo – um spinolista dos quatro costados . Estavam também colocados o major Albuquerque, o major Borges, o capitão Gonçalves, eu, e o capitão Mota.”
Tudo no CICA?
“Tudo no CICA”
E, então a Região Militar do Norte?
“A Região Militar do Norte nada tem a ver com isto. O QG era comandado por um coronel e era o sítio onde estava o general, esse general foi um dos que foi à Brigada do Reumático. Ele era o reumático da Região Militar do Norte”. (risos)
Havia gente no QG que sabia do que se estava a passar, incluindo o Paulo Corbacho, que foi comandante da Região a seguir ao 25 de Abril, já graduado em brigadeiro.”
Então, estão no CICA…
“…e é no CICA que se começam a desenvolver as tais reuniões.”
Como?
“Havia um representante, normalmente o capitão Gonçalves, que ia a todas as reuniões. Foi à de Évora, a 09 de setembro de 1973. Eu ainda não estava cá. Quando cheguei, eles já tinham o esquema montado e que funcionava assim: um representante aqui de cima – o capitão Gonçalves – ia às reuniões e depois transmitia-nos o que lá tinha acontecido.
Nas reuniões do CICA estavam, normalmente, presentes o major Albuquerque, o major Borges, o capitão Gonçalves, eu, o capitão Mota, o Corbacho que se juntava, e o segundo comandante da PSP, que também era capitão.”
O DECRETO DE SÁ VIANA REBELO
A PSP estava, na altura, ligada com o Exército?
“Na altura, a PSP era comandada por militares.”
Mas, essas reuniões preparavam já a revolução?
“Não. Nós, de início, só estávamos a tratar do problema militar relativo ao decreto do Sá Viana Rebelo. Nessas reuniões, e à medida que as mesmas foram andando, fomos chegando à conclusão que não se conseguia resolver o problema a não ser derrubando o governo, como o Melo Antunes tinha dito. Quando a política começou a aparecer nas reuniões militares, então, a primeira coisa que se tinha que fazer, era a de perguntar aos portugueses se queriam continuar com a guerra?! Isto começa por um problema, especificamente militar, que é, repito, o decreto do Sá Viana Rebelo. A coisa começa em 1973 até ao despoletar da granada no 25 de Abril.”
Aí, o então, capitão Carneiro começa a estar muito atento à situação…
“…começo a tomar nota dessas reuniões .”
E a tomar posições?!
“Não. As reuniões, aqui em cima, não era realizadas com o intuito explicito de tomar posições.”
Então, para que serviam as reuniões?
“Serviam para transmitir o que a malta tinha combinando lá em baixo. As reuniões aqui em cima (Porto) eram, fundamentalmente, descritivas daquilo que tinha acontecido lá em baixo (Lisboa).”
Eram só reuniões informativas, não opinativas.
“Eram reuniões informativas, mas a gente, perante o homem que nos representava na reunião, transmitíamos-lhe aquilo que achávamos que ele devia falar lá em baixo.”
E confiavam um nos outros?
“Em termos militares não há razão para eu desconfiar dos meus camaradas e logo no CICA, onde éramos poucas pessoas. A desconfiança começa a 26 de abril. Aí é que começam as coisas a torcer-se, porque até ao 25 de Abril não há razão nenhuma para que tal acontecesse.”
BANAZOL FOI O PRIMEIRO HOMEM A FALAR EM PÔR TROPAS NA RUA
Como é que, então, começa a evoluir a questão, de forma conclusiva, rumo ao 25 de Abril de 1974?
“Vamos dando elementos para o plano do Otelo. O que é que vamos fazer cá em cima? Eu dir-lhe-ia que foi na reunião de Óbidos que, pela primeira vez, nos chega cá em cima, a informação que o Banazol é o primeiro homem a falar em pôr tropas na rua. Ele tinha um batalhão para ir para a Guiné e sugeriu coloca-lo nas ruas.
Curiosamente vim a sofrer algumas consequências disso, porque a PIDE; o Marcelo, ou alguém – não faço a mínima ideia – souberam dessa proposta do Banazol e mandaram-no de avião para a Guiné, e o Batalhão por barco.
Eu fui um dos nomeados para levar o referido Batalhão para a Guiné. Eles aperceberam-se que as coisas estavam a ficar tortas, e isto foi tão de repente, que julgo ter sido a primeira vez que, em treze anos de Guerra, foi um barco cheio para a Guiné, e da Guiné veio um barco com quatro oficiais a bordo: era eu, o capitão Ramalho, o major Martins Rodrigues e o major Castanheira. Fomos os quatro nomeados para levar, em dezembro de 1973, e à pressa, o Batalhão à Guiné. Estávamos com algum receio que o Batalhão não aceitasse essa mudança – eu passei o fim do ano de 1973 no barco – mas pronto…”
Aí já estava consolidada a ideia da Revolução?
“Já estava criada a ideia de que tínhamos de acabar com o regime de qualquer maneira. Também, nessa altura, começaram a aparecer as propostas de aumentarem-nos os vencimentos. Eles estavam a sentir que o tapete lhes estava a fugir dos pés. A própria reunião da Brigada do Reumático é já na sequência de que a coisa não tinha ponta por onde se lhe pegasse.”
“O HOMEM DO MOVIMENTO DAS FORÇAS ARMADAS ERA O COSTA GOMES”
Tiveram que encontrar uma liderança nesse processo?!
“Ora bem. A liderança aparece, precisamente, com a demissão do Spínola e do Costa Gomes. É evidente que nem o Spínola, nem o Costa Gomes são pessoas que se pareçam. É evidente também que, como em tudo que é político, é preciso encontrar aliados. O Spínola era um homem com força; a força que lhe tinha sido dada por militares pelo comando que ele tinha feito na Guiné, mas o homem do Movimento das Forças Armadas era do Costa Gomes! O homem que a gente queria como Presidente era o Costa Gomes, e houve alguma surpresa quando apareceu o Spínola como chefe da Junta de Salvação Nacional.”
O Costa Gomes e o Spínola eram inimigos de estimação?
“Eu julgo que eles nunca foram inimigos. O Costa Gomes era um homem muito político, portanto, não era homem para fazer grandes inimigos.”
Mas, entre eles, havia uma certa distância…
“… nada tinham nada um com o outro. Aliás, isso viu-se depois do 25 de Abril”.
“NO GOLPE FRACASSADO DE 16 DE MARÇO HOUVE ALGUÉM QUE FEZ ASNEIRAS E NÃO ELES (OS MILITARES)”
Regressemos ao CICA, aqui no Porto, onde estão reunidos os quatros oficiais…
“…esses quatro oficiais que foram levar o Batalhão para a Guiné, era um de cada Unidade para não haver problemas. Eu estava no CICA, o Ramalho estava no RIP, o Martins Rodrigues no Cavalaria, e o Castanheira estava no RASP.”
Regressa da Guiné, depois de levar o tal Batalhão, e…
“… e isso foi apenas uma pequena passagem. Bem… depois, as coisas vão desenvolvendo-se naturalmente. Lembro-me de ter sido, já cá, contactado pelo Dinis de Almeida, que era do meu curso, e foi ter comigo ao RIP para me dizer que a “coisa” estava resolvida e que íamos avançar. Então, a 23 de abril de 1974…”
… ah! Mas, antes há o fracassado o golpe de 16 de março de 1974, das Caldas da Rainha?!
“Aí houve uma descoordenação qualquer. A malta das Caldas era muito nova, impulsiva, e alguém fez asneira que não eles. Eles fizeram aquilo que lhe disseram para fazer.”
O 25 DE ABRIL NO PORTO
E está prestes, então, a iniciar-se a revolução, com a mediática saída das tropas comandadas por Salgueiro Maia, de Santarém, rumo a Lisboa. Há muita gente que ainda pensa que só a partir deste ato é que se deu a Revolução…
“…não! A Unidade do Salgueiro Maia foi uma das que saiu. Mas o centro nevrálgico foi sempre Lisboa. O Posto de Comando estava instalado na Pontinha. É aí que se encontra a cabeça do 25 de Abril! Havia contacto com todas a Unidades: para o norte, centro e sul. Tudo foi feito pelo Otelo Saraiva de Carvalho. A malta – quando digo a “malta” refiro-me a toda a gente que esteve no 25 de Abril – esteve encarregue de fazer isso.”
Porto. 23 de abril…
“…no dia 23 de abril de 1974, o major Albuquerque telefonou para minha casa, isto às nove da manhã, para ir ao Quartel e levar o Plano de Operações do 25 de Abril. A gente já tinha, na altura, tudo preparado: era preciso tomar o Quartel-General; era preciso prender o Brigadeiro – Segundo Comandante; era preciso prender o chefe do Estado-Maior ; tínhamos que controlar a ponte da Arrábida; e tínhamos – uma vez que vamos ficar sem forças no CICA, e o CICA está perto do quartel da GNR afeto ao regime – que trazer para aqui uma Companhia de Lamego.
Depois, era ainda preciso tomar conta das antenas do “Rádio Clube Português”, em Miramar, e tomar conta do aeroporto de Pedras Rubras, assim como do quartel da Legião. Tudo isto já constava do Plano de Operações, com missões para cada uma das Unidades”.
Nenhuma (Unidade) disse “nim”?
“Nessa altura já não havia “nins”, já estava tudo resolvido. A gente sabia, perfeitamente, quem ia sair e quem não saía.”
Penso eu que no dia 24 de Abril estava tudo com os rádios ligados para ouvir a canção que serviria de senha para partirem para a Revolução?
“Dia 24 de Abril… mas só à noite! Antes, porém, mas já no dia 24, fui, logo às oito da manhã, como o capitão mais moderno que está metido nesta “brincadeira”, levar o Plano de Operações a Lamego, onde o entreguei ao, então, capitão Fonseca. Fui levar o mesmo Plano a Bragança, a Vila Real e ainda a Chaves. Íamos à civil. “Ìamos”: eu e o alferes (miliciano) Pêgo que conduzia a viatura e não sabia do que se ia passar.”
AS PERIPÉCIAS DE UM PÉRIPLO PELO NORTE NA VÉSPERA DA REVOLUÇÃO
Isso sem autoestradas foi um dia inteiro de viagem desgastante.
“Foi um dia inteiro! “.
E tudo à última da hora.
“Não. As missões já estavam atribuídas, aquilo que fizemos foi só confirmar o que era preciso fazer. Portanto, com o alferes Pêgo dei, então, esta volta pela Região Militar Norte. Eu fui com uma G3, num Austin Mini , debaixo do assento do carro, e à civil. Eu não me entendia com pistolas – ainda hoje não me entendo. Aquilo só serve para assustar. De maneira que, nestas voltas, julgo que foi perto do Marco, que quando estávamos a regressar – eram para aí umas sete da tarde – o carro avariou, e logo por azar frente a um polícia. O polícia dirigiu-se-nos, com a melhor das boas vontades, para nos querer ajudar. Eu, nesse momento, só estava preocupado em saber quando é que o homem ia olhar para a G3 que estava por debaixo do banco. Não olhou. Não viu. De maneira que não houve problemas.”
Identificaram-se, naturalmente, como civis.
“Julgo que ele nem nos pediu a identificação.”
À ESPERA DA “GRÂNDOLA”!
E depois, também não tinham que bufar ao balão, porque não havia coisa dessas na altura…
É verdade (risos). O carro lá pegou, tendo chegado ao CICA já de noite. Fui fardar-me e, como vinha na Ordem de Operações, esperar, com o rádio ligado, que tocasse a Grândola.”
E a “Grândola” parece que “tocou” um pouco mais tarde da hora a vós anunciada?!
“Acho que não. Não tenho ideia. Nós não estávamos assim tão ansiosos. Na altura, todos os praças estavam a dormir, já que não deixaram sair ninguém do quartel, ou seja: não houve dispensas de recolher nem de pernoita. Depois, fui para o gabinete do Comandante, que também sabia do que se estava a passar, ouvir a rádio.”
“JULGO QUE A PIDE SABIA O QUE SE ESTAVA A PASSAR!”
Quer dizer que os praças não sabiam do que se estava a passar. E a PIDE? Será que a PIDE sabia?
“Julgo que a PIDE sabia”.
Houve conivência entre ambas as partes?
“Não. Vamos lá ver. O problema tem de ser posto assim: se pensarmos bem, o que é que eles (PIDE) iam fazer? Por que é que eu me sentia muito à vontade para estar nesta conspiração? Porque eles precisavam de mim! Se me prendessem, e a mais duzentos ou trezentos capitães, quem é que ia lá para fora? Acabava a guerra! Eles podiam saber, mas… nada podiam fazer. Eu, nada tinha a perder se me prendessem. Era só trocar uns meses de estadia na prisão, por uma Comissão onde estava sujeito a levar um tiro.”
E, então, eis que toca a “Grândola”…
“…antes, o “Depois do Adeus”, do Paulo de Carvalho, que era o aviso. A “Grândola”, do José Afonso, é que era a senha para sair”.
E “DEPOIS DO ADEUS!”
E “Depois do Adeus” não colocaram os soldados em formatura, para saberem quem alinhava, ou não, com o MFA, e isto antes de se ouvir a “Grândola”? Tinham de saber, por certo, com quem contavam depois do “aviso” de que tudo estava a correr bem…
“Vamos já lá! Ora bem. Ficamos à espera da “Grândola” no gabinete do Comandante. Estavam lá, o Comandante (naturalmente!), o Azeredo, o Albuquerque, o Borges e eu. O capitão Gonçalves tinha, entretanto, sido nomeado, como um dos tenentes das Caldas Rainha (golpe fracassado a16 de março) para Peniche, porque ele era o “correio” entre o norte e Lisboa.
E, então, eis que toca a “Grândola Vila Morena” e… nós saímos. Antes, porém, formei a minha Companhia… mandou-se formar o CICA inteiro. O Comandante veio cá fora e disse: “Meus senhores, vamos fazer isto assim-assim, mas se houver alguém que não o queira fazer dê um passo em frente!” Houve um furriel que deu um passo em frente. A esse furriel foi dito: “Vais para a prisão!”
E foi logo para a prisão?
“Logo! Quando se chega aqui não há volta a dar, isto foi automático. Não podíamos ficar com alguém, numa altura destas, que não quisesse participar “na coisa”. Ele, contudo, foi solto no dia seguinte.”
Vocês tinham, entretanto, recorrido às tropas sediadas em Lamego…
“Exatamente! Nesta “coisa” qual é o meu papel no meio disto tudo? O Corbacho, que era Comandante da Polícia Militar do Quartel-General, a 25 de Abril, nomeou um alferes da sua Companhia para lhe abrir a porta do Quartel-General. Isto das revoluções sempre se fizeram às portas dos quartéis, não se fizeram em outro lado: não há cá assaltos heroicos. É pela porta que a gente costuma entrar. Portanto, estava nomeado esse alferes que, quando chegou a hora, foi, então, abrir a porta e nós tomamos conta do Quartel-General (QG). A minha companhia era comandada pelo Azeredo, pelo major Albuquerque e pelo Corbacho. Esses três foram tomar conta do QG. O major Borges foi, entretanto, prender o Brigadeiro, segundo Comandante da Região Militar, e eu o Chefe de Estado-Maior da Região Militar.”
A DETENÇÃO DA ÉLITE MILITAR DO ANTERIOR REGIME
A que horas isto aconteceu?
“Por volta das duas da manhã de 25 de abril. Fui no carro do Comandante e parei à porta da residência do Chefe do Estado-Maior, onde estive à espera até às seis da manhã. Não toquei à campainha… nada fiz! Entretanto, as tropas já estavam dentro do QG. Não havia tropas na rua!”.
Então, aqui no Porto, as tropas saíram à rua mais tarde que em Lisboa?
“Não. As tropas saíram com a Grândola, só que às seis da manhã, já estavam no QG e não estavam na rua. Das operações que se realizaram mais tarde, julgo que fui o último a chegar, novamente, ao CICA, já com o coronel chefe do Estado-Maior detido. Digamos que na operação nem em tudo correu bem. Uma das coisas que a tropa que foi tomar o QG deveria ter feito era ter preso o General Comandante, que lá vivia, mas que, nesse dia, o pessoal pensou que ele tinha ido para Lisboa. Mas, não! A verdade é que ele estava mesmo no QG e ninguém o prendeu. Assim, ele conseguiu telefonar para o Comandante da Polícia, que colocou as suas forças na rua, telefonou ainda para o Chefe do Estado-Maior e para o Brigadeiro segundo Comandante.”
O coronel Chefe do Estado-Maior já não tinha hipóteses quando o deteve?
“Não tinha hipóteses! Ele foi perfeitamente civilizado, percebendo que eu o ia deter quer ele quisesse, quer não quisesse.”
Quando é que a população adere à revolução? Lembro-me, ainda catraio, à beira da PIDE, na Rua do Heroísmo, de militares lá presentes com uma – vim a saber depois – autometralhadora…
“Na PIDE já é a 26 ou 27 de Abril.”
Ah! Mas, no dia 25 de Abril o povo adere, facilmente, à Revolução, ou não? Foi o senhor, agora, coronel, que comandou as tropas na rua?
“Fui, porque era o capitão mais moderno.”.
A CHEGADA DAS TROPAS LIBERTADORAS AO “CORAÇÃO” DO PORTO
Deram-lhe a si o “25 de Abril” nas ruas da cidade do Porto!
“Bem! A primeira vez que a cidade viu tropas nas ruas, foi a mim que me viu! Entretanto, a manhã passou-se com alguma ansiedade, porque a única comunicação que nós tínhamos com o QG era por telefone civil, e aqui os TLP cortaram… os telefones. Depois de almoço, após a chegada da Companhia de Lamego ao Porto – passou na Avenida dos Aliados por volta das oito da manhã – e, estando com alguma ansiedade no CICA – o Comandante era o tenente-coronel Simões – quisemos saber o que se estava a passar no QG. Só que estávamos sem telefones… estávamos sem contactos. De forma – julgo que depois de almoço – o Comandante deu-me ordem para ir aos TLP para restabelecer as ligações.
Peguei, então, no pelotão da Companhia de Lamego e fui à Picaria…”
Vai ao centro do Porto.
“Ora bem! Estava a descer a Rua de Ceuta, em cima dos unimogs, e a subir, na mesma rua, uma série de gente corrida pela Polícia. Quando me viram com os unimogs – isto quer as pessoas, quer a Polícia -, eu em cima, e eles lá em baixo na Avenida dos Aliados, ficamos ali todos sem saber o que fazer. Ficamos a olhar uns para os outros. Até que o pagode desatou a pegar em pedras e correu com a Polícia em três tempos. Interessante é o facto que o único polícia que ficou ferido – levou uma pedrada – era meu conhecido, porque era da esquadra de Central de Francos e eu morava lá à beira. Eu pedi-lhe desculpas pelo sucedido, porque não consegui deter a coisa. A malta correu com aquilo em poucos minutos.”
E a zona oriental da cidade estava controlada pelas tropas?
“Não. Aí não havia tropa alguma”.
“FUI A UMA BARBEARIA NA RUA DE CEUTA TELEFONAR PARA O QUARTEL-GENERAL PARA LHES DIZER O QUE ESTAVA A ACONTECER”
Pensei que o RASP (Regimento de Artilharia da Serra do Pilar), em Gaia, viesse tomar conta dessa zona da cidade…
“…não! Eles estavam a tomar conta da Ponte de D. Luiz.”
E, então, ainda na célebre Rua de Ceuta, o que é que aconteceu mais?
“Fui a uma barbearia, a chegar à Avenida dos Aliados, telefonar para o Quartel-General (QG) porque não tinha comunicações e precisava de lhes dizer o que estava a acontecer.”
Quando saiu com as tropas para a rua, já lá estava uma multidão…
“Já era o fim-do-mundo! Fui depois aos TLP dizer ao senhor para pôr os telefones a funcionar.”
Não teve oposições?
“Não tive. Foi tudo sereno… sem problemas”.
Em Lisboa foi mais complicado.
“Sim, porque em Lisboa havia forças militares que estavam ao lado do Regime.”
Aqui, no Porto, não?!
“Não. Acabamos por não prender o General, é certo, mas prendemos o Brigadeiro e o chefe do Estado-Maior. Entretanto, o General não podia sair da residência porque, se assim fosse, também seria preso. Aquilo que a gente fez… fez bem. Em Lisboa o mesmo não terá acontecido até porque a cabeça era muito maior.”
“AS “COISAS”, AQUI NO PORTO, CORRERAM MELHOR QUE EM LISBOA”
Onde e como é que vive os dias logo a seguir ao 25 de Abril?
“No CICA. Vivíamos o problema de como é que iríamos sair daquilo. Na altura, estava tudo a correr bem, estávamos a controlar tudo. As coisas aqui no Porto, em relação a Lisboa correram melhor porque a gente conseguiu decapitar aquilo que, realmente, nos pudesse opor. A Polícia teria sido a única força que não deveria ter saído, até porque até isso estava previsto, mas, infelizmente, o capitão morreu, oito dias antes do 25 de Abril, com um ataque cardíaco.”
E isso em nada facilitou o vosso trabalho.
“Pois, porque se ele lá tem estado, era preso, e a Polícia não tinha saído. Esta foi a única coisa em que o planeamento falhou. Mas, a partir daí, a gente já sabia que a Polícia podia fazer asneiras.”
A Polícia, contudo, foi corrida.
“Foi. Ela foi corrida assim que apareci. Não fiz nada contra a Polícia, nem fiz nada a favor da população. Paramos ali uns segundos – eles lá em baixo e eu cá em cima – e depois houve alguém que pegou numa pedra da calçada e depois daí nunca mais ninguém segurou ninguém!”
“AS ARMAS DOS MILITARES NÃO DEVEM FUNCIONAR EM DEMOCRACIA!”
Valeu a pena ter este esforço todo?
“Julgo que sim. Essas coisas valem sempre a pena, independentemente daquilo que a gente arrisca, mas valeu a pena o risco, mesmo estando a falar consigo 40 anos depois. O que a gente fez foi bem feito, foi uma coisa bonita, foi uma coisa que não foi feita para nós… foi feita para vocês! Agora lamento que, vocês, estejam a dar cabo daquilo que a gente fez de tão bonito. E quando digo “vocês” digo a política e não a sociedade civil.”
O que é que os militares esperam dos políticos e a da sociedade civil, 40 anos depois do 25 de Abril?
“Aquilo que esperava, e disse-o quando fui condecorado em Sernancelhe, é que sejam vocês – vocês os civis – a lutar com as vossas armas contra aquilo que está a acontecer.”
Armas diferentes. Não temos as vossas.
“As armas dos militares não devem funcionar em democracia. A vossa arma é o voto!”
“OS HOMENS QUE SE ENCONTRAM, ATUALMENTE, NO PODER SÃO TRAIDORES QUE DEVERIAM SER TRATADOS COMO O MIGUEL DE VASCONCELOS!”
Com estes problemas todos que estão a acontecer no nosso país, salientando, em particular, a contestação dos militares e de outras forças de segurança, pergunto até que pontos os militares terão paciência para aturar este estado de coisas?
“Há declarações de gente que nada, ou pouco, tem a ver com a Revolução, como o Pires Veloso, a dizer que é preciso fazer um novo 25 de Abril. Mas, não há mais 25 de Abril! Penso que o outro 25 de Abril terá de chegar através da sociedade civil, da qual também fazem parte os militares. Julgo que, nestas circunstâncias, estes homens que, atualmente, se encontram no poder são traidores, que deveriam de ser tratados como foi tratado o Miguel de Vasconcelos, e penso que foi isso que o Vasco Lourenço disse: Deve ser à paulada! Nós, hoje, somos um “protetorado” da Alemanha.
A malta (militares) está muito revoltada com tudo isto que tem sido feito, nomeadamente, aos militares. Há aqui uma coisa que, normalmente, as pessoas se esquecem, mas que a gente vai lembrando através da Associação 25 de Abril, e através das associações de Oficiais, de Sargentos e das Praças, é que, no tempo das vacas gordas, a gente já pagou, portanto este é um peditório para o qual estamos a pagar há muito tempo. No tempo das vacas gordas ninguém se lembrou dos militares, nem dos polícias, nem de nada e, agora continuam a agir como os militares tivessem sido lembrados nessa altura. Isto tem um ponto que já passa do limite. Como é que se passa o limite? Não sei.”
Qual é o peso real das Forças Armadas em Portugal?
“Nós temos umas Forças Armadas para entrar numa guerra! Agora, continuo a pensar que podem tomar conta disto.”
Isso deve um ser um tanto ou quanto complicado no contexto europeu em que estamos inseridos?!
“Sim, seria muito complicado, mas aquilo que eu penso é que para as Forças Armadas tomarem conta disto seria a Assembleia da República a declarar o Estado de Sítio ou outra coisa qualquer, mas isso é difícil”.
É realmente muito complicado esse cenário, pelo que é pela via democrática que as coisas devem ser resolvidas…
“…por isso é que eu digo que o próximo 25 de Abril tem de ser por vocês, vocês como sociedade civil. Estes homens que andam a fazer isto, foram lá postos porque alguém votou neles.”
“NÃO FOI PARA ISTO QUE ARRISQUEI A MINHA VIDA, E A DOS MEUS, NO 25 DE ABRIL DE 1974…”
Deveria ser criado um Tribunal Democrático, ou seja, onde fossem julgados os políticos que não cumpriram com as promessas feitas ao eleitorado?
“Eu acho que sim, até para ver se a gente acaba de uma vez por todas com todas as mentiras que andam o destruir o País há quarenta anos.”
Para terminar, uma pergunta igual a que o nosso jornal (nesta edição) faz a diversas personalidades: Abril 40 anos depois! E depois?”
“E “depois”? Não lhe sei dizer. Sei que, neste momento, sinto uma revolta muito grande pelo que os políticos do meu País têm feito do meu País. O meu sentimento mais profundo é de revolta. Não foi para isto que eu arrisquei a minha vida, e a dos meus, no 25 de Abril de 1974. Não foi para isto! Mas, continuo a pensar que vos acabe a vocês, ou a nós, porque eu também voto, resolver o problema no sítio certo. Há alguma coisa que eu sei: o Maquiavel já dizia que os militares e polícias não devem ser humilhados, nem maltratados.
Nós, militares, temos capacidade para aguentar bem mais que vocês. Aguentamos 13 anos de guerra e fizemo-la, de modo que, para desobedecer, é preciso criar-se condições muito especiais. A solução passa isto que lhe digo: não adianta protestar como leão para depois votar como um burro!”
Uma coisa, desde já posso garantir, é que os militares jamais se virarão contra o povo! Se isto vier para a rua, eu estarei na rua!”
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Fontes (fotos): Jornal de Notícias
01abr14