António Pedro Dores
Esta foi uma pergunta que me foi lançada para ajudar a organizar um debate.
Primeiro dizer que não há sistema nenhum. O que há, é a espécie humana que evoluiu de uma maneira esdrúxula, a ponto de não gostar de si mesma, seja porque é animalesca, seja porque a razão obriga a violências imorais.
A espécie humana divide-se em gente sincera, sem desejo ou capacidade de iludir ou conduzir – a maioria – e uma minoria, tão treinada na auto-reflexividade que perdeu o contacto com a sua verdadeira alma (coisa que nunca existiu, a não ser na imaginação delirante de quem quer ser superior aos outros, natureza, animais e pessoas).
Tudo começou há poucos milhares de anos e concretizou-se de forma mais evidente há poucas dezenas de anos. O bem-estar e a riqueza conjugavam-se quando a organização funcionava.
Isso pode ser observado no desporto: o gozo de brincar segundo regras preestabelecidas, em função de solidariedades competitivas, suscita admiração dos observadores. Não apenas os progenitores, que rejubilam com a saúde dos seus rebentos, mas também aqueles que gostam de participar na produção e interpretação de regras, mesmo que não se sirvam delas. Virtualmente, todos os seres humanos podem ser chamados a esta discussão interminável entre aquilo que é e aquilo que deveria ser. Chama-se o jogo.
O jogo dá sentido à acção. Deve ser isso que o torna um vício. Não interessa a qualidade do sentido da acção. Interessa que há um sentido. Mesmo que seja para não ir a lado nenhum, mesmo que seja um tremendo engano. Porque será engano este caminho e não o outro? Há quem diga que é uma questão de fé ou de persistência ou de insistência. O que interessa é manter o espírito positivo. (É isto o vício).
A vida não tem sentido. O jogo sim. O sistema é a referência simbólica à superioridade do vício relativamente à prudência: se se repetir sempre a mesma coisa, por sistema, a produtividade aumenta. Se a economia crescer, é a fé actual, a fome, a pobreza e até a guerra tenderão a acabar. A prova disso é o aumento linear da esperança de vida e exponencial do crescimento do número de pessoas.
O problema do jogo são as regras: a lei só pode ser uma. Pior do que isso; ninguém sabe qual seja ela. Tem de ser inventada de raiz e fazer como se ela existisse desde sempre. Tal operação, claro, dá um bocado nas vistas: todos reparam que quem faz as leis é beneficiado por elas. Mas o vício é mais forte: quem quer saber disso, desde que o jogo continue?
Não há nenhum sistema: os viciados é que estão convencidos que é melhor estarem convencidos de que há um sistema. Para poderem continuar a jogar como se houvesse um sistema.
Não há, pois, sistema, a não ser aquele que dá sentido às nossas vidas. E é por isso que há polícias e prisões. Para que o sentido das regras do jogo seja continuamente produzido pelas pessoas. Para que as regras sejam reforçadas pela força, sempre que as forças mentais fraquejam e comecem a dispersar a atenção necessária à continuação do envolvimento de todos no jogo. Não se pode pensar fora da caixa, claro.
Jogo único, imposto pelo estado nacional de múltiplas formas, de que o uso legítimo da força faz recordar o que seria (simbolicamente, o que foi) a sociedade antes de haver ordem. Cada um tinha a sua própria polícia privada e todos desconfiariam de todos. (O facto de nunca tal sociedade tenha existido, não desmerece o valor prático da ideia desenvolvida pela propaganda do estado nacional: antes dele e depois dele era e será a selva, a floresta, o mundo da magia, a violência descontrolada).
A ideia de organizar as pessoas é muito mais antiga do que a polícia ou as prisões. Onde alguns egípcios se organizaram para prever as cheias do Nilo (quais meteorologistas), todos os camponeses e toda a gente ganhou. Sobretudo os faraós, guerreiros e clero. Fechou-se a vida de corte aos beneficiários principais e forçou-se a submissão de quase todos, a pretexto de criar um sentido da vida: o triângulo das faces das pirâmides, que ainda hoje significa organização.
Os sistemas religioso e financeiro são instrumentos de poder. Mas quem os protege? Quem defende o “nosso modo de vida” dos bárbaros, dos que estão de fora (ou dentro) e ameaçam estragar o que foi conseguido? Como assegura a capacidade de subjugar não apenas os camponeses beneficiários dos serviços meteorológicos, mas também todos os que possuam bens ou recursos que sejam desejados pelo faraó, o único ser humano a cuja vida nenhum sentido pode ser atribuído, pois deve estar livre para assumir todos os sentidos que os seus súbditos queiram impor-lhe. O faraó é o único a quem o jogo é realmente indispensável para dar sentido à vida. Já que o resto da população só precisa de o seguir (ao jogo e ao faraó).
Claro que nada disto tem pés nem cabeça. Como a vida de qualquer viciado, a vida mundana é uma estupidez. Mesmo que pareça coisa fina. Dá sentido a quem trabalha sob ordens de comando. Mas não dá sentido à vida. Frequentemente as pessoas dão conta disso. Portanto, quem esteja interessado em dispersar as angústias da falta de sentido para a vida, organiza distracções: jogos que possam ser jogados de forma transparente, desde o circo ao futebol, passando pelos rituais religiosos ou de outro caracter (as chamadas festas). Mas a fome, a presença insistente da miséria, mostra como é preciso mais alguma coisa.
Durante séculos, a miséria e a fome eram tão quotidianas, mesmo entre os ricos, que a produção do sentido de vida era precária para todos. Quando cada vez mais pessoas começaram a poder viver sem fome nem miséria, durante toda a vida, nas cidades, passou a ser cada vez mais necessário tornar evidente porque é que havia tanta gente excluída dessa esperança de ser Homem, isto é, comer, vestir e dormir todos os dias, sem dúvidas sobre como seria o dia seguinte.
As pessoas mais afoitas transitaram do campo para a cidade, como hoje ainda o fazem, à procura dessa vida de Homem. Para desgosto dos urbanos – que os estigmatizam de incivilizados, sem maneiras, só por não serem da cidade.
A uma organização triangular viril, que aprendeu a impor-se à natureza, justapôs-se uma desorganização no acesso aos cuidados básicos, própria do feminino, a que todos os bárbaros imigrantes aspiram. Bárbaros histéricos, sedutores, manipuladores, desejosos, como as mulheres.
A desorganização feminina é representável por um triângulo ao espelho do triângulo da organização viril e trata de se referir à necessidade universal de alimentos, roupas e alojamento para todos, sendo que alguns poucos não conseguem reunir as condições mínimas para tal.
São pessoas isoladas, como crianças abandonadas, pessoas sem família nem amigos, sem abrigo nem religião, incapazes de lutar ou cobrar impostos. Dessas pessoas, as sociedades separam as mulheres – para todo o serviço – e os homens, divididos entre polícias e ladrões, pobres bons e pobres maus, lutando entre si para se distinguirem uns dos outros. Todos ao serviço dos organizadores, que os usam para dar sentido moral à vida: os bons serão sempre vencedores, é o nome do jogo.
Foto: Pesquisa Google
Obs: Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
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