António Pedro Dores
Ládio Verón, cacique indígena brasileiro, viajou dois dias antes do previsto. Cancelou o seu programa em Lisboa e a recepção no Brasil, por razões de segurança. O seu pai, Marcos Verón, cerca de 15 anos atrás, foi assassinado depois de uma viagem em busca de apoios na Europa. No leito de morte pediu ao filho para que continuasse a sua luta. A maior parte da sua família foi assassinada no quadro do genocídio multisecular do seu povo.
Ládio tem orgulho na sua língua, religião, escrita, modo de vida tradicional, e por isso denúncia a plantação de transgénicos nas suas terras ancestrais. Fazem efeitos nefastos imediatos nas bocas e estômagos de humanos que os comem; mas são usados para alimentar animais ruminantes que vivem sem poder mudar de posição, inchados com injecções, para vender para todo o mundo, incluindo a Europa. A sua carne tem de ser colorida com um líquido vermelho, para simular o aspecto de sangue saudável.
Fui contactado, em Janeiro de 2017, por uma organização brasileira, para ajudar a montar uma rede europeia, na sua versão portuguesa, com vista a levar observadores e professores para Mato Grosso do Sul, na fronteira do Brasil com o Paraguai, onde os Guarani Kaisowá (GK) lutam pela sobrevivência. Querem ter sistemas de comunicação com a Europa para se poderem defender, através dos media, dos ataques genocidas descritos no Brasil como a tendência dos índios para se suicidarem, às mãos de paramilitares – jagunços, como se diz no Brasil – ao serviço dos ruralistas. Por sua vez, ao serviço do agro-negócio global.
Cabe-nos desenvolver um sistema de eco das denúncias que possam vir directamente dos alvos do genocídio. Sem a interferência de todo o tipo de obstáculos. Os GK querem mostra-nos a chamada Faixa de Gaza brasileira, como é conhecida a região onde vivem, por ser como uma prisão.
Para piorar a situação, nas últimas semanas, o governo Temer fez passar legislação para substituir os antropólogos que a Funai empregava para lidar com a questão indígena por policias, para “organizar socialmente” os indígenas.
Não tive dúvidas sobre a justeza da acção. Afinal fui quase vinte anos animador de uma associação criada por presos, em Portugal, com os mesmos objectivos: denunciar as violações sistemáticas dos direitos humanos das pessoas.
Sei, por experiência, como é difícil manter o rumo perante assuntos tabu, e intrigas de todo o género, que todos preferimos não encarar. Todos os grandes objectivos políticos, como o desenvolvimento ou o crescimento do PIB, são bons pretextos para apoucar a urgência civilizacional de cuidar prioritariamente das vítimas de genocídio.
O progresso brasileiro na extracção das riquezas naturais só é atrasado, pensa-se, pela incompetência das vítimas desse progresso, como os índios, como Ládio Verón. Se eles não aceitam ser integrados na sociedade da exploração, será à força, como sempre tem sido, que o estado brasileiro pretende resolver o problema. Isto é, continuar o genocídio. Continuar a fingir que os indígenas não existem ou não são gente.
Pela nossa parte é claro que os civilizados, nestes casos, são os índios. Lutam por cuidados a que não têm direito e, ao mesmo tempo, por uma consciência social mais sã do que aquela que se vive hoje. E contra o que até a natureza protesta, através das reacções do meio ambiente.
A constituição brasileira prevê a demarcação de terras para assegurar que os restos dos povos dizimados pelo genocídio multisecular possam viver em paz. Porém, o sistema político – incluindo o liderado pelo presidente Lula – vendeu as terras indígenas dos GK, mesmo nos casos em que estavam concluídos os pesados processos burocrático-legais de atribuição de terras. Demarcação já! É hoje palavra de ordem no Brasil, perante os escândalos contra os direitos humanos organizados pelo governo Temer contra os indígenas.
São conhecidas as sucessivas e recorrentes traições dos governos “brancos” contra os tratados de paz com os índios, em todo o lado: na América como na Índia. O que espero da rede de pessoas que se reuniu para receber a aprender com o Ládio Verón, na Europa, é que seja capaz de se unir no fundamental: cuidar de organizar a boa recepção e divulgação da inenarrável e insustentável condição de vida dos GK, como de outras etnias indígenas, de modo a que a surpresa da nossa ignorância, que todos experimentámos ao ouvir as histórias de Ládio, possa ser sentida por mais gente; toda a gente.
Que cada um saiba respeitar a finalidade primeira da rede recém-criada e possa, ao mesmo tempo, aprender e praticar a sociologia, a antropologia, o ambientalismo, a democracia, o nutricionismo, a participação cívica, e mais o que entender poder tirar desta relação com os indígenas brasileiros. No respeito pelas diferenças, mas também da igualdade ontológica, sem o qual a globalização continuará a ser um desastre ambiental e social.
(*)Continuação de artigo de Junho
Foto: Pesquisa Google
Por vontade do autor, e de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
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